sexta-feira, 28 de setembro de 2007


Dentro de blocos de pedra
Movimenta-se um mundo silente
Enterram conversas e medos
Destroem saltos e quedas
Distribuem letras e segredos
Em garrafas de um licor ausente


O líquido de dor transparente
Acalenta o peito que grita
O inaudito choro noturno
A cidade embriagada se agita
No ápice que tudo limita
A fala de um querer ardente
O auge de um amor soturno.



Besteirinhas da infância.








Tenho medo de que a inconsolável agulha do tempo encerre minhas histórias
sem que eu as contemple e termine e de que a ausência se torne uma algema, ao lado da lembrança projétil.

Temo a idéia de que a miséria do conforto recaia sobre as minhas escolhas e de que o hábito sente em meu colo.

E por hoje
Não quero mais me expor.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Pequenina





Às vezes sinto o cheiro do cloro da piscina, quando de domingo à tarde, eu ficava na beiradinha, esperando pelo almoço.
O sol nunca me atraiu;

Na praia, eu sempre fugia dele.

O calor me deixa irritada e minha pele, frágil, não agüenta a energia. Também nunca suportei a água. Não gostava de quando via meus dedos enrugados, não gostava de me sentir peixe, nem de sentir frio.
Eu gostava da piscina, não por ela aliviar meu calor, mas por tudo que ela me representava numa tarde quente de domingo.



Nada de missas.



Domingo era o dia da Mpb, do choppinho, da bóia de braço, dos saltimbancos, de andar de bicicleta na pracinha, tomar picolé na padaria, sentir cheiro de caipirinha, pensar no churrasco, brigar com o irmão e ver os avós.


E era em volta das piscinas da minha vida que tudo isso acontecia.

Em casa, no sítio, no clube de campo, na praia, era sempre ao redor da água que eu passava os melhores momentos.


Logo de manhã, eles liam os jornais e eu já me preparava com a toalha. Depois, mamãe ia para a cozinha preparar aperitivos e o almoço. Ele ia para a piscina, beber caipirinha e tomar sol. Às vezes me obrigava ao exercício - hoje, eu detesto polichinelo. O melhor exercício era com as bóias... como eu adorava minha bóia de estrelinha!! Hoje, eu até penso que ela era americana demais: uma estrela branca, cheia estrelinhas menores pintadas de vermelho e azul. Mas era tão bom montar nela!! Meu irmão tinha um bote, cheio de indiozinhos... mas ele era laranja, eu nunca gostei de laranja.



Eu gostava dessa bóia de estrelinha porque ela não apertava meu braço... eu ficava dentro dela e não sentia medo de afundar.


Hoje, eu não tenho nenhuma bóia ou estrela que me faça sentir segura em não afundar.


Enquanto eu rodopiava na piscina, na sala tocava Chico, Vinícius, Elis e todos os outros grandes músicos que aprendi a cortejar. Eu tinha a fita dos saltimbancos e quando ouvia: "au au au, ia ió, miau miau miau, có có ró có" já saía pulando pela casa! "Nós gatos já nascemos pobresss, porém, já nascemoss livress"... quantas saudades!!


Hoje, a fita deve estar perdida em algum fundo de gaveta, empilhada, esquecida... inútil.


Depois do almoço e da sesta deles, um mundo de brincadeiras me esperava. Eu gostava muito de brincar de profissões: vendia roupas, era farmacêutica, caixa de supermercado, garçonete. Garçonete era a minha preferida... se pudesse, ficaria servindo eles o tempo todo.


Hoje, não admito servir a mim mesma.


Geralmente, a gente ia para a pracinha, ali perto de casa mesmo. Andava com a minha bicicleta azul, com rodinhas brancas atrás; eu ainda tinha medo de cair.

O medo durou pouco e logo eu já andava sobre duas rodas. Hoje, tenho medo de cair.


No meio de todos esses sorrisos, havia as brigas com meu irmão, que deixavam tudo mais infante e colorido. Havia os "Comandos em ação", as cabaninhas, o trenó feito de colchão para escorregar pelas escadas e, é claro, os sorvetes. O besta era tão tímido que, na praia, eu, menorzinha de tudo, é que tinha de pedir os picolés para o sorveteiro ou ligar para o disk-lanches.


Eu gostava muito da sacada e da rede. Ficar olhando a lua e as estrelas pela luneta, na sacada, à noite, e depois deitar na rede, não tem preço. Quando transformaram a sacada em escritório, eu tive vontade de chorar... mas era só uma sacada. Quando eu cresci e não cabia mais na bóia, eu tive vontade de chorar, mas era só uma bóia. Quando tudo acabou, eu tive vontade de chorar... mas não pude, não tinha mais idade para chorar. E, hoje, também não me permitem chorar.

Depois de tudo isso, às vezes tinha o sítio ou a casa da vovó nésia.


Eu confesso que eu gostava mais da casa materna.


Na casa do vovô Aires, tinha bala de todos os tipos, tinha música clássica (apesar da vovó assistir ao programa do Sílvio Santos) e um quintal enorrrmeee, cheio de árvores, frutas e mistérios.
E tinha a URBA também. Eu e ele vivíamos pulando o muro e inventando facetas como Indiana Jones. Também tinha o Mercedez, que eu adoravaaa fingir que dirigia e a mecânica do Tio, que eu achava meio sombria.

Mas a casa da vovó nésia era diferente.

Eu consigo me lembrar, depois de dez anos ou mais, do cheiro do sofá, do tecido da cortina, do ladrilho gelado, da mesa de pedra no centro da sala, da roupa do vovô quando eu abraçava ele, da cadeira de estofado colorido da cozinha, do gosto do arroz dela, da água do filtro, do cheiro de arruda quando ela me benzia, do brinco que ela usava, da pele flácida nos braços e no pescoço, do regadorzinho vermelho, do cheiro de remédio no quarto do vovô, da edícula que vivia trancada e de quando eu fantasiava existir monstros ali. Eu poderia descrever a casa, eles, a comida e os momentos com todos os detalhes possíveis. Hoje, tudo isso ainda mora em mim, vive. E eu não pretendo esquecer.


Quando eu chegava, tinha um portãozinho baixo, azul-claro, e a gente logo ia entrando. Já de cara, encontrava a escada - que eu adorava escorregar pelo corrimão. Antes de subir, do lado esquerdo, tinha uma mini piscininha, um laguinho que sempre ficava vazio e eu nunca entendi o porquê. Mas sempre havia uma piscina ao redor!


A porta tinha umas grades entrelaçadas, era branca e era de vidro também. Tinha uma parte de vidro que abria entre as grades. O piso era de madeira e fazia barulho se alguém usasse salto alto.

Os sofás eram marrons, algo parecido com couro e as almofadas eram um pouco ásperas, com desenhos meio alaranjados e amarelados. Tinha cheiro de coisa antiga.


O telefone fazia um barulho engraçado e era cinza, daqueles de ter que girar. A mesinha do centro, era branca e de pedra, geladaaa... eu sempre fazia a lição de casa ali. Tinha uma T.v. e, em cima dela, alguns porta-retratos: meu priminho Vinícius e meu primo Fábio, com meu irmão no colo, se não me falha a memória. Eu gostava da T.v., mas não por ela. Meu avô, sempre quando eu ia visitá-lo, deixava uma balinha ou um chiclé escondidos atrás do porta-retrato, em cima da T.v. Ele me chamava de "Chica" e pedia para eu procurar um presentinho... e eu sempre encontrava. Como eu adoro bala chita de abacaxi!!


O banheiro era todo branco e tinha almofadinha na privada! Eu adorava aquilo. Sempre media a qualidade dos restaurantes pelo banheiro... e quando tinha almofadinha... era diferente!


O gostoso da cozinha era o arroz. Quantas e quantas vezes eu chegava e ia direto para a geladeira comer arroz gelado da vovó nésia? Tinha também uma dispensa... que eu não gostava muito, era apertada. E logo em seguida tinha o escritório do vovô.


Ele vivia consertando e construindo coisas. Tinha livros e papéis e gavetas e armários. Mas o mais legal de tudo era o palhacinho que ele construiu para mim e para o meu irmão. Era uma caixinha de madeira, com cara de palhaço e, bastava você apertar um botão, que o nariz do palhaço se acendia. Ali também era o local da vovó brincar de saci no escuro. Eu morria de medo quando ela colocava o fósforo dentro da boca, entre os dentes e imitava o saci.


Depois tinha a área de serviço e o quintal. Na área havia uma mesa de madeira, velha e meio úmida. Nessa mesa ela me sentava e, com um galhinho de arruda, me benzia. Eu não entendia bulhufas do que ela dizia baixinho e nem sabia por que ela fechava os olhos. No fundo, eu achava engraçado, mas gostava do cheirinho. Lembro da textura, das rachaduras da mesa... eu me sentia bem.

Logo depois da benzedeira, tinha o quintal, cheio de frutas e coisas para se fazer e brincar. Meu avô tinha uma espécie de oficinazinha ali, uma pequena marcenaria. E eu tinha uma lousinha, um regador vermelho e um velotrol. Também tinha um corredor por ali, meio estranho, que ia dar na garagem... era onde ficavam os botijões de gás. Era legal para brincar de esconde-esconde.

Hoje, a casa não existe mais, nem as pessoas que nela viviam.


Hoje, eu nem moro mais por lá.

Mas só eu sei como é maravilhoso não esquecer isso.

Só eu sei qual o gosto do arroz, o cheiro do sofá, a maciez da cortina. E isso, ninguém pode me tirar.

Não me permitem chorar, não me permitem cair, afundar. Não me permitem ser eu mesma.
Mas enquanto eu tiver memória, olfato, audição, visão e tato para viver, enquanto eu puder guardar tudo o que vivi dentro de mim, eu me permitirei.

Hoje, só hoje, eu quero ser Milena.
Eu sou o equilíbrio.

Ora, imagino que todos que me interpretam, julgariam ridícula a frase acima.
Permitam-me a minha defesa.
Desde a década de 80 - quando vim ao mundo para confundir - que posso ser considerada aquilo que é definido por todos como medíocre.
Sim... não o termo pejorativo, modificado, popular.
O termo médio, mediano, o meio-termo.

Estou sempre na situação do meio.
Entendam: isso não significa que não tome atitudes, posições, que não tenha idéias; não é isso.
Tampouco fico "em cima do muro". Geralmente sou extremista e até um pouco radical.
O que ocorre é algo inerente, que nem sequer consigo explicar. É a idéia que os outros têm de mim, que me faz ter essa duplicidade, ser essa dicotomia. Na verdade, é tudo muito claro.
Vejamos se consigo esclarecer:

Sempre fui considerada a "mais-ou-menos". Nunca fui a melhor amiga, a mais bonita, a mais inteligente. Mas também nunca fui a mais detestável, horrorosa e burra.
Nunca fui sentimentalóide, mas sabia ser romântica. Não era magra, nem gorda.
Não gostava da direita, mas não podia ser esquerda. Era destra, mas sabia ser canhota.
Era amada por uns e odiada por outros. Estava sempre no meio, mas nunca ao centro.
Sempre fui a megera sensível, a doente sadia, a culpada desculpável, a egoísta solidária.

A única definição em minha vida, aos olhos alheios, é quanto à religiosidade. Nunca adotei a posição de crédula, nem quando pequena. Na infância, eu nem sequer pensava sobre isso.
Mas hoje, para a grande maioria ingrata, eu queimarei no fogo do inferno.

Eu vim para confundir!

Esse maniqueísmo moralista dos seres humanos, quando atrelado aos juízos de valor, causa-me verdadeira repugnância.
Mas se eu sou o céu e o inferno, o fogo e a água, o tudo e o nada, nessa versão meio raul-seixana da conversa, só posso chegar a conclusão de que eu sou o equilíbrio, o yan-yang, a perfeição, não?

Alguns dos meus hermenêutas, conseguem ser a metade, o meio? Alguém aí consegue ser tão medíocre quanto eu?

Eu, às vezes, sorrio quando escrevo!

Atemporal

O hálito do tempo
Embriaga-me o espírito.

Os dias que me somam hoje
já findaram.

As noites que correm de mim
clarearam.

Os amigos vão
As folhas caem
As idéias morrem
Os amores partem
Os navios naufragam
As flores murcham
O medo cessa
Os corpos apodrecem

De fato, novos amigos surgirão,
novas folhas brotarão,
idéias renascerão.
Amores hão de fluir,
navios a velejar,
flores a crescer.
Novos medos eu terei
e a morte sempre existirá.
Mas aqueles que partiram,
que caíram,
que se foram,
que cessaram,
esses, não voltam mais.

E se voltassem, eu é que teria de partir.
É por isso que tenho ótima memória.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Mania




Escorrendo,
escorrendo pelo dia
A áspera flor que corta
A doce dor da poesia
A gota de melancolia.


Escorrendo,
escorrendo pela porta
nas frestas da palavra morta
Aquilo que ainda havia.


domingo, 23 de setembro de 2007

Poema tardio


Na triste casa vazia
Em que eu passava o resto do dia
Consumia, suava, perdia
A vida que ali se esvaía

Em doces pratos de absurdo
Comia as víceras restantes
Como se me faltassem dentes
Em tons de cinzas de gentes
Em inquietos "nãos" protestantes

Sempre inconformada
Sempre a não aceitar
Aquilo que pregam na praça
Aquilo que teimam doar

Doação de casto gentil
A gente desconfia na hora
Eu vivo é no Brasil
Mas não tardo e vou embora

Cansei dos palanques e vozes
Das antas a titubear
Dos "ais" vorazes e ferozes
Daqueles que pensam enganar

Deixo a corja pensar que sou
Que o erro existe e que os juízos não são humanos
Teimo em dizer que vou
Lavo o doce e penduro o pano

Fumaça de cigarro, odores
Aroma do meu pesar, de amores
Saudades da infância tardia
Que se me vou aos açôres
Não é só pelas cores
Mas pela pátria alegria.

Prendam a vida e o tédio
Que eis o melhor remédio
para os que já vão partindo

Soltem o louco, que já vou-me "indo"
Que se volto é pelo beijo de assédio
Dos homens que se me vão rindo.
Não digo flores, imagens ou sorrisos.
Breves palavras com sabor de gente dão apenas a idéia de sonoridade perfeita: um quadro na sala, ao som da nona sinfonia.
Mas não é preciso música para dançar nem tampouco idéias para escrever.
O que me incita é o que me faz cravar os dentes.
Cada roer de unha, cada estímulo cerebral, cada nova letra, dita, ouvida, lida, é um filho nascendo do inacabado.
Por isso, não é bastante percorrer linhas, vidas, céus e inconscientes; é preciso o fel dos deuses. Transbordar cores, absorver toques, inventar realidades, suscitar o novo, conhecer verdades inatingíveis, casar-se com o inaudito e aliar-se ao impronunciável: não é o bastante.
Antes de tudo, é preciso ter vida.
De que adianta tua existenciazinha parasita e ignóbil, em um mundo de ferrões e cicatrizes?
Não basta ser grande ou inteiro; antes, é preciso sê-lo.
Tens o medo dos infiéis, a angústia das crianças e as mãos nos bolsos; que queres, pois? Adorações em altares?
Não. Não ateio fogo em padecimento.
Não adestro pequenos cães ou cegos.
Não me é possível ensinar o que é meu.
Da observação do mundo, do alto da minha janela, vejo a que distância estou daquilo que não consigo enxergar.
A claridade me ofusca até o mais remoto pensamento.
Mas tendo minha mão como inimiga mortal, continuarei a tatear, cegamente, tudo que há de me pertencer.
Sem bolsos ou cartas na manga, longe dos requintes do que chamam, hoje, de literatura, beberei os versos podres a que venho me acostumando, entre horas de insônia e gostos noturnos, para preparar o riso tardio de qualquer dia, entre a cama e a estrada.
Sem lentes de aumento, cremando alguns conceitos restantes, em silêncio, aguardo o próximo instante de partida, ansiosa pela fumaça cinza que ameaça a janela.

Morte


Sobre a paralisia de uma cadeira azul, imóveis queixo e dor, dispenso o cigarro e apago minhas dúvidas.
Nesta noite de sábado nu, com os pés descalços para a frieza de um chão ausente que um dia há de ter-me, penso na impiedosa sombra da perda: descobri que a morte é uma ave de rapina.
Ela sobrevoa nossas vidas, com visão aguçada e fome voraz. Escolhe a presa suculenta e, quando menos esperamos, ela crava suas garras afiadas em nossos peitos jovens e nos faz sufocar. A morte é a águia do mito de Prometeu, que pouco a pouco, arranca aos pedaços nossos restos de vida e nos condena à prisão da inexistência. Essa é a pena, essa é a punição do tempo; substantivo que insistimos em adequar às nossas classificações mesquinhas e humanas, quando não nos resta sequer um retorno. Não, não há saída. A eternidade é uma pequena rua vazia e sem saída.
É só então que um corredor de memórias invade a cabeça dolorida e cansada e a gente pensa na tarde poente que é a infância.
Do transbordar dos efeitos do tempo, nasce, diante de mim, aquela que é meu motivo.
E penso nas noites que passei ao seu lado, velando seu sono e pedindo, humildemente, um abraço para me sentir segura.
Sempre tive medo do amor.
É com um carinho de criança chorosa que me lembro da cama quente e dos beijinhos em liquidação que eu distribuía quando ela voltava exausta da rotina de ensinar a viver; das conversas adultas e tão amigas, que me mostraram o verdadeiro valor e significado da realidade cruel que ela insistia em amenizar. É que viver dói.
Das cestas de café da manhã, dos inúmeros presentes que ganhei em meio a tanta dificuldade. E meu sorriso era meu único agradecimento. Lembro das encenações, das brigas com meu irmão, que a deixava momentaneamente brava. Do assassinato da minha bola, que no final, achei cômico. Das viagens maravilhosas, das praias, dos sorvetes que comprava, de cada lugar que visitamos, da Europa aos meus pés. Ela sempre me permitiu.
É com um rosto já molhado que me lembro do dia em que ofereci minha nota de um dólar para ajudar nas despesas da casa, do jogo de cartas pela madrugada, da permissão para namorar, das opiniões sobre minhas roupas, dos nossos gostos opostos, do medo de mariposas, da risada de bruxa, dos guardas noturnos que assombravam minhas noites, das estradas que percorremos, dos desabafos e das festinhas de aniversário.
Mas os anos passam.
E é então que o tempo me enforca e leva de mim todos esses sublimes instantes de sorrir. O tempo, aliado das aves, é maior dos traidores. Ele apaga das vistas tudo o que se pode chamar de amor, nos rouba o existir, nos induz ao hábito e ao esquecimento.
Tempo é perda.
Um dia, uma ave de rapina, disfarçada de tempo, a levará de mim e me deixará sozinha, com as entranhas expostas ao tempo e à dor; sozinha comigo.
Um dia, eu terei de me enfrentar, terei de lutar contra mim mesma até que a ave também venha me buscar para me levar à rua da eternidade.
Eu só queria que a minha ave chegasse primeiro e me poupasse de ter pensamentos como este.

Mon dieu des les yeux gris





No dia em que tu partiste - com teus pés descalços, teus pés de aço, os mesmos que rompiam os brinquedos da minha infância - minha fé adoeceu.

Na tarde nublada em que tu partiste e me deixaste só, eu compreendi que o espaço era demasiado curto e que o teu tempo fora deveras pequeno para as minhas descobertas de chocolate-surpresa e para as minhas doces aprendizagens de castelos de areia.

Tu, que com teus olhos cinzas me fizeste enxergar a realidade sutil das coisas enfermas, o mesmo que tantas vezes me salvou dos oceanos de dor e das ondas que me afogavam agonias.

Tu, que tanto tinhas a receber e nada a oferecer, que foi o passivo mais amado, negaste a mim o que me era de direito.

Eis a cruel justiça divina dos homens!

Tu, que tanto quis e pouco fez
Tu, que tão apegado às causas nobres não fora capaz sequer de notar um filho...

Por que é que me abandonaste, meu pai?
Por que é que me deixaste no silêncio e na escuridão da cegueira do inatingível, sem ao menos me dar o direito do adeus?
Por que é me negaste o teu olhar nublado, de cinzas esverdeadas, tua mão protetora a me ensinar os primeiros passos e a tua insaciável avidez pela igualdade?
Por que não me permitiste a igualdade, meu pai?
Que deus é esse que não ama seus filhos?

(Eu sou o rebanho do mundo)

E eu, tão menina, já tão minha, tive de aprender a viver com a tua única dádiva: a ausência.

Aonde é que o Senhor esteve quando precisei, pai?
Por que amparaste a todos com teus largos braços e colo divino, repartindo o pão, enquanto me fazias prisioneira da culpa?


Não. O senhor não é mais meu deus.
Fiz promessas ao nada e o que foi que me restou?
Não há ensinamento.
Seus mandamentos me fazem rir, pai.
Dizem por aí que o Senhor está morto, mas só eu sei que você nunca existiu, que a única presença é a da ausência e que não há mais sentido para tua tardia piedade.
Somos sozinhos.

Hoje, tudo não passa de psicologia barata e meus gritos, abafados pela rouquidão da maioridade, esmagam minha fé com os falsos pisões de outrora.
Hoje, sei de tua inexistência, meu pai.
Sei daquele que não está entre nós.
Sinto por não poder calar sobre aquilo que me faz ter o ilusório sangue divino.

Hoje, te amaldiçôo, meu pai...
Eu te maldigo!
Fui adotada por um novo Senhor, um deus que me ensinou a ser Milena e que, acima de tudo, me ensinou a ser Tarzia.
E nesse reinado espiritual eterno, não há lugar para charlatões.

Hoje, eu não te acredito mais, pai.

Eu não te acredito!

A gravata da culpa

Caminhava como ainda hoje caminho.

Os pés um tanto tortos, herdeiros de um aleijão que aos onze se fez presente; resquício manco de um divertimento cruel. Já eram quase oito e as minhas máquinas-de-levar-adiante puseram-se a trabalhar, e eu, escrava de mim mesma, segui-as como pude, num ritmo calmo e lento de quem jamais chegará ao fim do percurso. O vento esbarrava em mim, como se quisesse impedir meus passos. O sol, covarde, ocultou-se em nuvens escuras, fugindo de meus olhos inquisitórios. Apenas mais uma manhã que o tempo me levaria, mas que a memória brutal martelaria até que me sustassem todas as sensações. Por existirem, ainda, algumas poucas, meus tímpanos gritaram-me cores estridentes de um latido asfixiado.

Pobre animal.


Não lhe pouparam nem mesmo a voz. Que mordaça invisível era aquela que tentava cobrir o animal com o manto do consentimento? Eu, escrava minha, curiosa que sou, pendi minha trêmula cabeça para o lado esquerdo, a espera de ouvir novos sons, bordados de rouquidão, vindos do cão por detrás de mim. O cão, como eu, parecia não saber de suas escolhas, e corria para árvores, e corria para postes e corria sobre a terra e o cimento, para todos lados, como se quisesse que nada lhe escapasse às vistas, ao cheiro, ao toque. Às vezes, urinava, gritando: “isto é meu!”, de tão adestrado e humano que se tornara. Também, às vezes, tentava latir para o cão alheio cumprimentando e exibindo a liberdade que imaginava ter.

Tornei a olhar adiante, ouvindo ainda as tentativas frustradas e exibicionistas do rouco animal de quatro patas. Faltava-me oxigênio só de olhar para tal pescoço, se é que se pode dizer que aquilo era um pescoço. Ao redor do pelo branco, liso e macio daquele bicho, havia várias mãos de metal, entrelaçadas, contraindo-lhe a vida e a voz. Uma verdadeira coroa de pescoço para um rei destituído de trono. Elos que se buscavam, uns aos outros, ciclicamente, simbolizando o infinito aprisionamento de nós, cães. A corrente, que estava mais para forca, nada mais era que uma arma, um objeto ao qual os súditos devem reverenciar-se e obedecer. Inocentes os cães que pecam sem saber. Inocentes os homens que sabem por pecar. Culpados os cães e homens que sabem da inexistência do pecado e que, mesmo assim, se submetem a ele, porque o pecado é apenas a ausência de freios para atos que nos revestem de nossa intensa capacidade de ser o que somos.

São essas, as mesmas correntes que durante anos serviram de chicote nas mãos dos capatazes, para marcar ao longo do tempo e da vida, a história e as costas de vários de nós. São essas, as mesmas correntes que arrastam os fantasmas do nosso inconsciente, teimando em afirmar os nossos terríveis anseios e as nossas antigas paixões, assombrando o pouco ar que nos resta. São essas, as mesmas correntes que envolvem nossos portões, para forjarmos a nossa segura inquietude perante o mundo acidental, ou, como quiserem, violento, para enterrarmo-nos em nosso cárcere diário-sem-fim.

Também eu sou um animal de quatro patas, apesar de equilibrar-me sobre duas. E tais correntes também não diferem das minhas, das nossas, coleiras da vida. Asfixiados, latimos em vão para ouvidos inexistentes, na esperança de que as ondas da angústia confinada se propaguem pelo espaço que nunca foi nosso, na esperança de que essa falsa liberdade obtida torne-se a liberdade sonhada, ausente de gravatas, colarinhos, símbolos e coleiras. Pouco a pouco, nos faltam as vozes, e o hábito, velho adesivo, senta-se em nossa mesa e come o resto de alimento que ainda há em nossas almas, e então, somos reduzidos a cães como o de acima, felizes por sair da toca e por ter donos que nos propiciem segurança e comida, mas com a eterna certeza de que sempre haverá, em volta, uma coleira que nos quer sufocar.

Insetolândia

Lá fora, o mesmo mundo se insunua para mim.
As existências são as mesmas de sempre.
Continuam exigindo por aí que as idéias sejam as mesmas, que as verdades sejam inconcebíveis e os sentimentos sejam belos.
Julgam-se os grandes amantes da verdade, da moral e, acima de tudo, do homem.
E julgam-se amantes por preocuparem-se insensante e indevidamente com o alheio. Mas é uma preocupação relativa.
Sua extensão não vai além de sua própria via umbilical, porque, no fundo, não desejam saber da vida do alheio senão para extrair ou abstrair uma vantagem para si.
Não que isso seja de todo ruim, mas, se assim é, como podem tais censores quererem que eu seja dessa grande massa romântica, cega e inquisitorial?
Para a grande massa de insetos, a vida é sempre bela, a morte é sempre cruel, o sofrimento é sempre inevitável, o moço é sempre "cute", a roupa é sempre cara, a moda é sempre "up", a sociedade é sempre "high", a santidade salva, a Bíblia também; mami and papi são sempre eternos, abastados e felizes, miguxas também.
Tudo o que não faz parte da realidade em vivem tais artrópodes merece desprezo e não-aceitação.
Eles têm suas reles e miseráveis quase-vidas baseadas num possível amor - sem se darem conta de que isso não passa de um substantivo; numa imbecilidade divina, num dever-cumprir, numa vizinhança afável; numa noite em boite no fim de semana, numa moral atroz, num hábito entediante, na alegria de se pesar 40 kg. Quão pesada é essa leveza? Quão limitado é esse circuito...

E então, suas línguas sulfurosas e espíritos de planta carnívora devoram o livre-pensar e arrotam novos seres rastejantes.
Mas haverá o dia em que outros seres, nada ratejantes, se insinuarão diante destes pequenos sem significado.
E haverá tanta beleza e tantos suicídios!!!

Os insetos, deitados em seus montes de grama, formigueiros e ninhos abrirão seus olhos sem cor, observarão o imenso azul-celeste do teto de seus casébres e pensarão, finalmente pensarão sobre suas quase-vidas, suas meras existenciazinhas, tão curtas, tão simples,e tão passíveis de serem esmagadas.

Haverá o dia em que novos seres criarão novas entidades, novas realidades para que o mundo dos insetos continue sendo o que é.
E ainda há insetos que pensam em mudar a insetolândia, vejam só!!
Que tolice!!

Somente um inseticida seria capaz de fazer com que insetos deixem de ser insetos.

Flores



Fale-me de flores...
Falar-te de flores?

O que são as flores senão a expressão da carne tua?
São macias, delicadas, puras...
São murchas, moles, putas...
Vadia expressão da carne humana!

Flores? Homens despidos de suas almas,
Nus e sedosos como os nossos egos.
Mágica materialização do esqueleto fictício
Broto do verme imundo da pele anarquista!

Caos dos espinhos do caule de Kafka
Ventre oco dos infernos de mim mesma.
Soldadinhos de chumbo das sociedades estelionatárias
Bandeiras de religiões de vento
Surdez de Beethoven
Cripta da biosfera das parábolas de um cadáver.

Flores?
São sonhos democráticos,
Ilhas perdidas num oceano distante do teu.
Semitas em jaulas invisíveis aos olhos
Nós, presos aos olhos visíveis das jaulas.
Utopia verbal, mentira suprema, vinho da tradição impregnada.

Quando falo Flores,
penso em Plágio,
Imitação da realidade de Kant!
Apagogia das teorias Milenares
Adjetivo do hominídio sem mérito
Diminutivo do bêbado louco
Sabedoria das cruzes inexistentes!

Penso em hemorragias de países pobres
Riso dos marmanjos republicanos dignos de merda
Morte transformadora de mártires pagãos
Estranho sumiço do poeta árabe
Coruja a espreitar a alheia vida noturna e a vida noturna alheia...

Flores!!
Ah... Flores!!!

Elas são os perfumes que movimentam o mundo!
A produção de filme antigo e caro
O consumismo de reprise!
O prestar de contas à deuses sentados em tronos de platina
Deuses que espumam pela boca, bebem coca e são doentes do pé.

Flores são os fantasmas que te assombram na madrugada infinita.
A saudade que te faz enlouquecer silenciosamente,
O nárcotico que te faz viver deliciosamente...

São as revoluções que de nada servem
E a servidão revolucionária dos párias.
São o passado a te cutucar a nuca
O filho morto do teu mundo de brinquedos
Brinquedo do mundo do teu filho mudo
A voz sem palavras
As palavras sem letras
As letras criadas.

Flores? Não passam de Humanidade!

23/11/04
Há tempos que o tempo me faltava
E que uma solidão progressiva me acalentava os corredores d'alma.
Era um ralo que me sugava para que eu escorresse em centenas de dúvidas.
Sofria de uma doença crônica, de uma imobilidade sepulcral, de uma espécie de ritual "para não mais ser".
Ao meu redor, bailarinas rodopiavam gargalhadas, me apontando com os dedos, anunciando a possível derrota.Meu fracasso foi meu túmulo; e meu túmulo, minha lei.
Quando o vi, pensei que esperança existia.
Havia em seu olhar uma perspectiva de possibilidade, lembrança de um passado infante, com gosto de pega-pega.
Decidi que Milena Tarzia deveria se perder no além do "para sempre" e que deveria refazer sua noção de sentidos.
Era tomada por uma felicidade que me serrava os ossos, pela beleza de poder ser mais que Milena.
Mas, mais uma vez, minhas teorias alucianadas, isto é, alucinadas, vingaram.
Acordei do sonho mais sutil que já senti.
A felicidade é a mentira suprema. É a dor mais falsa entre os mortais.
E eu, como imortalidade por excelência, vos digo que a verdadeira felicidade se encontra em sonhos, em travesseiros.
É ser o tão sonhado desejo de não se poder ser nada além de existência.

Como uma moeda tomada por seu valor,
Como um cão que mostra os dentes,
Eu te peço, por favor, que não te ausentes
Para que eu possa me afogar no teu amor.

11/2005
Esse texto é o relato de um sonho de morte, que tive, ano passado:

Era uma comemoração barulhenta e aparentemente sem motivos.
Beirava o nada.
Esses hábitos hedonistas, quase pagãos, de culto ao Deus Baco, à danças estranhas, eram-me agradáveis, mas não naquele momento.
Tudo o que eu sabia era que tinha de partir.
Eu desejava apenas, ansiosamente, ir-me.
Cômico! Todos estavam presentes mas ninguém sabia onde estávamos.
Saí correndo por aquele lugar desconhecido, a procura de uma saída, a procura de alguém que me tirasse dali. Ninguém me dava ouvidos.
Numa espécie de conluio, todos pareciam estar decididos a ignorar a única que queria deixar aquele lugar.
Um estranho lugar escuro, rodeado de árvores altas, que se iniciava numa rodovia e terminava num sobrado. Na casa: a festa que não terminava nunca e as pessoas que não me deixavam ir.Na época, havia uma pessoa que eu gostava bastante e que eu estava certa de que me tiraria dali. Encontrei um telefone estranho, que mais se parecia com um chaveiro, e telefonei para aquele que era uma esperança. Mas a ligação não se completava...
Eu sequer sabia onde estava.

Desesperada, quase a chorar, subi os degraus daquele lugar horroroso, em busca de uma informação, um alguém, uma fuga e deparei-me com uma escada já conhecida, com os degraus da minha infância, da casa que sempre morei.
Sem controlar meus movimentos, fui obrigada a subir estes degraus.
Fui levada até o quarto de meu irmão e, sem saber o porquê, abri a janela de madeira.

Chovia forte. O céu cinza-escuro parecia não querer existir e se dissipava em pequenas partículas de vida. As gotas caíam com tamanha força que não se ouvia nada além do som daquele réquiem.Entretanto, um outro som, ensurdecedor, se fez.
Um clarão sorriu naquele céu de sombra, e eu pensei que se tratava apenas de mais um encontro entre duas nuvens cinzentas perdidas na luta da transmutação.Mas não era isso.

Quando dei por mim, a chuva tinha cessado e o azul estava voltando.
Percebi, então, que havia algo sobre a minha cabeça.
No telhado, havia um tic-tac, como o de um relógio, a tirar-me o sossego e a vida.

O tempo, meu amigo arredio, brigava comigo.
Era uma bomba-relógio.
Em qualquer segundo ela explodiria e levaria aos pedaços todos os outros segundos que me eram de direito.
Explodiria e exibiria os cacos, os restos, os estilhaços, o pó.
Corri contra o meu amigo.
Mas como todo os "amigos" que tive, ele me deu as costas, deixando para trás o punhal.
Ao tentar voltar, flutuei sobre os degraus, mas ele empurrou-me para o abismo.
O tempo explodiu!

Além dos cacos, do pó, me vi estirada no chão, toda suja e ensangüentada, com ossos rasgando-me a carne e a poeira ainda a baixar. Senti o calor saindo do meu corpo e o sangue a parar de correr, lentamente, conforme meu amigo determinou.

Morri.

Morri, quando meu amigo partiu, sem perceber que não havia abandono, (é esse o grande temor humano! Não é a solidão que se teme, é o abandono) sem perceber que a partida dele realizava o grande desejo que eu tinha em não mais presenciar a grande festa dos que nada sabem.

Agora compreendo o conceito de amizade.
Pensamentos assassinos devoram minha consciência desgastada.
A violência que nos faz ranger os dentes e que assola nossas insanidades saltou pela minha janela e sentou-se ao meu lado; ela quer companhia.
Sabe que sou sozinha.

Vejo-me, pois, explodindo, aos pedaços pelas calçadas da minha infância, ao tentar atravessar a rua sem olhar para os lados. É que tento não desviar os olhos do rosto da vida. Mas ela é tão repentina que me faz aos cacos em poucos segundos.

Imagino, então, minhas mãos enforcando a fala alheia. Um rosto já lilás e apodrecido me implora perdão. Justifico com a certeza de que perdoar é uma excelente vingança, mas que não convém ao inchaço. Sim, eu gosto da justiça. Gosto de ter a possibilidade do revide e é isso que faço em meus sublimes sonhos aéreos, em meus anseios inconscientes e inconseqüentes. Sinto-me como aquela que passa por cima, que trucida, que atira no peito, que afoga, que queima, que esmaga e faz sofrer. Trata-se da punição, digo, da existência.

Lembro-me dos rituais de queima às bruxas. Caço todas elas e ateio fogo em seus saiotes largos, manchados de suor e dor. É... elas merecem perecer!

Em contrapartida, como que prisioneira desta lista de arrepios, vêm até mim, curtos momentos de desespero: um homem mau me esperando na garagem, pronto para atacar minha dignidade, subestimando minha força. Ou um automóvel descontrolado a me arrebentar as pernas que se tornam, então, imóveis para além da eternidade. Até mesmo a paralisia do fim me assombra as madrugadas. Sonho com aquela de branco, que não me olha nos olhos e que quer me levar. Não consigo vê-la, mas sei que está ao meu lado, à minha espera.

Acordo, e ainda assim, a sinto.
Será que isso é consciência?
Será uma forma de meu inconsciente punir minha consciência para que eu cesse com os assassinatos e saiba o que é morrer? Não será eu decretando minha sentença? Condenando-me?
Dizem-me que estou com “manias de perseguição”, mas se esquecem dos outros. O que eles têm? A mim?

Talvez.

Talvez eu precise saber como é que se morre para aprender e saber como é que se vive.

25/03/06

Apodrecida razão

Apodrecida razão, quando é que perdeste o senso?
Onde foram parar as tênues memórias de outrora?
Já não saberia te-la comigo, amiga. Tu partiste e duas novas tomaram-te o lugar.
Vagueio a passos rasos de mãos dadas com a loucura e a solidão. Já não saberia não as ter comigo. Parto e uma nova tomar-me-á o lugar.

2004.

Para aquele que nada tem de mestre

Protesto!

Recuso-me a encenar este estúpido papel que me é dirigido por impostas e falsas sentenças. Quero, aqui, como representante de uma minoria sem cor, falar apenas por mim, expondo a maior de todas as sentenças: aquela que impõe uma sanção ao réu. Hoje, o senhor é o acusado!

Caro professor, como pensa e quer que aceitemos seus gritos “histéricos”, de político inseguro, com a dosagem equívoca e transbordante do discursozinho barato sobre “como ser solidário”, se não somos os medíocres aluninhos que nada sabem da vida e que, segundo o senhor, nunca leram autores falecidos, só lixo?
Exatamente. Não aceitamos.

Saio de sua aula com a sensação de que aplicar o Direito é defecar. É isso! O Direito fede e precisa que seus excrementos sejam eliminados. O senhor é um deles! Com seu pseudo-conhecimento e arrojada pós-modernidade, nos trata como se fôssemos dementes e não nos dá sequer o direito do revide. Sim, sua aula é um soco no estômago. Mas confesso que é ali que aprendo o real significado da moral cristã e, conseqüentemente, do direitozinho de merda em que o senhor se faz tão mestre. É lá que aprendo e vivo Camus, já ouviu falar? Não!!! Marinoni reina!!

Todas as terças e quintas pela manhã, me deparo com a justiça humana. E essa justiça é uma chibata no lombo de cada um de nós, reles mortais e incapazes aprendizes. É uma chibata na medida em que dói ser julgado. A sentença arde e corta nossas peles jovens e frágeis, fazendo jorrar o temor, o temor da sentença do julgamento dos homens, a condenação perpétua.

Todos saem de sua aula temendo. Temem ficar cara-a-cara com os outros, os alheios.

Professor, fazes perguntas que muitos de nós sabem responder, mas que por temor do julgamento, do seu e do restante dos não tão companheiros, calamos. E eu sei que o senhor não consegue suportar o silêncio. Silenciar também dói. Tampouco aceita o erro. Sento assim, eu pergunto: Por que o senhor existe? O senhor é um grande erro e nos induz a ele através do martelo. Bata o martelo, professor. E, antes de nos condenar, condene a si mesmo, condene suas infiéis classificações e quadro de valores ultrapassados. Condene sua conduta e sua voz contraditória. Condene-se!



Pois bem, perdoe-me pelo tom.
Peço desculpas também pelo pequeno “acervo” de livros que tenho. Perdão por nunca ter lido uma “obra” de Pontes de Miranda!!!
É que Nietzsche, Camus, Schopenhauer, Rilke, Yalom, Hesse, Sartre, Dostoiévski, Tolstoi, Sócrates e Saramago ocupam demasiadamente minhas tardes. E Beethoven, Tchaikovsky, Vivaldi, Strauss, Mozart, Bach e Albinoni me pegam pelas mãos, à noite.

Perdoe-me por não me interessar por aquilo que o senhor tem como paradigma. Ah! O senhor não sabe o que é paradigma? Paradigma é Pontes de Miranda, Nelson Néri Júnior, Luiz Guilherme Marinoni e Cândido Rangel Dinamarco.
Desculpe por romper, literalmente, seus paradigmas!
Mas é que o tédio é ácido e o sono é tão materno...

Absolva-me de ter de ser como você!!
Livra-me dos teus pensamentos mesquinhos e ocupações imersas na lama!
Poupa-me das tuas palavras vazias e teu método exausto de rouco cantor mexicano!

Hoje, condeno-te à castração! Rumo ao celibato! Não mais reproduzirá alunos! Chega de dar a luz a Harpias!
O senhor está fadado à esterilidade estudantil!

Considere-se privilegiado por eu não adotar Hamurabi como paradigma. Se bem que no fim, é olho por olho, dente por dente.

21/03/06

Brasil

Um parto complicadíssimo!

Nascera da invasão de um tal estrangeiro ibérico lá dos Açores na humilde, primitiva e, futuramente, latina, Vera Cruz. Era então o mais formidável de todos os bebês do mundo.
Não se sabia qual era exatamente o sexo, mas, de certo, teria uma alma feminina, de pátria-mãe, delicada e batalhadora como as mulheres aviriam de ser. Possuía dois imensos globos oculares azuis-esverdeados que mais pareciam uma mistura entre o oceano que a banhava e um reflexo cintilante de mata ainda virgem. Seus cabelos eram de um castanho perfeitamente comparável com o dessas terras boas para plantio, que a menina conhecia como a palma de sua mão.

Ainda pequena, pessoas, vindas de todos os cantos, lhe ensinavam as primeiras palavras, ignorando propositalmente as outras que a meninota já havia aprendido. Com o tempo, a língua de seu severo pai prevaleceu e o português tornou-se seu idioma oficial. Mas ela guardava a língua originária e todas aquelas pessoas estavam, definitivamente, em seu peito.

Tão cedo e já se deparara com a dor da perda! Sua mãe, Vera, a deixou nos primeiros anos de vida. Deprimido, Cabral, seu provável pai, exilou-se por uns tempos lá no estrangeiro e abandonou a pequenina indefesa, agora, à mercê de sua sorte.

Adormecida, num sono quase eterno, lá jazia a tal ilhazinha, lá pros lados do sul. Anos de esquecimento passaram-se e, repentinamente, seu pai resolve voltar juntamente com os tios, primos e todos os demais parentes. Com a desculpa de que queria reencontra-la, rapidamente reestabeleceu-se ao lado da filha.

Sabe-se que, na verdade, o pai ausente estava mesmo era com receio de que a menina crescesse e lhe exigisse pensão alimentícia. Então, ele o faria antes! Vera havia deixado uma gorda herança para a garotinha que escondeu tudo dentro da floresta, prometendo para a mãe que jamais contaria a localização do tal tesouro. O pai, ludibriando a própria filha, inventou uma súbita doença incurável, dizendo que estaria prestes a deixa-la novamente, só que desta vez, para sempre.

Sentiu, nos lábios, um gosto de sal que jamais esqueceria. Não era o sal de seu mar, eram as lágrimas que lhe cobriam a face, jorrando como gotas de chuva e escorrendo como a saudade antecipada do que nunca teve e sabe que nunca terá. Sem pensar, contou seu segredo para o pai. Nota-se que desde então a corrupção fez-se presente em sua vida. O homem, que deveria ser pai, deflorando a mata, descobriu a madeira, e depois descobriu o ouro, depois inovou com o açúcar e o café, abrindo estradas de ferro e explorando também o ferro.

E então vieram as revoluções urbanas, o desenvolvimento tecnológico, as hidrelétricas e toda a parafernália corrosiva. Lembrando que, seu insaciável pai, cansou-se por uns tempos de explora-la devido à má situação financeira que passou a enfrentar. A produçãozinha medíocre da menina não era suficiente para matar sua sede capitalista. Resolveu deixa-la em paz e ela se tornou independente, não porque conquistara sua liberdade, mas, porque seu pai assim o quis.

Mal começara a viver e só lhe restavam os braços. Uma paralisia crônica a atingiu nos membros inferiores. Não alcançara sequer a adolescência, pois não crescia. Os médicos não lhe davam esperanças e queriam mais era amputar suas perninhas necrosadas, atrofiadas pela imundície. Ela sabia que caminhava lado a lado com o grande mal do século e, que, não era esse, a solidão. Mas que, agora, lhe era totalmente impossível caminhar. Teria de se virar com a cadeira de rodas. Que espécie de médico é essa que a assassinava lentamente? Coquetéis de remédios e várias cirurgias para tentar retirar toda lama, todo lixo parasita que se instalara dentro dela; o que era impossível dado o tempo de putrefação: 500 anos.

A criança aleijada que há pouco ensaiava seus primeiros passinhos, agora se via impossibilitada de fazer o que mais gostava: pular carnaval. Os médicos, que ela mesma escolhe a cada quatro anos, lhe deram duas alternativas: livrar-se da paralisia através dos coquetéis ou a amputação. Ela optou pelos remédios. Um milhão de comprimidos a cada dez minutos. Sentia-se, além de fraca, anestesiada. Aquela melhora parecia-lhe extremamente distante. Os remédios não surtiam efeito algum. Cansaço e indignação a dominavam. A esperança tinha sido bruscamente substituída pela revolta, mas pela revolta silente. Havia vozes dentro si clamando por recuperação. Sua vontade era gritar. Pensava que o movimento interior poderia modificar a realidade exterior. Poderia curar sua paralisia através do grito, da força, da imposição da justiça, da anarquia...

Mas tudo isso também lhe parecia romanticamente impossível. As revoluções eram para seus tutores, eles sim são fortes e possuem guerrilhas armadas e toda uma máquina estatal de fazer inveja. A ela cabia apenas receber e obedecer às ordens de seus tutores diariamente. Até então nunca se comportara de modo a importunar seus novos pais que a adotaram por compaixão. Também se sabe que isto é uma inverdade, dado que a compaixão sequer existe. O fato que motivou a adoção é o mesmo que levou o pai biológico a procurar novamente a filha após te-la abandonado durante 30 anos. Comportada como sempre fora, não haveria de enfrentar aqueles que a acolheram, apesar das vozes ficarem cada vez mais estridentes com o passar do tempo, teimando em romper as fronteiras do inaudível. Ainda assim sua revolta era silente, pois como boa brasileira, apesar de gritar dentro de si, tinha o instinto de se calar e curvar-se ante o seu superior.

As vozes a guiaram, fizeram-na ingerir um de seus comprimidos mais poderosos: o voto. Engoliu a seco. Contratou novos médicos e, pela primeira vez, estava certa de que se curaria. Olhava para as pontas de seus pés, outrora, de bailarina, e sentia a esperança pairando. Como numa prece, pedia ao doutor que a livrasse de tudo aquilo que a corrompia, daquela angústia perpétua, daquela ignorância progressiva. O médico riu e a anestesiou.

Quando acordou, a criança havia perdido para todo o sempre suas pernas.Nunca mais poderia andar. Jamais iria crescer. Sentia-se culpada, afinal, fora ela que nomeara os médicos. Esses, tentavam alivia-la afirmando que existem próteses perfeitas e que amputar seria como cortar o mal pela raiz. A criança não respondeu e continuou mais calada do que nunca. A paralisia não só não passara como, também, aumentara. Tinha, agora, todo o corpo paralisado, mas somente o corpo.

Os médicos há muito que desistiram de seu trabalho. Para eles, a garota era um caso perdido. Estava em coma por muitos anos.
Mal sabiam os espertalhões que a tal menina ainda vivia dentro de si e mais do que nunca! Ela ouvira tudo. Eles, os médicos, estavam em conluio, arquitetando sua morte e envenenando-a todos os dias. E mais! Planejavam, agora, amputar-lhe os membros superiores... que, cá entre nós, atualmente, era tudo o que havia de superior na criança.

Acordada do coma, sentiu como se 170 milhões de olhos chorassem ao mesmo tempo, explodindo em lágrimas. Não conseguia livrar-se da culpa. Ela contratara tais médicos, ela mesma, no fundo, era responsável por sua morte. E, revestida de uma sabedoria tardia, demitiu os médicos e gritou até surgir a rouquidão.

Era tarde. Nada poderia fazer para ter suas pernas de volta, mas, andaria com as mãos se preciso fosse.
Assim, com a força dos braços e com os punhos cerrados, a criança luta para crescer, caminhar e livrar-se dos remédios amargos da vida.
Sonha em encontrar um médico que cure verdadeiramente seus males e que a faça esquecer de todas as vezes que teve suas partes amputadas por pura ambição e capricho. Jamais esquecerá de sua infância dolorida, bem se sabe, mas, espera que o que não a mate, a fortaleça.

Um dia impossível de ser esquecido foi o dia de seu batismo, o dia em que lhe foi atribuído seu nome. Hoje vive como aquele que vai a falência e resta-lhe o nome. Hoje, a antiga criança, é mãe adolescente, de primeira viagem, dessas que não sabem sequer como segurar um bebê, mas, que aprendem aos poucos, a cuidar de seus filhos. Filhos sem nomes.


07/2006

Rua sem saída

RUA SEM SAÍDA

Abria seus olhos lentamente, com o piscar cansado e com a sensação de ter a alma espancada.
Acordou de um sono pesado e mortal que a atingira por toda uma vida. Levantando-se rapidamente, como se o chão gelado cortasse uma de suas vértebras, ainda ofegante, olhou para os lados a procura de uma resposta aparentemente inexistente. Diante de seus olhos:
a claridade invadia uma sala sem teto.

Não sabia o que fazia ali, tampouco como havia chegado ou porque dormia. Sabia que aquele local lhe era familiar, talvez, uma lembrança distante, de algo distraidamente observado e inesquecivelmente absorvido por seus olhos de menina. Era como um “dejá vù”; sentiu-se estranhamente dissimulando, vivendo uma vida que já fora sua.

Em sua direção, havia uma placa. A menina encontrava-se longe demais para enxergar o que a placa transmitia.
Já em pé, procurou pisar lentamente, não queria atrair a atenção para si. Mas logo percebeu que estava sozinha. Não havia ninguém ali, apenas ela.

Atrás da placa, uma parede. Atrás de si, outra parede e, de ambos os lados: paredes. No alto dos muros, lanças refletiam e apontavam para o infinito. Ao aproximar-se da placa, tropeçou em um carrinho de brinquedo. De fato, alguma criança o esquecera, mas como? Como uma criança poderia ter estado ali? Era definitivamente impossível. Um cubículo, uma caixa sem tampa, um recipiente... sim, sim.. era assim que ela se sentia: um rato de laboratório, uma cobaia. As paredes pareciam comprimi-la. “Um esmagamento tirânico-cerebral?” – pensou.

Aproveitando a queda, olhou para cima e conseguiu ler o que continha a placa: RUA SEM SAÍDA
Súbita, uma gargalhada ecoou pelo cárcere mental, lembrando a garota de que nada poderia ser mais óbvio. Era claro que ela estava presa e não havia como escapar. O chão era de um cimento transparente indestrutível que, ironicamente, refletia o céu sobre seus pés e as paredes pareciam aço. “Cercada pelo céu?” – pensou.
Não poderia escalar porque era pequena demais para muros tão elevados; corria o risco de cortar-se com as lanças privativas do desejo.

Olhava para o alto e sentia-se cada vez menor diante da imensa materialidade cotidiana. Mas, porque diabos a acompanhavam a placa e o carrinho? Sentiu o suor escorrer-lhe a face e enxugou-o com sua camisa azul. Era sua cor predileta e era a cor do carrinho de brinquedo. Sentou-se e resolveu pensar numa maneira rápida e eficiente de escapar daquela prisão de alma.

“Rua sem saída”, “carro”, o que tudo aquilo significava? Teria importância o sentido das coisas ao seu redor? Teriam, de fato, sentido?

A partir de então, jurou para si que iria desvendar o sentido. Alguns vivem em busca de felicidade, outros procuram o amor. Tolice! A garota, mesmo não enxergando, decidira procurar e descobrir um sentido para sua existência. Sim, as coisas ao redor tinham suas significações particulares. E qual era a sua significação? Porque ela se encontrava em tal situação? O que fizera para merecer tal fardo? Seria um castigo? Uma provação? Um acaso? Um mero acidente?

Sabia que a placa significava toda conduta moral imposta, toda cultura padronizada de épocas infindas, toda lama sacerdotal insistente em pregar cruzes, todo lixo intelectual torturante e viscoso, todo vômito blasfemador das bocas podres dos crédulos. E lá estava a placa, à sua frente; nada poderia fazer para mudar aquela realidade, tinha de enfrenta-la. Mas, sabendo que tudo aquilo era apenas a idéia de uma placa, procurou desfazer em seu cérebro tal imagem e significado.

A placa sufocante tentara asfixiar os objetivos da pequena, mas perdeu-se em sua própria tentativa de conversão. A garota elevava seus pensamentos e a placa fatalmente deixaria de existir, não mais faria parte daquela realidade obscura. Com placa ou sem placa, seu aprisionamento era o mesmo. Com um semi-sorriso no canto dos lábios, pôs-se a fitar a placa, imaginando sua destruição. Não tinha forças físicas para transformar a significação da placa, mas tinha forças mentais suficientes para explodir a biosfera.

Forçando um esquecimento, tentou apagar de sua mente a imagem da placa do destino. Ela sabia que tudo não passava de símbolo, representação. EUREKA! Era isso! A garota estava aprisionada em suas próprias convicções e a única maneira de se libertar era repensar os valores e condutas até então tidas como úteis e ideais.

De repente, lembrou-se do carrinho. O carrinho era a representação de sua vida. Pequena demais para tais ruas, inofensiva, cíclica, finita, imperceptível. Aquele carrinho de brinquedo era ela: frágil, utilizável apenas para diversão alheia e infantil, sem motor, sem força, disponível a qualquer um que a empurrasse.

Afogando-se em lágrimas, começou a gritar. Era preciso gritar para que alguém ouvisse. Alguém poderia existir além das muralhas de sua escravidão. Mas suas palavras foram ditas ao vento: “NÃO! CANSEI DE BRINCAR DE VIVER!”


Certo. Sabia da prisão, do significado do carrinho (sua vida) e da placa (seu destino). Mas, destruir a placa era a atitude correta? Deveria acabar com seu destino ou modifica-lo? Cansada de toda a ladainha cerebral, encostou-se num cantinho do cárcere e olhou para o céu. Uma criança jamais sairia dali. Talvez sua mentalidade fosse infante demais.

Vestiu-se de silêncio para captar sons vindos de fora, mas houve reciprocidade. Atenta a qualquer sinal, avistou um ponto verde do outro lado da sala, era uma borracha, um apagador.

Não. Seria muito fácil apagar a legenda da placa. Novamente foi tomada por um riso sarcástico. Como poderia apagar o que leu se já tinha apagado a própria placa? Foi mais rápida que sua mente. Ela mesma projetara a borracha e nem sequer precisou de tal arma.

Refletiu a tarde toda e, quando o dia insistiu em cair, ela começou a enlouquecer. A noite não tardava, a fome a corroia, precisava escapar da prisão de suas convicções, do confinamento perpétuo do espírito.

Apenas um fantasma seria capaz de vencer aquelas barreiras, mas ela estava viva e, mais ainda, esta era uma das crendices que ela também tinha de escapar, de derrubar, de enterrar. “Fantasmas não existem” – pensou. “E eu? Existo? Isto é real?” - repetia para si com a mão na garganta. “Sim. Eu existo para mim”.

Tomada por pensamentos sublimes, lembrou-se de um trecho de sua escritora predileta: “Mas, se o que está embaixo cresce, dolorosamente ou não, é a afirmação de que há esperança e de que há possibilidade de melhoria. De que é possível mudar, de que somos mutáveis. E se assim é, não precisamos que ninguém nos mude ou tente nos salvar. Nós mesmos temos capacidade de superação”.

Superar a si, crescer, elevar-se! Alcançar a liberdade.... liberdade... asas...e... lágrimas novamente! Voar!!! Era isso que ela precisava!

Jogou longe a borracha, partiu o carrinho ao meio e decidiu fazer o seu próprio destino, uma nova vida. Chega de memórias, ela clamava pelo desconhecido! Fantasmas e crianças mentais, eram predadores disfarçados. Nada poderia detê-la. A garota nascera para voar.

A vontade seria sua asa e lhe ensinaria o primeiro salto para além do confinamento. Longe do cárcere mental, longe da prisão de alma, longe das convicções parasitas, ela poderia ser ela.
Guiada pela vontade de superação, a garota tornou-se o que sempre fora: NUVEM.
Logo, suas lágrimas transformaram-se em gotas de chuva e ela se dissipou no predileto azul do infinito.

04/2005
Antes, eu era uma rua.
Aqueles que caminhavam, me pertenciam.
Alguns me visitavam todos os dias, mas eu não entendia o porquê da partida deles.
Até o dia em notei que eu só servia de passagem e que meus ombros, doloridos, eram a base de seus pés.
Tudo o que faziam era pisar-me todos os dias.
Eu tinha alma de sarjeta.

Foi quando a minha vida transformou-se em enchente. Em água que cai do céu e corre para o mar. E eu?
Eu me tornei mar.
Sou eu, agora, o traiçoeiro. São as minhas ondas que vêm e vão.
Ninguém mais pode pisar em mim, nem mesmo os profetas.

"Navegar é preciso, viver não é preciso”.

Uns escolhem a primeira opção. Escolhem, mesmo sabendo que esse mar é bravo, perigoso... que ele nunca traz de volta aquilo que leva. Que ele e sua correnteza tentam sempre afundá-los, que ele quer os ver afogados nele. Portanto, não reclamem!
Eu escolhi a segunda opção.
Porque o meu mar é morto.
Porque a vida de marinheiro é tão solitária...
E nem pescar já é possível, no meu mar.
Quando eu navego pelo imenso oceano de mim mesma, encontro um ou outro pescador... mas eles têm sempre a barriga vazia.

Triste por ter um mar negro, eu chorei, chorei e chorei; mas as minhas lágrimas não são azuis nem cristalinas.
O único sal que sinto é o das minhas lágrimas.
O meu mar não tem peixe, não tem vida, não tem cor.
É um eterno afogar de mágoas, águas passadas.
É a calmaria da espera da chegada dela.

Eu escolhi a segunda opção justamente por não suportar ver-te afundar; porque eu quero que "o bom filho à casa retorne".
Quero a segunda opção porque eu já naveguei; e quero-a, mais ainda, porque eu sou um oceano de mentira.
Quero porque meu mar é morto, porque meu mar é negro, porque meu mar é torto.

Eu nasci só para mim.

09/2005
Para o inferno esses porcos!
Como ousam falar em moral?
O que é que lhes fazem dignos de pisar neste chão?
Tentam, a todo custo, nos prender nas jaulas da hipocrisia invisível, para que lá, admirem o que chamam de vexame.
Mas antes, eu vos pergunto:
O que é certo e errado quando se tem cérebro?
O que é correto e absurdo quando há superação?

Gosto de cometer pecados aos olhos humanos.
Meu maior feito é chocar os homens perplexos para que possam repensar em suas críticas antes mesmo de fazê-las.
Que venham os símios! O homem já foi superado.

01/2006
Escalei o muro da vida.
Do alto, enxerguei com clareza aquilo que os baixos não vêem.
Vi o céu a pesar sobre a minha cabeça, enquanto os pássaros, ao meu lado, observavam calmamente a ilusão dos que permanecem abaixo.
Escalei o muro da vida, fugindo das vespas que insistiam em me perseguir.
Tenho marcas por todo corpo como prova de suas traições.
Alimentava-as com mel e deixava-as abrigadas em mim.
E no entanto, era pouco.
Como confiar se é, da natureza delas, ferir?
Ainda sinto as picadas na veia, fui envenenada.
Fugi. Mas, não por medo, por exaustão!
Cansada de viver rodeada por vespas, escalei o muro da vida e, aqui, permanecerei eternamente observando a tristeza de não se poder ser nada além de vespa.
O que há do outro lado do muro? Aquilo que só quem está acima pode enxergar.
Aquilo que essas vespas, em especial, não possuem: Asas!
Sei que um dia, hei de descer do muro e me juntar novamente às vespas.
Será o dia em que cairei com perfeição e o abismo me acolherá com seus braços fraternos.
Neste dia, será proclamada a minha independência.
Não mais farei parte da sociedade impostora das abelhas.

01/2006
A significação do mundo é girar, incansavelmente, e retornar ao ponto de partida.
É preciso que a noite morra para que nasça o dia.
É preciso que o dia morra para que surja a noite.
É preciso morrer para que o mundo nasça todos os dias e todas as noites.
A morte é o real significado da vida.

O que dizem os tolos sobre a existência divina e a finalidade do ser?
"Não sei, só sei que foi assim" ou "Tudo que sei é que nada sei".
Bobagem. Saber que não se sabe de algo já é, por si, um saber. Saber que foi assim, também é um saber.Atribuímos sentidos às coisas e se nada formos, ainda assim somos algo: o nada.
O nada também tem sentido de ser.

12/2005
Ma seule vérité:

Naquela noite em que saí correndo, fugindo do mundo para que ele não me alcançasse...
Naquela noite em que o vento bateu gelado no meu rosto e secou minha lágrima como se fosse meu melhor amigo, naquela noite, cada passo que eu dava era um passo de desespero e liberdade.
E a única coisa que eu ouvia era a sonata ao luar... e cada passo ia aumentando o volume.. e a música ia ficando cada vez mais alta... e a dor também. Porque é sempre ele que está comigo. Bee...
Naquela noite, tudo que eu via tornava-se pó... porque tudo era pó diante daquilo que eu sentia. Nada era capaz de suportar aqueles olhos de apelos tristes... e eu vi. Eu vi com a alma que eu não gostaria de ter, eu vi tudo, em um segundo, virar pó. E enquanto os meus pés quase descalços iam pisando naquele chão de incertezas, enquanto tudo era pó, a cor ia ficando pálida e a respiração ofegante, enquanto isso, o que pensavas? O que fazias?
Eu corri, atravessei a rua da vida, subi no muro calmo da minha própria angústia...e você? O que fez?
O que eu encontrei? Fora o cansaço, o tédio e a mesmice? Alô mediocridade!
Respirei toda a realidade possível para que aquilo fosse apenas mais uma noite.. impossível. Quase morri asfixiada.
E o meu suor foi a prova da minha inútil tentativa. E as minhas mãos, trêmulas como as suas, foram desenlaçadas levemente pelo vento.
Naquela noite... naquela, aquela, ela: eu.
E tudo que eu queria passou a ser passado. Eu ouvi. Eu vi. Eu respirei, pisei, toquei, suei... E nada disso serviu para que eu ou você aprendêssemos que a vida passa e não volta jamais.


C'est fini le temps des rêves.

13/07/2004
Antes que comece o falso dia-a-dia
Meto-me uma bala!
Certa e útil melancolia de
Quem consente, ama e cala...

Poesia de sombra que me faz ausente
Silêncio triste do meu vazio de ar
Viaja comigo nesse trem descrente
Grita, maldita! És flor a murchar...

Murcha, pois, e deixa-me só
Tudo que há é um ser morto
Fez-me doente, verso em pó,
Das lágrimas, navio sem porto.

E eu que fui tão Milena
Não fui nada mais que fim
Sou mulher e sou pequena
Não sou nada sem mim.

Meto-me uma bala e adEUS!
Cessa todo um universo agora
Mundos somente meus
De inscontantes e tormentadas horas!

Bala da fuga e da saída
Dá-me o mel, mostra-me o caminho
Cura-me a ferida,
mãos e olhos de partida
Terra do sozinho!

Como é triste a despedida!


22/11/04

Para um ausente

Primeiro texto escrito para o ausente (junho de 2005):

Tenho uma pilha de filhos que jamais abandonaria: os meus escritos.
É pena que o comunista que não podia ter posses, deixou que o abandono fosse o seu senhor.
Só me restaram a ausência e uma lápide:
Aqui jaz o poeta frouxo e covarde que um dia fugiu de si e nunca mais olhou-se no espelho por vergonha dos atos podres que cometera num passado não tão remoto.

Não há nome na lápide, seria vexame demais.

Há homens que não são dignos nem do nome que carregam.


Não é rancor. É indiferença.
Eles nunca tropeçam porque olham sempre para o chão.
E eu fico aqui me perguntando qual será o dia em que eles erguerão suas cabeças, sem medo de tropeçar, e deixarão de curvar-se ante a possibilidade de aparição do rei...
Eu prefiro cair à servir.
Só olharei para baixo, quando estiver no alto e puder cair com perfeição.
E se alguém me empurrar, procurarei beijar o abismo.

2005
Aforismos escritos em 2003

A minha loucura é bailarina de caixinhas de música.

Quero poder assinar meu nome no atestado da minha perda maior. Tenho minha mão como inimiga mortal.


Dá-me tua mão!Percamo-nos! Percamo-nos pecando no nosso mundo de janelas e olhos quase humanos.

A ironia não é DO destino. É O destino.

Vivo como quem silencia um segredo de além-túmulo.

Carrego no ventre, a filha do mundo: a poesia.

Não é o pecado que corrompe, mas, a idéia de que ele existe.

Quantas vezes me peguei diante do espelho sem enxergar aquilo que eu nem posso dize que era reflexo? Quantas vezes me vi chorando no universo solitário das paixões alheias? Quantas letras tive de exibir para suportar peso, resistir à demanda? Quantas, se eu nem sei contar?

Quem ancora ilusões, morre afogado.
Na brincadeira de ter que viver, o suicídio é um consolo.
A vida, essa roda gigante que insiste em girar, retorna ao ponto de partida quando anseia pelo céu e pelo abismo.
Assim sou. Esse é meu destino. Um grande parque e porquê de diversões.
Estarei fadada aos narcóticos da alegria? Terei de aceitar essa falsa felicidade? Esse súbito e etéreo sorriso infantil? Não! Mil vezes! Basta de trens fantasmas e mágicas!
Tenho as pernas tortas de tanto pisar “errado” e minha coluna sacrifica-se em insistir na postura ideal. O medo seria um passo em falso? Um sentimento forte por uma pessoa fraca seria, no mínimo, injusto. Por isso, não temo; receio? Para quê? Por quem?
Para navegar é preciso uma coluna ereta e um bom estômago. Para viver, bastam-me os tortuosos chutes alheios. Maior é aquele que comete suicídio e permanece vivo.

Besteirinhas juvenis - outubro de 2004
Dorme criança, dorme...
Dorme, que, enquanto dormes, velo o teu sono com o meu mais profundo querer.
Dorme, que a vida passa e já é tarde para acordar.
Dorme e sonha sonhos de verão intenso.
Dorme, que a chuva há de te lavar a face e te fazer nova.
Dorme, minha criança querida...
Em outro mundo mais teu, te esperam os magos do renascimento.
Fazê do teu travesseiro seu único e verdadeiro amigo.
É ele que apóia a cabeça pensante do mais inocente dos meus amores.
É a ele que você se entrega todas as noites. É ele que sustenta o peso do teu sonhar.
Dorme, meu amor, que outro dia nasce e eu anoiteço... esperando que o tempo resolva duas décadas, duas decadências.

Besteirol feito para um ex qualquer, já perdido e esquecido.. também no início de 2005.
Eu suporto nas costas o peso dos calcanhares do mundo.
Dói sentir os pés descalços e gelados da fome.
As garras afiadas das pombas da ignorância.
O bico pontudo daqueles que não querem calar e têm calos.
Dói ser pisado por tantos e servir de apoio para poucos.
Ainda bem que tenho alma de areia movediça.

Só encontro felicidade em sonhos.
É por isso que tenho olheiras enormes.
A minha cama é a minha nave espacial e especial.
Nela, eu percorro os caminhos do eterno retorno.

03/05
Eu sou do tipo que pisca rápido e deixa para atrás o passado de olhos úmidos.
Deixo o cabelo cobrir a face para não mais enxergar o dilúvio da vida.
A minha vida é enchente cheia de gente. É água que cai do céu e corre pro mar, é vento que destrói casa pequena; é ruína.
Permitam-me, por favor, virar as páginas do livro aberto da vida.
Se me encerro, é porque desmorono.
A minha vida? O paradoxo do ser!A minha profissão? Iconoclasta!
Sou tamanho do que vejo... e daquilo que não se pode enxergar.
Tenho sede de alma, vontade de cego e tenho meus infinitos.
O erro da minha vida foi tê-la feito minha.
Mas eu vou casar comigo para ter filhos que saibam dançar.

Meu pensamento é tango nordestino que, com uma rosa na boca, gira, e nas cambalhotas da vida,vai de encontro com o salto mortal.

Minha verdade única é ser fumaça.
Eu sou como fumaça de cigarro aceso
Sugam-me as estranhas entranhas dos homens,
Tragam-me até meu último suspiro.
Depois, me deixam partir e me expulsam do peito.
E eu fico ali, ensaiando uma valsa,
me dissipando no ar que não me deixa esquecer que um dia já fui fumante.

Somos só nossos.

fev de 2005
Talvez seja somente isso
Não há transcendência.
Talvez eu deva silenciar, aceitar, abaixar a cabeça quando a ordem for dada.
Talvez eu deva me reverenciar a tudo que me é imposto porque, talvez, isso seja coerente.
Talvez eu cesse e vire menu de vermes e só.
Talvez eu não passe de existência - e como toda - efemeridade.
Talvez eu deva fechar os olhos, tapar os ouvidos, costurar a boca, algemar os membros e pedirpiedade aos meus senhores.
Talvez eu deva parar de sonhar, parar de ser, para que outros sejam...
Talvez eu deva pedir perdão, porque tudo passa, tudo é vão...
Talvez eu deva fazer tudo isso para aprender o real significado do sentido. Mas isso só seria possível se alguém o fizesse por mim, porque, infelizmente, me foi dada como primeira, a ordemsuprema: VIVER!

07/12/2004 - É tão... juvenil!
Eu sou uma ponte.
Tenho em mim dois caminhos e um abismo.
Sobre mim: o céu
Sob: Pessoas habitam abaixo do meu ser.
Elas são os meus desejos subterrâneos.
Têm fome, têm sede e são ignorantes de si.
Morrem silenciosamente, aos poucos, esses porcos do destino.
Eu sou uma ponte quebrada dessas que têm até placa: "Não se aproxime: Ponte quebrada."
E, ainda assim, têm uns tolos que insistem em me visitar de vez em quando.
A minha madeira está podre. O meu cimento rachou. Não sou útil e as pessoas não podem mais passar por cima de mim. Eu já não uno dois caminhos, eles continuam separados.
Permaneço imóvel no tempo e no espaço.
Se fosse Nietzsche, eu diria que gostaria de "pronfunda, profunda eternidade".
Como sou ponte, eu quero mesmo é o abismo!
Ei, menina...
Não vês que há uma placa de PARE?
Não vês que a solidão é o tal remédio para a alma?
Veja, criança ser cor!
Veja ao longe...
Cruza o infinito uma estrela de pesares que divide o céu imenso.
Chove, então, da tua face branca, lágrimas da verdade pura.
Não te aflijas, menina!
A vida é assim mesmo, uma constelação dolorosa de sins e de nãos.
Do lado direito: os fracos. Do lado esquerdo: os justos.
O resto? O mundo!

17/11/04
Canção do Exílio (Entre prosas e poesias) - Também antiga.. 4 anos atrás.

Ah... Que saudades da minha terra ( e da minha Terra) !
Terra em que já não há
Terra onde travei guerra:
A luta maior era amar.

Mas amar dá ferrugem no peito,
Envelhece a alma ,
Apodrece a razão.
Nessa terra, colhi o respeito
Vá em paz, meu coração!

Nada tem de exílio esta canção
Nem métrica nem rima rica,
Mas a dor da partida fica
guardada nas linhas acima - linhas de absolvição.
Ilusão?

Que merda de texto é esse
que não consigo parar de escrever?
Cai a noite, durmo e jazo, antes do sol nascer.

Ainda que prefira a prosa
A poesia me persegue
Faz-se menina nova
Convencer-me consegue.

Não entendo muito das perfeições silábicas da vida,
Mas compreendo essa cantiga - Perfeição imperfeita do
método MI, onde reinam a imprudência, a espontaneidade e a bagunça em SI.
A loucura, o sorriso e o olhar en FÁ (tizados).
A dor, o amor e o ser ficam pra LÁ ---> (coitados!).
E eu, na minha terra, fico SÓ.
Sem perdas, sem danos, sem DÓ.
Marcha RÉ da poesia, amiga da prosa, horrorosa:
Milena.
A angústia de não saber quem sou, aliada à tristeza de saber quem fui e ao desespero de saber o que serei.

Tenho dores de cabeça constantes.

Acho que me perdi na estreita atmosfera de ser aquilo que sonhava.

A vida? Uma garrafa! Quando o líquido, o sólido e o gás se fazem um só.
Se de vidro, quebro-a!
Se de plástico: reutilizemos!
Se de pedra, sê de pedra! Perdi...
E beberei o conteúdo da garrafa com a mesma ânsia com que bebo estas linhas.
Viver... não mais que engolir!
Viver... não mais que estar preso em uma redoma de vidro!
Viver... não mais que transbordar!

Enquanto isso ou aquilo, tenho sede!
Dêem-me a garrafa da vida!
Quero me embriagar até cair...

(texto antigo)
Esse eu escrevi aos 18 anos, logo quando me mudei para Maringá.

Uma mansão.

Uma mansão perdida no tempo e no espaço e para todo o sempre.
Ficava na rua da saudade, na estação das luzes, a quilômetros e quilômetros distante do mundo dos crentes... esse mundinho fútil, pequeno e vazio em que todos vocês, canibais, vivem.
Ela morava sozinha naquela mansão. Era a dona de tudo aquilo. Toda a mansão lhe pertencia, lhe fazia parte. Era sua, por mais triste e distante que fosse.

Paredes brancas, limpas e altas. Dezoito quartos. Uma enorme sala de jantar e uma minúscula sala de estar... porque ela não gostava de estar. Um banheiro que cheirava eucalipto lembrava-a da casa de seus avós; e uma cozinha de mármore e antigas cadeiras que era pra ela se deliciar com tudo aquilo que não sabia fazer, mas que sonhava, um dia, em aprender.

Todos os dezoito quartos eram iguais. Possuíam uma cama, um tapete, uma porta, uma janela e uma cortina. Os tapetes, todos vermelhos, e as camas enormes, com colchas floridas, pareciam esperar incansavelmente o eterno hóspede. Ali permaneciam como se ele fosse chegar a qualquer momento. E então ele pisaria, deitaria e ali seria feliz.
Portas abertas, grandes cortinas amarelas abertas, janelas abertas, tudo pronto para o hóspede chegar e o relógio a tocar no corredor e a lembrar a criança de que o tempo passava, passava, e ele não chegava, ele não voltava. Senhor das horas que passam... Tempo...

Todos os dezoito quartos eram iguais, exceto por um, o quarto central. O quarto que dividia a casa e a criança em duas infinitas metades.
Esse quarto possuía um tapete branco; uma cama pequena, de solteiro; uma cortina azul-marinho que vivia fechada, assim como a janela de vidro. A porta permanentemente trancada, porque ali, nem o hóspede nem ninguém, poderia entrar. Compreendem? A mansão era do hóspede, mas aquele quarto, ao menos aquele quarto de simplicidade máxima e coragem mínima, aquele era verdadeiramente seu. E só ela possuía a chave... A chave da vida.

Em uma noite do dia 20 de setembro, calor infernal, borboletas na luz, do ano de 2004 a.H (antes do hóspede), ela sentou; respirou um ar de poeira, de história, de coisas antigas; comeu um chocolate (Há mais metafísica que comer chocolates?) e pegou na mão suja a chave da vida que estava escondida embaixo de um dos tapetes vermelhos no qual o hóspede não mais pisaria.
Resolveu que ninguém mais pisaria em sua vida, muito menos na chave. Só no tapete talvez, mas ela não era tapete, era chave!

Subiu as escadas, tremendo, ofegante, mordendo os lábios, como se aquilo fosse matar ou morrer. Cada degrau, cada passo, era um passo a mais em sua vida. A escada em espiral era íngreme e difícil. Trinta degraus para que ela alcançasse ela. Trinta degraus de evolução, prosperidade, realidade, verdade e finalmente, descobertas.

Colocou a chave dourada na fechadura, parou alguns segundos e pensou nos 28 anos de quarto fechado. Deveria estar imundo, sujo, inabitável; o tapete branco deveria estar preto, a cortina: caída, a madeira da cama: podre. Pensando nisso, ela lembrou-se de que havia um espelho no quarto. Como ela poderia ter esquecido aquele espelho? O espelho que mostrava toda a beleza de sua juventude? Como estaria o espelho? Trincado? Sujo?
Parou de pensar e resolveu agir.

Com lágrimas nos olhos, abriu devagarzinho a porta do quarto esquecido e escutou com calma aquele barulhinho que só portas antigas e únicas fazem. Pisou no chão gelado com o pé esquerdo porque sempre fora de esquerda. A direita era para os fracos.
Com a alma doendo, alcançou o tapete branco que ainda era branco como no último dia de sua vida. Respirou novamente, chorou novamente, e deitou na pequena cama sua que nada tinha de podre. Ali sonhou por uma hora todos os sonhos do mundo. Não conseguia desgrudar a cabeça daquele travesseiro de lembranças e saudades. E o relógio do seu passado continuava a tocar no corredor...

Levantou-se e, como se pisasse em nuvens, foi até o espelho: seu oráculo.
Que triste imagem era aquela? Que triste imagem era aquela! O que os anos fizeram com ela? O que eles lhe roubaram? A frieza do tempo levou a vida daquela criança que só queria ter um hóspede e um quarto seu. Quantos tic-tacs ela teve de ouvir pra que aquele momento chegasse? Pra que ela descobrisse que o quarto era dela e que hóspedes vêm, mas sempre vão embora? Eles sempre têm de voltar...
Olhando para o espelho, tocou o seu rosto como em uma despedida e depois tocou o espelho para tentar crer (seu mundo não era o dos crentes) que aquilo era verdade, que ela era a culpada por sua própria desgraça.

Foi em direção a janela, abriu a cortina do azul do esquecimento que não estava caída, e deixou que a luz mais dura entrasse e lhe penetrasse as veias. Queria ver o chão gelado brilhar, o espelho refletir, a cama desbotar. Queria ver o relógio quebrado.
A janela de vidro permanecia fechada e a luz não era o suficiente. Da janela a criança avistou praias, casas, pomares, campos, cachoeiras, avistou prédios, pessoas vivas e mortas, carros, outras crianças sozinhas e perdidas, aviões, mansões e quartos esquecidos... e avistou um caminho de terra.

Ela abriu a janela de vidro com as duas mãos, escutou com calma o barulhinho único que só janelas como aquela faziam. Respirou o ar mais gélido e puro que alguém possa sentir. Abriu a boca na esperança de engolir e se tornar ar. Fechou os olhos, esqueceu as lágrimas e pensou em tudo aquilo que havia perdido, em tudo aquilo que a vida havia lhe tirado. O quão a vida tinha lhe sido injusta e ingrata. Deixou o passado se dissolver em suas entranhas...
Olhou para o caminho de terra, pensou em ir embora. Olhou para a janela e viu os caminhos que as gotas de chuva ali deixaram. Manchas brancas que se aderiram tanto à janela que sem essa já não seria possível existir. As gotas secaram, mas deixaram sua marca. E o que a criança deixaria se partisse?

Um vento soprou, ardendo seus olhos, e fez com que ela despertasse.
Como se acordasse de um sonho ou um pesadelo, ela enxugou as lágrimas, fechou a janela de vidro manchada de vida, fechou as cortinas que caíram em suas mãos. Deixou a cama desarrumada. Deixou o espelho trincado e o tapete preto que ainda era preto como no último dia de sua vida.
Saiu do quarto com o pé esquerdo, suspirou e trancou a porta novamente, com a certeza de que aquela não era a chave da vida, mas da morte.
Engoliu a chave com a mesma vontade com que havia engolido o chocolate de metafísicas. Ela precisava guardar aquilo dentro de si porque, assim como a gota passou pela janela, ela tinha de passar pela vida, mesmo que a vida já estivesse impregnada de mansões mal-assombradas e hóspedes sem fim.
Quebrou o relógio e morreu.


Corpo de distância e saudade...

Acho que tenho fixação por janelas.

Besteirinhas de posse, poder e revoluções

....A...M...O....I....R....L.....É.....E...I.....N....L...A...U...S...Ã....O .


"Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”

Muito antes do capitalismo canibal, a noção de propriedade já estava embutida no inconsciente humano. Ter é e sempre foi uma necessidade. Tem-se fome. Tem-se sede. Tem-se sono. Têm-se vontades.

A partir do momento em que o hominídeo atribuiu valores às coisas e cristalizou o egoísmo, tornando-se homem, a distinção entre aquilo que é meu, teu e seu, foi concebida.
Nasce, pois, a propriedade privada e o poder social.
Tudo aquilo que é fraco, oprimível e lento será propriedade de algum senhor. Assim é a religião. E assim se faz o poder, sendo esse, invisível.
Todos somos prisioneiros do poder invisível. Todos exceto aquele. Esses são escravos, meros capatazes de seus egoísmos e vontades. Servos de suas rebeldias. Até mesmo os proprietários de territórios. Esses são cães. Cães defensores do osso e do ócio. Cães domesticáveis.
Agora, aquele... aquele é o único que subjuga todos os cães e escravos. O Filósofo é o único detentor do verdadeiro poder: a sabedoria, a loucura, o questionamento, a perplexidade!
Voltando a idéia de que sociedade é cárcere e de que o poder provém dessa, todos somos propriedades, escravos. Escravos de nós mesmos por sempre ansiarmos por algo. Somos servos dos nossos desejos, assim sendo, somos egoístas. Somos estuprados todos os dias por essa verdade.

Eis que surge a real idéia da palavra AMOR.
Sentimento de posse, desejo, poder, egoísmo e estupro.
A visão de que o amor é altruísta, benevolente, é falsa e ditada por escravos do poderio para que cristos pudessem existir. Mas quem sobe nas cruzes, somos nós. A conduta altruísta é contraditória. Prega a utilidade pública, o amor ao "próximo", para que assim exista a possibilidade de possuir o "próximo", dominá-lo. O amor ao "próximo" é a base do egoísmo sentimental. Como pode existir o querer bem à outrem se objetivo primordial da vida é a extinção? Não. Não se quer o bem à outrem. Quer-se o próprio bem. Só há uma espécie de amor: o amor próprio. O amor ao ego. E o que nos é mais delicioso que sugar e saciar por completo aquilo que consumimos?

"O Amor é cego". Não.

Nós é que somos. Amor é poder, portanto, invisível. E o amor é a forma mais perfeita e suprema de poder porque envenena, cega e mata. O amor é o narcótico mais alucinógeno e deles somos usuários dependentes. Atribuímos à ele o sentido de nossa existência, sem percebermos a versão hollywoodiana que lhe é dada.

"...Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente..."

Querem prova maior do que a poesia pra justificativa de que o amor é criação humana? E, por assim ser, idolatremos a nossa criação! Vamos dizer ao mundo que criamos algo positivo e que não queremos exterminar ninguém!
Todo amor emana do povo e em seu nome será exercido! Assim como todo o poder, assim como todo o cárcere, assim como toda vontade, assim como toda criação. Posto que toda criação é ilusão, é ficção. Amor é ficção. Poder é ficção.

Todo egoísmo emana do povo e esse é o culpado por sua própria desgraça.


Assim sendo, somos todos destinados, acostumados e viciados a subordinarmo-nos à uma força maior, controladora e toda-poderosa. Eis que surge o real conceito de deus.
De-EUS, vários eus... NÓS.
O que dizem os tolos sobre a existência divina e a finalidade do ser? "Não sei, só sei que foi assim" ou "Tudo que sei é que nada sei". Bobagem!! Saber que não se sabe de algo já é, por si, um saber. Saber que foi assim, também é um saber.
Atribuímos sentidos às coisas e se nada formos, ainda assim somos algo: o nada. O nada também tem sentido de ser.
O fato é que todos se deliciam com a prerrogativa de que tem de existir uma entidade além, uma força suprema que paire sobre nós, meros mortais. Esse é o ponto! Por que deve existir?
Porque somos esmagados, todos os dias, por instituições que nos governam. Estamos acostumados à dominação, à manipulação. E no entanto, como é difícil admitir isso!! Por isso deve existir!! Porque há anos que o "deve" e o "não deve" está entre nós. E, cá entre nós, é interessantíssimo para alguns, que pensemos assim. É útil, da mesma forma que as condutas morais impostas (mesmo que contraditórias) o são. Porque inibe o homem comum ao poder e o torna fraco e cômodo, sem habilidade para revoluções.
Eu tentarei aqui, ensinar-vos o método revolucionário.
Só há revolução quando revelada uma verdade que modifica o cotidiano. A necessidade que se tem de abandonar os antigos conceitos e planejar fugas para novas realidades é imensa. Só há revolução quando há libertação. E o revolucionário clama pela libertação do "próximo". Esse é o substantivo menos egoísta que existe.
Aqui está o meu apelo: procurar livrar sempre dos confinamentos da corja. Andar pela rota contrária ao covil. Reavaliar sempre todos os valores e condutas até então pregados.
Questionar as imposições e as prisões perpétuas. Filosofar!
A finalidade do ser é ser o não-ser para que outros sejam. Talvez devêssemos nos reverenciar a isso para aprendermos o real significado do sentido. Mas isso só seria possível se alguém o fizesse por nós, porque para nós, os revolucionários, foi dada como primeira, a ordem suprema: viver.
Continuação do texto anterior, escrito aos 17.

A árvore dos sonhos

A garota da janela virara árvore... e sua história não foi das mais belas.
Não tinha agora seu companheiro Bee. Possuía apenas a solidão como eterna e inseparável amiga. Amiga de todas as horas...
Nasceu! Veio por baixo e era, então, uma muda, um brotinho. Seus galhinhos finos, quase imperceptíveis, pareciam tão frágeis ao vento, mas eram de um verde de invejar os mares! Suas folhas eram pequenas, confesso, mas encantadoramente saudáveis e cheias de vida.
Aquilo incomodava as plantas ao seu redor. Como poderia um vegetal tão pequeno e insignificante ser tão belo e tão digno de tamanha dedicação? Não havia como compreender aquela "injustiça". A garota que virara planta precisava ser exterminada e não seria tarefa difícil. A plantinha pequena e inofensiva fora plantada em local inapropriado. Diziam - as más línguas - que ela não agüentaria por muito tempo. Terra ruim. Mas nem fora esse o pior dos problemas da pequena.
Sua tragédia iniciara quando viu pela primeira vez um pé. O pé havia lhe pisado com tamanha força que havia lhe deformado; a planta estava completamente torta e machucada. Tudo por causa de um tênis que lhe veio a acertar o caule, as folhas e o coração.
Felizes, as outras plantas tinham certeza de sua morte, mas, para desgosto geral, a pequena planta renascera. Com toda sua força ela sobreviveu àquela pisada na alma e se reergueu mais bela e forte do que nunca. A garota-planta tinha plena convicção de que chegaria a ser árvore, só não sabia de que espécie... não importavam os outros, a terra ruim, os maus ventos ou qualquer coisa do tipo. Ela sempre enfrentaria.
Depois de recuperar-se totalmente, a plantinha continuou a crescer. Já tinha médio porte quando o vizinho resolveu podá-la. Cortou seus galhos e lhe deu uma forma redonda, feia. Ela virara um enfeite... e as outras, as outras riam! Riam de sua função (não desejada) e de seu formato. Não importava o que a árvorezinha era, mas, o que ela aparentava ser... E a pequenina jamais desistiria. Iria até o fim.
Algum tempo se passou e a garota-vegetal se ergueu mais um bocado. Era agora uma árvore enorme, com folhas largas, flores ao seu redor e frutos que alimentariam o mundo (se preciso fosse). A tristeza era a de que chegara o outono e o inverno. Não houve folha que resistisse à tanta frieza. Galhos congelaram-se. E ela ficou nua e só. Feia. Fria. Apenas ela e ela, somente.
Depois, tudo melhorou e voltou a ser como antes... a primavera! Tudo voltara a ter o mesmo vigor, a mesma magnitude, a mesma perfeição. Era sempre assim: um ciclo; um dia perdia, outro ganhava.
O problema era outro. Plantas dão muito trabalho. Era necessário varrer a calçada todos os dias, pois as folhas faziam muita sujeira. As frutas podres não eram belas. E os pássaros que a pequenina abrigava com tanto amor, não eram tão educados assim. Sem contar que o tamanho da garota da janela assustara. Seus galhos se enroscavam no fio de luz. Gastava-se dinheiro. Melhor seria dar um fim.
O último som que a pequenina ouvira foi o da moto-serra. A última imagem que pra ela brilhou fora a de seus frutos morrendo, suas folhas caindo e seu tronco sendo partido ao meio. E a coitada não entendia o porquê de tamanha brutalidade. Ela não havia feito nada, nem havia pedido para existir. Ela só queria estar ali e crescer em paz. O último cheiro que sentiu foi de suas flores companheiras dizendo adeus. O último toque foi para proteger o pássaro. O último gosto foi o do veneno da morte...
E fez-se festa no pomar.
Escrevi esse texto aos 17 anos, com uma inocência que chega a arder os olhos:

A Garota da Janela

Essa é a história de uma garota que se sentava todas as noites diante da janela e observava a vida passar.
Ela havia esquecido o quão belo é o silêncio noturno e o desconhecido à passar na calçada.
E a moça da janela tinha como única companhia a solidão. Não, minto! Ele estava lá também, todas as noites, à conversar com a donzela, sobre a vida que passava diante de seus olhos tristes. Beethoven era seu maior companheiro.
A garota, ao lado de Beethoven, tinha um cigarro nas mãos que a fazia esquecer das angústias, do martírio e da beleza de ser espectadora, paisagem.
A garota da janela exibia suas lágrimas e seu cigarro como se aquilo a libertasse de um sono profundo, de um estado perpétuo de prisão da alma. E aquilo a acalmava. Só ele a acalmava, ele e a vida solitária.
Até que em uma noite fria, a garota pensou ser uma árvore. E sim, ela era uma árvore. Algo que vem de baixo, algo pequeno... que cresce... que um dia crescerá e amadurecerá e terá folhas verdes, grossas, brilhantes... terá o orvalho da noite... terá frutos suculentos e sementes que pensarão, um dia, como ela. E não, não se trata de evolução, mas, REvolução.
O fato de estar diante da vida e vê-la passar e nada se modificar a perturbava.
Os mesmos pensamentoszinhos medíocres, as mesmas cidadeszinhas promíscuas e provincianas, os mesmos medinhos estúpidos, os mesmos "conversês" ridículos, a mesma atitude ingênua, o mesmo mundinho infantil e cretino de sempre. Nada mudara.
A vizinha da frente continua a assistir "Faustão" (e que Fausto!) aos domingos. O imbecil do ap. de cima continua gritando gol. O fulano ao lado continua catando todas, a ciclana continua vadiando... e a burra histérica continua atrás do burro... E o burro continua burro. E a garota da janela estava farta, está farta... farta de ver aquelas mesmas jogadinhas (afinal, pra eles, a vida é um jogo!) de sempre.
E resolveu mudar. Resolveu ser árvore, mas árvore grande! Talvez mangueira, talvez ipê... ou talvez uma árvore rara, um pau-brasil. Talvez tão autêntica e antiga quanto o pau-brasil por pensar que aqueles "fulanos" desconhecidos poderiam mudar. E ainda se assustam por ela querer ser árvore...
E por isso, a garota da janela, chora todas as noites. Por tentar mudar, por tentar crescer e se sentir comprimida por paredes, jaulas, grades e pessoas vazias.Mas hoje ela compreende o vazio.