terça-feira, 24 de março de 2009

CAMUS E A LITERATURA:

C) O ABSURDO EM KAFKA E DOSTOIÉVSKI:

As obras de Franz Kafka constituem as mais expoentes tentativas de familiarizar o homem com o ambiente externo. São emaranhados de explicações e raciocínios fragmentados da condição humana. Temas como a incomunicabilidade, a burocracia, a desumanização, o estrangeirismo, são comuns ao acervo do autor. São relatos históricos, filosóficos e literários da presença do absurdo. É com maestria que Kafka desenha a ruptura com o alheio:

“Nessa ambigüidade fundamental reside o segredo de Kafka. Essas vacilações perpétuas entre o natural e o extraordinário, o indivíduo e o universal, o trágico e o cotidiano, o absurdo e o lógico se apresentam ao longo de toda a sua obra e lhe darão ao mesmo tempo sua ressonância e sua significação.”

Em O Processo, o bancário Joseph K. vê-se, repentinamente, acusado por um crime que desconhece, que não lhe é revelado. Desconhecendo-o, ignora-o. O processo – cisão entre K e o mundo - se desenrola contrário ao personagem, que é julgado por um Tribunal invisível. Enquanto isso, Joseph não deixa de viver sua vida cotidiana, de amar e ler jornais. Duvida do processo.

Sem esperar, K é preso em sua própria casa, tomando-lhe o sentimento de absurdo, sem sentido e contrariedade. O universo da lei é um universo estranho para K. É imperativo e ele não sabe por que os homens o julgaram, tampouco compreende sua condenação. Certa noite, a justiça vestida de negro vem buscá-lo. É então executado - e, em suas próprias palavras - “como um cachorro”.

O absurdo em O Processo coloca-se diante da ilogicidade da lei:

“Ante a Lei existe um porteiro, e ali se apresentou um lavrador, pedindo a ele que o deixasse entrar no local onde a Lei se encontrava. O porteiro, porém, lhe disse que não podia deixá-lo entrar naquele momento. O lavrador, após refletir um pouco, perguntou se dariam licença para que entrasse mais tarde. ‘ – É possível – respondeu o outro – mas não agora. ’ O porteiro empresta ao lavrador um banquinho, e este fica ali sentado, ao lado da porta, durante dias, meses, anos. Até que, depois de tanto tempo, percebendo o porteiro que seu fim estava próximo, disse ao lavrador bem perto do ouvido: ‘ – Ninguém, a não ser você, pode passar por esta porta, por que foi feita por sua causa. Agora terei de fechá-la.”

O destino de K obedece à lógica da lei, incompreensível aos olhos humanos como a lógica da morte. O efeito do absurdo une-se a um excesso de lógica. A Lei, em Kafka, se impõe como um vazio, um nada, daí a sua irracionalidade, impessoalidade, incongruência. Joseph K. não consegue chegar até à justiça, que, lentamente, se transforma numa entidade misteriosa e quase irreal. Ele não compreende a justiça, os homens ou Deus. Não passa de joguete de forças estranhas, tão impessoais como a burocracia que o condena.

O absurdo reside exatamente na ausência de compreensão, derivada da ausência de comunicação. Está no cotidiano e na lógica, daí o desespero, a solidão e o contra-senso que encobre o mundo dos homens. Assim como Prometeu, Édipo e Antígona, o destino de K fora anteriormente traçado. Esse absurdo rejeita todas as formas de alienação (família, profissão, dinheiro, sistemas filosóficos, religião e o patriotismo). Elas nada podem contra o escândalo do existir.

Em Kafka, não há diálogo ou possibilidades. Essa ausência desempenha um papel relevante. É, em verdade, um recurso literário como conseqüência de sua oposição ao Pai. Segundo seu próprio testemunho, todo o acervo do autor advém do conflituoso lar paterno. O pai, um tipo bonachão, audacioso, de temperamento brutal e dominador opõem-se ao filho, intelectual e contemplativo.

Em O Processo, K., demonstra a liberdade absurda, permanecendo imóvel ante a Autoridade e atraindo sobre si todas as conseqüências de sua atitude. No decorrer do processo ele se comporta como culpado do princípio ao fim; ao invés de inquirir por que o acusam, interessa-lhe saber mais a identidade de quem o acusa, tentando cingir-se de lucidez. Sua tristeza é ter de partir, sem conhecer nem saber que juiz o condena.

Há o domínio unido à culpa. Joseph não pode viver sem se justificar. Então, tende a procurar a Autoridade. E se tal Autoridade não existisse, pensa ele, para que então essas idas e vindas, todo esse sofrimento, todo esse absurdo? Ela existe, mas não é acessível a Joseph. Não há comunicação. É desta forma que Kafka se sente em relação a qualquer entidade todo-poderosa, inclusive divina.

Revela-se a cisão entre a autoridade e o homem, a lei e a vida. É a presença desse aparato judicial, de uma justiça invisível que deixa no ar o gesto cego e impensado de uma acusação e uma sentença que parecem agitar-se no vácuo, funcionando mecanicamente, reduzindo o individuo a condição promíscua de sub-homem.

Essa experiência do cidadão “de bem” diante da autoridade é uma visão antecipada do processo de sujeição do homem moderno ao totalitarismo vivido na experiência do fascismo, nazismo e stalinismo. Advém do judaísmo de Kafka. Há quase que uma previsão do Holocausto: judeus, sem culpa, perseguidos pelo totalitarismo. A perseguição a Joseph K é também um reflexo do sofrimento do povo judeu ao longo das décadas:

“Se quisermos alguma pista sobre o mérito da condenação de Joseph K, precisamos remontar às condições históricas do povo judeu, que no século I a.c. foi tomado pelo desespero de cumprir a lei, segundo observa Ortega y Gasset. Talvez aí resida o pecado, o crime oculto daqueles personagens, provocando a vingança da lei, com a mesma fria e distante crueldade do Deus do velho testamento.”

Em O Castelo, o personagem, também de nome K., como Kafka e Joseph K., não consegue apresentar-se ao Castelo a que fora chamado, a convite do Conde. Sempre fica detido nas imediações do palácio. A realidade deforma suas aspirações. A obra O Processo levanta um problema que O Castelo, em certa medida, resolve.

K. é um homem só, à procura do misterioso Senhor Klamm. Klamm é um homem poderoso que representa o castelo. O castelo é o poder. Klamm é a personificação, pouco nítida, propositadamente difusa, desse poder. Mas trata-se de um poder que cultiva a ignorância, primeiro e decisivo passo para a submissão dos servos. Convém manter a cegueira. A burocracia, enorme, monstruosa, aterradora, é a carapaça, a armadura, que protege os poderosos e mantém os súditos afastados, submissos:

“K. se emprenhará em encontrar seu caminho, encaminhará todas as gestões, fará astúcias, tergiversará, não se zangará nunca e, com uma fé desconcertante, tentará exercer a função que lhe confiaram. Cada capítulo é um fracasso. E também um recomeço. Não se trata de lógica, mas de perseverança. Na amplitude dessa teimosia está o trágico da obra.”

O personagem K. é um estrangeiro insatisfeito, insubmisso, que procura por todos os meios penetrar nessa carapaça. Por isso é incompreendido e mesmo desprezado pela aldeia. Rejeitado pelo meio, não consegue comunicar-se eficazmente com ninguém, sofrendo a opressão das autoridades e dos habitantes da comunidade. Ele é uma ameaça para aqueles cuja vida corre sem acidentes, sob o manto protetor do poder. Ele é uma ameaça à suave cegueira do reino.

K., não consegue moradia, amizade, trabalho, simpatia, não consegue manter ou consolidar qualquer tipo de relacionamento. Ele permanece fisicamente próximo ao Castelo, mas não pode ultrapassar determinado limite, da mesma forma em que o lavrador permanecia próximo ao porteiro, sem poder atravessar a porta da lei.

Incomunicável, novamente o absurdo vem à tona. Devorado, ele se perde num ambiente hostil, sem diálogo e solitário. Após sua morte, não tem sua cidadania decretada.
Para Albert Camus, o pensamento de Kafka coincide em muito com o de Kierkegaard. Trata-se de um salto para o divino, uma deificação do absurdo. N’O Castelo , a palavra do agrimensor é, em verdade, a de tentar encontrar a divindade por intermédio daquilo que a nega:

“Esse estrangeiro que pede para ser adotado pelo Castelo está um pouco mais exilado ao final de sua viagem porque agora é infiel a si mesmo e abandona a moral, a lógica e as verdades do espírito para tentar entrar, com a única riqueza de sua esperança insensata, no deserto da graça divina.” (CAMUS, 2007, p 153)

Encontra-se na referida obra o paradoxo do pensamento existencial, e vislumbra-se o início de esperança. Como Kierkegaard e Chestov, Kafka abraça o Deus que o devora. O absurdo da existência revela-lhes um pouco mais da realidade sobrenatural. Para eles, o caminho da vida termina em Deus, daí a perseverança dos filósofos e dos heróis kafkianos.

"Kafka nega a seu Deus a grandeza moral, a evidência, a bondade, a coerência, mas é para melhor se jogar em seus braços." (CAMUS, 2007, p 155)

Para Camus, há, de fato, no pensamento kafkiano a noção de absurdo. O herói de Kafka se resigna a ele, mas a partir de então, ele deixa de existir. Há o “salto”, a mentira, a transmutação, porque o absurdo como condição é essencialmente sem amanhã, sem esperança e a obra de Kafka está repleta de situações esperançosas, e não desesperadas, como, em princípio, poderia se supor:

“Vejo, uma vez mais, que o pensamento existencial, contra a opinião comum, está pleno de uma esperança desmedida, a mesma que, com o cristianismo primitivo e o anúncio da boa nova, sublevou o mundo antigo. Mas nesse salto que caracteriza todo o pensamento existencial, nessa teimosia, nessa agrimensura de uma divindade sem superfície, como não ver a marca de uma lucidez que renuncia a si mesma?" (CAMUS, 2007, p 155)

Dessa forma, para Camus, Kafka não é, em verdade, um escritor absurdo. Seu pensamento insere-se na tradição universal e uma obra verdadeiramente absurda não pode ser universal. Ela apresenta a problemática do absurdo, mas não é absurda. Kafka soube, com maestria, representar a passagem cotidiana da esperança à angústia e da sensatez desesperada à cegueira involuntária:

“Sua obra é universal na medida em que aparece nela o rosto comovente do homem fugindo da humanidade, extraindo de suas contradições razões para acreditar e de seus desesperos fecundos razões para esperar, e chamando de vida sua apavorante aprendizagem da morte. É universal porque sua inspiração é religiosa. Como em todas as religiões, o homem ali se libertou do peso de sua própria vida. Mas assim como sei disso, e posso até admirá-lo, sei também que não busco o que é universal, mas o que é verdadeiro. As duas coisas podem não coincidir.”

O pensamento verdadeiramente absurdo é aquele que, – contrariando Kafka - uma vez descartada toda a esperança de um futuro perdido, descrevesse a vida de um homem feliz. Assim se transmite a mensagem de Camus, sempre em busca de uma felicidade, ainda que impossível, consolidada por uma

“lucidez estéril e conquistadora, numa obstinada negação de todo consolo sobrenatural.” (CAMUS, 2007, p 156)

Por outro lado, em Dostoiévski, todos os heróis se questionam sobre o sentido da vida e só o radicalismo é possível. Os personagens assumem posições extremistas: ou a vida é um engano ou é eterna. É o raciocínio absurdo que se faz presente e, desenvolvido, culmina no interesse principal do autor: o suicídio lógico.
A existência seria absurda porque não é eterna, logo, como poderia o homem não se matar? Há várias maneiras de se interpretar o pensamento de Dostoiévski. Para Camus, os heróis dostoiévskianos matam-se porque, no plano metafísico, sentem-se envergonhados. É como se o homem, sofredor, absurdo, se vingasse de um ser que desconhece e que o condena a viver.

Na obra Os Demônios, o tema do suicídio lógico é tratado com mais veemência. O personagem Kirilov, tem a idéia de se matar. Trata-se de um suicídio superior porque enredado numa idéia-base. O pensamento do engenheiro Kirilov é captado da seguinte maneira:

“Deus é necessário e é preciso que exista. Mas sabe que não existe e que nem pode existir.”

É daí que decorrem as conseqüências absurdas. O gesto de Kirilov acaba por representar sua liberdade e revolta. Não se trata mais de vingança, mas de revolta:

“Se Deus existe, então toda a vontade é Dele, e fora da vontade Dele, nada posso. Se não existe, então toda a vontade é minha e sou obrigado a proclamar o arbítrio. (...) Sou obrigado a me matar porque o ponto mais importante do meu arbítrio é: eu mesmo me matar.”

Kirilov é um personagem tanto absurdo como revoltado. Em seu raciocínio, se Deus não existe, ele é o próprio Deus. Eis a lógica absurda! Como crédulo, é preciso que morra para tornar-se Deus. Esse é o sentido buscado por Kirilov – um homem comum, apaixonado, que nada tem de louco e que não se pretende como deus-homem, anexando, assim, o ideal de Cristo.

Se Cristo, ao morrer, não se encontrou no paraíso, sua morte foi em vão. Jesus morreu por uma mentira e é assim que encarna todo o drama humano. Torna-se, pois, um homem absurdo. Não é mais o deus-homem, é o homem-deus, tão desejado e proclamado por Kirilov. É assim que ele se sente: crucificado e enganado. Precisa dar fim a este sentimento; quer tornar-se, também, um homem-deus para se sentir completamente livre:

“Durante três anos procurei o atributo da minha divindade e o encontrei: o atributo da minha divindade é o Arbítrio! Isso é tudo com que posso revelar, em sua parte central, minha insubordinação e minha liberdade nova e terrível. Mato-me para dar provas de minha insubordinação e de minha liberdade terrível e nova.”

O que Camus questiona em O Mito de Sísifo é que, descoberta a liberdade, porque dar fim a ela? Se é possível assassinar a idéia de divindade, porque matar-se necessariamente? Kirilov se mata porque é um crédulo. Mata-se por amor à humanidade, sacrifica-se em prol do outro, do alheio e por isso comete um suicídio pedagógico. Mas como já observado, é da revolta que nasce uma nova possibilidade e liberdade, não da morte.

Tal qual Kirilov, Stavroguin e Ivan Karamazov são personagens absurdos. Angustiam-se e sofrem, cotidianamente, como qualquer um de nós. A diferença é que são “reis”, conforme analisa Dostoiévski, porque descobriram a lógica absurda de que “Se Deus não existe, então eu sou Deus”. Stavroguin é rei na indiferença e Ivan é rei na loucura.

Ivan não aceita o mal e por isso rejeita a idéia de divino. Rejeitado Deus, Ivan busca um ideal superior: encontra a justiça.

“Ele inaugura a empreitada essencial da revolta, que é substituir o reino da graça pelo da justiça.” (CAMUS, 2005, p 75)

É assim que o personagem encarna a recusa da salvação e rejeita a barganha da fé pela imortalidade. É o típico revoltado porque ainda que acreditasse e pudesse ser salvo, outros seriam condenados; o sofrimento continuaria:

“A revolta dostoiévskiana reconhece valores na busca do reino da justiça. Por essa razão Ivan Karamazov vê-se lançado no terrível conflito entre a lógica niilista do absurdo (‘Tudo é permitido’) e as aspirações morais que determinaram sua rebelião original.” (BARRETO, 1970, p 77)

Tanto em Camus como em Dostoiévski, o tema do absurdo leva à seguinte questão: o que tudo isto prova? Dostoiévski pretende provar que a fé na imortalidade humana é necessária para que os homens não se matem; crer seria o estado natural do ser humano, que busca para si a extinção da dúvida. Para concluir o pensamento, o autor russo escreve Os irmãos Karamazov como forma de responder a Os Demônios.

“Assim, não é um romancista absurdo que nos fala, mas um romancista existencial.” (CAMUS, 2007, p 125).

É, precisamente, o “salto” ao transcendental, ao divino, existentes em Dostoiévski, Kafka, Kierkegaard, Jaspers e Chestov, que Camus não aceita.

“É difícil acreditar que um romance tenha sido suficiente para transformar em alegre certeza o sofrimento de toda uma vida.” (CAMUS, 2007, p 126).

Como em Kafka, a obra de Dostoiévski não é equiparada à obra absurda, mas a uma obra que traz a problemática do absurdo. Não é absurda porque traz respostas a questões que não podem ser respondidas.

A obra dostoiévskiana contradiz o absurdo, não por ser cristã, mas por anunciar uma vida futura, post-mortem, como prêmio de consolação. Para Camus, é possível ser cristão e absurdo simultaneamente. O que ocorre é que Dostoiévski preferiu seguir a lógica de que a vida é enganosa e eterna.