quarta-feira, 21 de novembro de 2007

www.releituras.com

Para Dalila

Para Dalila




Nunca me esquecerei daquele sorriso de despedida e do pequeno diário que me foi entregue no dia em que a máscara caiu. Seus cabelos negros – tão longos quanto o amor que eu jamais sentiria novamente - eram poder e força; mas seu nome era Dalila. Minha Dalila.


Os olhos calmos e azuis se confundiam com sorrisos constantes e a auréola da inocência parecia-lhe transbordar da alma. Alegria, calma e sinceridade a compunham. Assim era minha pequena ou pelo menos, assim eu pensava ser.


Eu era seu professor de História e a História foi a grande responsável pelo nosso amor proibido. Morávamos em uma cidadezinha conservadora e retrógrada ao sul da Espanha e foi na primavera do ano de 1939 que inciou-se a minha desgraça. Naquele ano, Dalila e eu nos enamoramos. Era um namoro secreto e minha pequena insistia em mantermos em silêncio a nossa paixão. Eu não entendia bem o porquê; Dalila explicava-se dizendo que eu era muito “velho” para se relacionar com ela, e que a sociedade e a escola em que eu lecionava não “nos” aceitariam como amantes. Foi também no ano de 1939 que se iniciou a ditadura franquista - mais um motivo para não nos envolvermos; o motivo maldito da minha eterna saudade. Dalila estava certa.


Tudo começou com alguns tímidos olhares, para que viessem os bilhetinhos e, por fim, as cartas de amor e os beijos apaixonados. Dalila e eu fugíamos para um mundo só nosso, entretanto, quando em público, vivíamos de aparências, como meros professor e aluna. Éramos atores, personagens de um mundo de amor e de sonhos e a nossa vida era um palco, uma peça teatral (creio, hoje, uma tragédia). E a garotinha tão jovem, tão inocente, tão perdida de si, fez-me eterno perdido e arruinou-me a vida, despedançando-me a alma.


Nossos freqüentes encontros no bosque do colégio se tornavam cada vez mais perigosos. Sua família já estava desconfiada, alguns alunos já comentavam e então, para o meu desgosto, acabei sendo expulso do colégio. A notícia de nosso amor se espalhava pela cidade e as pessoas todas se horrorizavam: não era nada fácil viver em uma sociedade moral-cristã, regada pela hipocrisia e ignorânica, e, mesmo assim, eu nunca abandonei minha pequena; pelo contrário, amava-a cada vez mais.


Marquei, então, um encontro com Dalila na Igreja da praça central. O dia estava calmo, o calor era intenso e o ar parado, como se algo de ruim fosse acontecer a qualquer momento. Dalila acenou e fez um sinal com as mãos para que eu fosse encontrá-la na sorveteria da esquina. E eu, sem saber que seria esse o dia do meu infinito martírio, fui até a sorveteria, sentei-me, olhei-a e a amei em silêncio.


A pequenina trazia algo nas mãos, algo como um livro. E realmente o era - era o livro tardio de sua vida. Com suas mãos de anjo, Dalila me entregou o livro, sorrindo, sorrindo um sorriso de despedida – podia jurar ter visto uma lágrima cair-lhe da face. Então aconteceu aquilo com o que até hoje eu não me conformo: a pequenina, a inocente, a alegre e pura Dalila foi presa, na minha frente, pelos policiais franquistas. Pasmo, sem saber o que fazer, fiquei ali, paralisado, implorando por misericórdia.


As mãos de anjo da criança foram arrancadas das minhas mãos de mestre.

Os franquistas não levaram minha pequena pelas mãos: levaram-na pelos cabelos, arrastando sua face contra o chão sujo da praça e mesmo assim, sempre feliz, Dalila sorria. Foi então que percebi que os cabelos de Dalila não significavam força, não significavam nada senão mentiras.


Gritei durante horas, chorei durante dias e amei, amei e amei. A ausência dela era minha dor presente e, já quase desistindo da vida, de súbito me veio a lembrança do livro que Dalila havia me entregado naquela tarde desvairada. Peguei-o e li. Li até que meus olhos (inchados de tanto chorar) e minha mente me impediram de continuar. O que Dalila havia me entregado era um diário, seu diário, que contava nada mais que toda a sua vida, que narrava nada mais que sua essência e natureza, que me mostrou quem era a verdadeira pequena, sem máscaras ou mentiras. Eu realmente não a conhecia.


Acho que os escritos eram mais uma confissão, um pedido de perdão, do que um diário.

Dalila começou falando sobre seu namoro de três anos com Gavin, um garoto basco que eu não conhecia. Além de viúvo, eu me tornara corno!

Caminhando entre as linhas e as palavras de Dalila, chorando feito menino, descobri que além de namorar, ela era comunista, subversiva, vingativa, triste e infeliz. Quase que em todas as páginas do seu diário, ela se descreve chorando, sozinha, e dizia que seu único desejo era a morte. Dalila queria morrer.


Em nenhum momento a pequena, agora comunista, escreveu sobre mim.

O que eu era para ela? A morte?

Dalila foi realmente uma brilhante atriz. Descobri que a ingênua sabia fazer bombas, gostava de Garcia Lorca, filosofava e não era uma burguesinha fútil e fria como pensei. Mas também não era forte como aparentava, nem era viva e feliz; sua inocência não passava de tristeza enrustida

(Interpretastes muito bem teu papel, Dalila! E mesmo não me dedicando uma letra sequer do teu diário, sei que me pedias perdão - não pela traição, mas por me ter sido tão alheia, por ter me enganado fingindo-se. Eu sei, querida, que querias buscar-te a ti própria e apenas te encontraste na morte. Querias morrer honrada, então, agora, dedico minhas palavras de morte a ti, escrevendo esta confissão absurda).


Dalila, minha dramaturga, me enganou e seu destino foi cumprido. Em toda sua existência teatral, a pequena fingiu-se e encerrou sua tragédia sendo fuzilada pelos franquistas em 1942. Dalila morreu da mesma forma que morreu seu poeta predileto. Até nisto ela era perfeita: morreu encenando! A máscara desceu-lhe da face e a morte elevou-se da vida. E eu que nunca fora amado sinto-me triste, cansado - triste, porém liberto e nos meus 37 anos ainda penso na pequena garota de 18, tão querida por todos, exceto por si própria.



Alberto Márquez, 18/05/1945





(narração escrita por mim, aos 17 anos, em uma aula de Redação – 23.08.03)

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Antigo...

Só encontro felicidade em sonhos.
É por isso que tenho olheiras enormes.
A minha cama é a minha nave espacial e especial.
Nela, eu percorro os caminhos do eterno retorno.

2004
Propuseram-me um pacto:
Habita em ti somente em ti e para todo o sempre em ti!
Aceitei.
Mas eu habitei em Mi, somente em Mi e para todo sempre em Mi.

E não há que chorar desencontros.

Hei de chover!

Relato de um dos meus dias...

O relógio anunciava a manhã.
Mais uma das várias manhãs que ela teria de enfrentar pelo resto de todas as manhãs.
Olhou para o tempo e deu-lhe de ombros, ainda com sono.
Ela deveria estar prestes. A manhã lhe esperava e os estudos também.
No entanto, as aulas de Direito Penal poderiam ter mais ritmo em seus sonhos incríveis.
Com a cabeça no travesseiro, estendeu o braço esquerdo e desligou o tempo. Não se sabe se o Direito Penal se fez presente em seus pensamentos; é provável que não. Os sonhos já não tinham importância. O objetivo era: não ter de acordar.

Infelizmente, o sol refletia em suas curvas, já suadas pelo calor matinal.
A obrigação gritava aos seus ouvidos.
Levantou-se, caminhou até o banheiro.
Antes de tirar de sua boca o gosto da noite, olhou para o espelho e viu o que não gostaria. O reflexo das olheiras era a prova de sua inútil tentativa. Cuspiu para fora de si todo o gosto da noite anterior e se fez bela para pagar a conta telefônica.

Tropeçou duas vezes. Suou como nunca.
O sol não a deixava esquecer que ainda era dia.
Enfrentou uma fila estranha.
As pessoas pareciam recém chegadas de planetas distantes do planeta em que ela pensava viver. O ar-condicionado trazia os arrepios.
Despediu-se da frieza do ambiente, saindo pela porta giratória. Quando pequena, adorava acompanhar a Dona Ilda até os bancos, somente para sentir-se girar.

Desceu os degraus de sua infância e retornou ao ponto de partida, assim como seu planeta fazia. Ao chegar no ponto, encontrou-se com uma simpática e loura senhora.
Ela estava lavando os novos degraus que a garota do banco teria de subir.

Cumprimentaram-se e três andares foram acrescidos à pequenina.

Essa foi a história de metade do meu dia. 11/04/05

Diálogos de um fantasma de meia-noite

Diálogo de msn, com um ex, transmutado em texto:

Ele dizia: "Buhhhhhhhhh!!! Era o barulho de um fanstama tentando preciptar-se na minha vida. Grande ilusão: ele nada tinha de assustador. Simplesmente não me amedrontava. Em verdade, ele nada tinha de "camarada", mas perdera todo o seu fascínio. Que importa passar por portas, se não se pode abrí-las p/ outros passarem consigo? Ah, eu não consigo mais ter medo!"

E o fantasma respondia: - O que penso é irrelevante, mas, você fez a interpretação errada. Fantasmas não são para assustar, são para vagar e para permanecer presentes mesmo que já estejam mortos. Por isso, atravessam barreiras e não desejam que outros abram as portas; preferem a solidão. Para quê portas abertas se ninguém pode os ver? São gelados como o frio curitibano para que sejam realmente sentidos, para contradizerem o calor.
Fantasmas não são fascinantes, são fascinados.

O "buhhhhh" não tem intenção de assustar, mas, intenção de dizer: "veja, estou aqui, presente, do seu lado, sem vc sequer imaginar. Não me veja, sinta apenas..."
E, como bom fantasma, sei do que falo.
O nosso objetivo fantasmagórico é passar pelas pessoas sem sermos notados. Queremos que apenas alguns poucos tenham esse privilégio de sentir toques gelados de presença de distância.

E ele acrescentava: "E o pobre fantasma continuava a envidar esforços no seu engodo de tentar me persuadir que sua reputação ainda era a mesma de outrora. Sim, ainda há pouco contara que atemorizou uma casa inteira, numa erma rua de Curitiba".

E o fantasma indagava: - Não! não confunda este fantasma com o fantasma nitzscheano. Fantasmas não tentam persuadir. Penso que reputação não é a palavra adequada... se não, serei obrigada a crer em um amigo moralista!
Fantasmas são feios, gélidos e imperceptíveis. Há algo mais tarziano que isso?

E ele dizia: "Você ainda ñ conhece esse fantasma."

E o fantasma retrucava: - Não... você que o desconhece e assim o quer. Pensa que o conhece e finge o contrário. Lembre-se, caro amigo: fantasmas não têm coração, mas os "assombrados" têm.
Isto tudo é somente um "Diálogo de Fantasma de meia noite", e quando você pensa que o matou, foi ele quem acabou contigo.
Fantasmas já estão mortos e não voltam para o mundo dos crentes, a não ser que desejem (por acaso) o seu eterno retorno. Eterno retorno...
E como o bom fantasma que sou, não espero compreensão, nem sua, nem de qualquer outra crença.

E o amigo inocente insistia: "Qual a minha importância para um fanstama? Por que raios ele quer passar e interferir em minha vida? Definitivamnete, havia algo de errado. Quanto mais luz (razão?!) entrava no meu quarto, menos fantasma existia. Ele ia se desfalecendo. Novamente um barulho. E, então, um mero lençol jogado no chão, com dois grandes furos na parte superior. Quem o usava??? Quem o usava??? Buhhhhhh. Agora sim eu sinto medo."

E o fantasma se cansava: - Quando você vier a padecer, compreenderá.
Morrerá acorrentado por suas convicções e não poderá sequer vagar.
Você quis desconhecê-lo e será assombrado por essa idéia até se tornar o próprio.


Continua...

15/07/2005

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Comércio


Eu fui trocada.


Trocaram-me por pés descalços a caminho do entardecer do amor,
Por pedaços de comida e sangue, cheiro do desconhecido, vaidade e armas.
Já fui trocada por palavras escritas, silentes, somadas, alheias
E me dei ao luxo de competir com o esquecimento e a discórdia.


Belas vestes já me substituíram, ao longo das minhas condições.
Medos e carícias, loucura, razão e todos os tipos de bebidas.
O vinho me roubou.
Os vícios do consentimento e as estátuas traíram-me.


A saudade retirou tudo o que, aos poucos, compusera-me.
Canções tomaram-me o lugar,
Olhares abaixaram-se, tristes, para além do meu eu.
Papéis voaram de mim, cortinas fecharam-se,
E remédios aliviaram a dor que eu causava.


Trocaram-me por camas quentes, joelhos sadios, mentes adestradas e pedras.
Da minha boca fez-se ausências, luares, mordidas, verdades, insetos.
As mentiras que contei foram tidas como sorrisos
e as lágrimas como câncer.

A doença caiu melhor que eu.
A madrugada era melhor companhia.
As rezas sabiam acalentar.
A bola era ideal.
Eu era a outra.


Eu já fui trocada por todos os tecidos, rumores, atrasos, comparsas, desertos, guitarras, chutes e automóveis.
As compras satisfazem mais.
As novelas distraem melhor.
Os pulsos são mais fáceis.



Trocaram-me até por um par de óculos!


E os meus cegos não percebem que ao confundir mistérios,
suas trocas -
mesquinhas, capitalistas -
refazem a amante religiosa em mim
ajoelhar-se para a gratidão do afastamento.


O inferno não são os outros.

O purgatório são os outros...
essa eterna espera posterior à troca e anterior ao adeus.

(Foto do Manto de Napoleão Bonaparte, tirada por mim, no Museu do Rissorgimento, em Milão.)

sábado, 3 de novembro de 2007

Com as mãos entrelaçadas, como se estivesse clamando, pedindo,
Com o queixo em riste e olhar cabisbaixo,
Percorro os minutos, expulso os segundos,
E deixo o tempo se esvair, levando as tempestades da minha alma.
Elas são frias e fazem doer as costas e o peito.

A chuva parou e o meu céu está quase quieto.
O cheiro de gotas pelo ar assombra minha noite,
enquanto ainda ouço o barulho do inacabado.
Despedaço minhas pálpebras ao olhar para o monitor brilhante
que insiste em carregar minhas mãos para essas letras vadias,
navalhas, policiais, estúpidas.

A respiração do cão está ofegante e ele dorme ao meu lado,
como se velasse meu sono ou me vigiasse, prestes a acordar para me revelar seus sentidos. O vento que sopra é áspero, cortante e, logo, fechei a janela. Mas o calor não me deixar ir. Quero dormir e meu corpo não permite.

Ligo o condicionador de ar e penso em todos os ares, todas as reais existências - pleonasmando - que são condicionadas.

O tempo é a minha condição.

Às vezes me pergunto quantas condições tenho imposto à mim mesma, ao longo da minha maior condição. Nunca fui boa em matemática; há diversos símbolos que desprezo. Mas sempre gostei de procurar respostas, sempre me senti atraída pela dúvida. E essa resposta eu só terei quando cessarem todas as condições.

Isso me lembra Fernando Pessoa: "quero ser eu, sem condições".

Mas a minha vida anda como meu intestino: só funciona de vez em quando.

Pedaços de cabelo caem no teclado.
Amanhece e eu desligo o ar.
Durmo com o cão, com a dúvida e tenho sonhos atemporais.