quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Lógica Silenciosa


Pudesse eu dissertar sobre verdades, e o mundo estaria repleto de pântanos mal cheirosos! O quente odor que agora se aproxima, há muito revela o meu faro desolador: é chegado o tempo das desclassificações!

Olho para janelas afora como quem fita o reflexo no espelho, e observo a deformidade de tristes rostos quase-humanos. Não pretendo hierarquizá-los ou distinguí-los em espécie. Apenas identifico e absorvo as incertezas de um ambiente fétido em que se encerram as sólidas carapaças de homens e besouros.

Pudesse eu falar sobre mentiras, e os besouros estariam sorridentes!

Mas no tempo das desclassificações o silêncio é deus...

Ah! Pudesse eu tagarelar sobre o silêncio e reclassificar insetos sem os simbolismos da eternidade!

O homem, esse escaravelho das sistematizações, comungaria de uma natureza jamais experimentada. E seriam tantos risos e tantos suicídios...

Quem dera que os élitros humanos fossem flexíveis... teriam o movimento cíclico dos primeiros sobrevôos.

Quem dera que os nossos vôos fossem noturnos, porque só então seria possível desfrutar da beleza e da claridade dos vaga-lumes de outrora.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Meu primeiro lango-lango



Podemos dizer, sem maiores receios, que a memória é um labirinto que quase sempre nos prega peças. É nesse corredor dos efeitos do tempo que agora me ponho a pensar sobre a tarde poente que é a infância. Quantas saudades das traquinagens, do pega-pega, dos aniversários, dos esconderijos, das historinhas! Explorávamos o mundo e o tempo não existia.

É com um carinho de criança chorosa que me lembro de cada brinquedo, cada objeto que delicadamente fora projetado para que eu pudesse crescer. Lembro-me dos patins, que me faziam cair; do escorregador da piscina, do pula-pirata e do Sr. Batata. Os anos oitenta foram verdadeiramente incríveis não só pelas transformações políticas, ambientais, musicais, mas pela produção dedicada ao público infantil e pela diversão sem fim a qual nos entregávamos.

De fato, a diversão não é característica exclusiva dos anos 80. Mas eu me lembro muito bem de um brinquedo, em especial, que promoveu a diversão de muitas crianças da época: o lango-lango.

Lango-lango era uma marionete de brinquedo que, nos comerciais, se propunha como amiga da natureza. Era como que um guardião e podia ser encontrado em diversas cores e formatos. Cada cor do fantoche representava um elemento da natureza. O meu lango-lango era verde, era o protetor das florestas. Em formato de monstrinho, o verde-lango me permitia acessar um mecanismo de controle interno que, ao ser acionado, fazia com que o monstrengo proferisse pequenos socos. Os golpes eram tão fraquinhos que mal podiam ser sentidos. No fundo, o verde-lango era um brinquedo sutil e delicado, incapaz de disseminar o mal.

Saudosista e embriagada pela nostalgia de anos tão saudáveis, observo que em 2010 a escolha de algumas crianças ainda recai sobre langos-langos da vida. Temos um exemplo vivo em Bauru que está longe de ser um monstro, mas que, como guardião, pouco a pouco se deixa controlar por cruéis crianças supostamente legisladoras. Tais crianças, nada inocentes, na ânsia de dominar e destruir um brinquedo que nos proporciona tanto diversão quanto segurança, com suas sujas mãozinhas assumem o controle interno do jovem fantoche que, indefensável, consente em lutar contra o nada.

No ato risível de sua solitária luta, o executivo brinquedo tende a ser esquecido. Seria maravilhoso pensar num pozinho mágico que transformasse o boneco de borracha em efetivo guardião, mas não penso que essa transformação dependa de uma fictícia substância alheia. Cabe ao nosso querido representante lango-lango retribuir o carinho das bondosas crianças que o elegeram, acolheram e recolheram, com tanta estima, das sombrias prateleiras comerciais, e elaborar novos mecanismos de controle, que não mais o sujeite a crianças tão mal-educadas. Cabe ao nosso verde-lango abdicar das esmagadoras crianças e afastar-se dos velhos baús da amizade, para que não seja ele o próximo a ser trancado no baú.

Não se encontram mais langos-langos nas lojas; ele é um brinquedo raro e que ainda não fora esquecido. Se não me falha a memória, o lango-lango também chacoalhava a cabeça, para frente e para trás, como se concordasse com tudo, querendo cair no gosto das multidões. Entretanto, devemos lembrar que lango-lango não agradou a todos, e nem poderia. Lango-lango, o brinquedo, sabia que, apesar de anuir com a cabeça, haveria aqueles que por politicagem infantil, ou mera incompatibilidade, o desprezariam. Lango-lango, o representante-guardião, nada parece saber sobre antagonismos.

Nem todo mundo teve a oportunidade de crescer explorando a habilidade de um verde-lango, mas sabemos quem são as crianças que o querem esquecido, quem são as crianças que o querem explorado e quem são as crianças que o querem de volta aos lares.

Ah! Que saudades do meu primeiro lango-lango!

E não era azul...

Não desejava muito. Queria enxergar o pico do Jaraguá, alguns prédios, talvez um parque. Não era a altura que me impedia, era a atmosfera paulistana. Cinza não era somente a cor do céu; era a cor dos carros, dos fumantes, das janelas, das roupas, dos olhos, das árvores, das enchentes; era também a cor do tédio, do abandono, da solidão, do desespero e do fracasso. Em São Paulo, o odor era cinza, a velocidade e o metrô eram cinzas, a música era cinza e o corpo, aos poucos, virava cinza.

Reclamava do tom cinza e ouvia de volta: “ - mas você ainda não se acostumou à poluição de São Paulo?” Sejamos francos, eu não tinha do que me queixar. Vivia entre os acinzentados como uma negra medida, sempre a filtrar branquidões, sempre a expirar o que não me agradava. Não me acostumei nem ao cinza nem à cidade, e procurava colorir alguns cenários.

Maringá, ao contrário, era a terra dos pés vermelhos e a morada do verde. Mesmo com a frota intransigente de carros, eu podia desfrutar dos parques, dos mirantes, do céu estrelado, do sabor das cores fortes de um domingo à toa. Em Maringá, as folhas eram mais tenras, os bosques mais doces, o clima mais acolhedor e só a saudade era cinza.

De volta a Bauru, pus-me a fitar o grosso céu de fim de inverno e percebi que não era mais capaz de decifrá-lo. Um daltonismo se apoderava de mim, e o azul, a cor da vida, dava lugar ao branco opaco de delicadas neblinas. Não reconhecia o nublado e não distinguia cores. Da observação do mundo, do alto da minha janela, vejo a que distância estou daquilo que não consigo enxergar. A claridade me ofusca até o mais remoto pensamento. A aridez não me aponta caminhos.

Em Bauru, é o céu que me pede para cerrar as pálpebras, enquanto as árvores se insinuam como espantalhos e os carros lembram fantasmas errantes. É nessa cidade de gases quentes que a ebulição da vida tem se tornado um desafio, que o medo ronda não só as esquinas, mas todos os quarteirões, e que a angústia tornou-se o colírio dos adultos e das crianças. Numa estreita faixa cinza, verifico uma linha divisória no céu, que ora tende para o branco, ora para o negro. O azul fora esquecido ou intencionalmente dissimulado. Onde é que está o azul de Bauru? Em que bolso foi parar o nosso dia?

Dizem as más línguas que ele está aqui o tempo todo, e que eu é que preciso de óculos, podendo dispensar as daltônicas metáforas. Sem bolsos ou cartas na manga, longe dos requintes do que chamam hoje de literatura, bebo das tortuosas águas poluídas de um rio que não nasce em mim, revisito pinturas em tons pastéis, e deito à janela esperando pelo azul.

Sem lentes de aumento, cremando alguns conceitos restantes, em silêncio, aguardo o próximo instante de partida, a próxima cidade, ansiosa pela saudade cinza que ameaça o olhar, ansiosa pela fumaça cinza que ameaça a janela.

E não era azul...

Não desejava muito. Queria enxergar o pico do Jaraguá, alguns prédios, talvez um parque. Não era a altura que me impedia, era a atmosfera paulistana. Cinza não era somente a cor do céu; era a cor dos carros, dos fumantes, das janelas, das roupas, dos olhos, das árvores, das enchentes; era também a cor do tédio, do abandono, da solidão, do desespero e do fracasso. Em São Paulo, o odor era cinza, a velocidade e o metrô eram cinzas, a música era cinza e o corpo, aos poucos, virava cinza.

Reclamava do tom cinza e ouvia de volta: “ - mas você ainda não se acostumou à poluição de São Paulo?” Sejamos francos, eu não tinha do que me queixar. Vivia entre os acinzentados como uma negra medida, sempre a filtrar branquidões, sempre a expirar o que não me agradava. Não me acostumei nem ao cinza nem à cidade, e procurava colorir alguns cenários.

Maringá, ao contrário, era a terra dos pés vermelhos e a morada do verde. Mesmo com a frota intransigente de carros, eu podia desfrutar dos parques, dos mirantes, do céu estrelado, do sabor das cores fortes de um domingo à toa. Em Maringá, as folhas eram mais tenras, os bosques mais doces, o clima mais acolhedor e só a saudade era cinza.

De volta a Bauru, pus-me a fitar o grosso céu de fim de inverno e percebi que não era mais capaz de decifrá-lo. Um daltonismo se apoderava de mim, e o azul, a cor da vida, dava lugar ao branco opaco de delicadas neblinas. Não reconhecia o nublado e não distinguia cores. Da observação do mundo, do alto da minha janela, vejo a que distância estou daquilo que não consigo enxergar. A claridade me ofusca até o mais remoto pensamento. A aridez não me aponta caminhos.

Em Bauru, é o céu que me pede para cerrar as pálpebras, enquanto as árvores se insinuam como espantalhos e os carros lembram fantasmas errantes. É nessa cidade de gases quentes que a ebulição da vida tem se tornado um desafio, que o medo ronda não só as esquinas, mas todos os quarteirões, e que a angústia tornou-se o colírio dos adultos e das crianças. Numa estreita faixa cinza, verifico uma linha divisória no céu, que ora tende para o branco, ora para o negro. O azul fora esquecido ou intencionalmente dissimulado. Onde é que está o azul de Bauru? Em que bolso foi parar o nosso dia?

Dizem as más línguas que ele está aqui o tempo todo, e que eu é que preciso de óculos, podendo dispensar as daltônicas metáforas. Sem bolsos ou cartas na manga, longe dos requintes do que chamam hoje de literatura, bebo das tortuosas águas poluídas de um rio que não nasce em mim, revisito pinturas em tons pastéis, e deito à janela esperando pelo azul.

Sem lentes de aumento, cremando alguns conceitos restantes, em silêncio, aguardo o próximo instante de partida, a próxima cidade, ansiosa pela saudade cinza que ameaça o olhar, ansiosa pela fumaça cinza que ameaça a janela.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Depósito da fé

Em época de eleição, o assunto é: ELEIÇÃO!

Em muito me agradam os desabafos alheios acerca do atual imobilismo-penetra das parcelas mais jovens do povão! No entanto, permitam-me falar não em nome dos jovens, nem em nome de uma geração, mas em nome dos meus 24 anos.

Também eu já votei em Luiz Inácio. Não na primeira vez em que se candidatou, mas na primeira vez em que pude votar, em 2002 - ano em que foi eleito (eu tinha, então, 16 anos e carregava uma bela visão romântica do mundo).

Hoje, já afastada daquele romantismo, surpreendo-me em pensar nessa continuidade tão desejada pela maior parte da população. Em conversas de botequim com os amigos (que não são da Filosofia), quase sempre ouço elogios escancarados ao sr.molusco; constatações de que ele fora (é) um dos melhores presidentes que esse país já teve - "Nunca antes na história desse país". Lembram-me os vovôs já crescidinhos da Era Vargas...

Pois é, por mais triste que eu possa ficar com essas impensadas atribuições, compreendo a posição deles e de nada me adianta tentar argumentar, porque, no fundo, além de Lula ser uma figura muito mais carismática que eu, nenhum deles quer deixar de crer. Lula entrou para o nosso cenário justamente sob esse enfoque, o da esperança. E, tal qual um Santo Papa, ele reina como o nosso novo pai dos pobres.

Se os brasileiros são bastardos e carentes de pai, eu não sei. Mas agora me parece que são carentes também de mãe, mãe que aguardam ajoelhados, na esperança de que ela vença a próxima batalha. Que batalha? Dilma sabe. Haveria alguém melhor para combater que a nossa guerrilheira? ou, repetindo a pergunta em tons mais apropriados: Haveria melhor adversário para combatermos?

Sabemos quem são os que votam em mamães armadas e quem são os nossos adversários.
E não me parece que o jovem necessariamente se encaixe nesse perfil de continuidade bélica. Quem vota em mamãe armada é o pobre bastardo, mas é também a engajada e jargônica elite intelectual brasileira, que em seus fiéis mandamentos não desiste do velho ideal apodrecido. É isso que me causa espanto: observar que essa camada que se julga inteligente parou no tempo e se recusa a repensar, a rever, a reavaliar, a criar e transformar. Não me parece que é só aos jovens que caberia a reclamação de imobilismo e a recomendação da aprendizagem.

Releio esses "gênios" brasileiros e o que encontro? O velho falatório de divisões e profecias! É disso que estou farta! Quando é que a repetição, no Brasil, deixará de ser a lei?

Outra coisa que me causa espanto é o espanto que eu causo quando digo que votarei nulo. Ora, se julgo que não há ninguém digno de me representar, por que eu votaria no menos pior, sabendo que ele ainda é PIOR?

E quando penso no maldito quociente eleitoral? Fico ainda mais P* da vida!

Saco cheio dos discursos dos pseudo-democratas (de esquerda!)! (rs)

Fica registrado o jovem desabafo,

Milena

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Culinária do Amor

Sentada diante daqueles que não me vêem, aceno aos garçons do meu inconsciente para que me tragam minha bebida e prato prediletos. Eles não me ouvem. Mas ao ensaiar pequenos relatos de belas paisagens, começo a escutar, num ritmo quase ditirâmbico, os apelos dos meus tambores estomacais: tenho fome.

É certo que eu poderia optar por deixar meus amigos invisíveis e, então, saciar não só o meu desejo, mas a minha necessidade vital. Alimentar-se não é justamente esse continuar a ser? Mas optei por continuar a escrever, e eis-me aqui, tamborilando sobre o que nos dá água na boca e nos preenche deliciosamente.

Decididamente, falar de uma alimentação saudável é difícil, visto que muitas das nossas delícias nos fazem mal. Um doce bem açucarado ou uma carne bem sangrenta muitas vezes são preferíveis aos ásperos tecidos de uma folha verde - folha que também se alimenta por esses mesmos tecidos. Entretanto, é por meio da ingestão dos alimentos que nos são mais saborosos que pouco a pouco me atrevo a pensar em outros tipos de alimentos, mais ácidos, mas também vitais, que com seus poderosos nutrientes nos fornecem energia suficiente para o continuar.

A carne que agora mastigo lentamente me mantém em pé. Eu poderia dizer que é dessa mesma forma que o amor - esse alimento mal passado, sangrento, suculento - sustenta em mim a minha fome de viver. Ele, que com seus irresistíveis temperos picantes, insiste em perturbar o meu olfato e maltratar meu paladar! Ele, que com seu atrativo aspecto e forma e peso, me estufa em grandes pesadelos noturnos indigestos!

Mas eu estaria mentindo. Vejam, leitores que não me enxergam, eu não me oporia aos que dizem que o amor é um alimento, que é o placebo do insaciável, que é o motor vital dos mortais. Não me oporia em compará-lo, também, com a carne, ainda que humana, que desloca grupos inteiros de lobos famintos mundo afora, na ânsia do devorar.

O que eu reluto em aceitar, caro leitor invisível, é o entendimento do amor como um mero alimento, e não como energia, como força. Por sentir o estômago roncar tantas vezes é que me atrevo a ver o amor como um Poder. Não como um Deus que nos governa, mas como um Poder invisível que paira sobre alguns olhos cansados. O amor não é cego, nós é que somos – daí a invisibilidade do Poder. Nessa relação de comando, aceito o que me é imposto e sigo com o mínimo de urgência para poder sobreviver, de modo que o Poder, mais dia ou menos dia, acaba por se tornar o narcótico mais alucinógeno, do qual me torno usuária dependente.

Mas não sejamos relapsos. É a essa dependência de um Poder invisível que devemos nossa maior singularidade; ela é o que nos faz energicamente criadores, poeticamente humanos. Portanto, quando digo que amor é energia e Poder invisível, não há o intuito de tratá-lo como sobre-humano, mas como absolutamente e tão somente humano: tão humano e invisível quanto você, caro leitor: insuperavelmente fictício.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O Fio da Verdade



Como uma aranha que nas aéreas pilastras constrói engenhosamente sua teia, alguns homens dedicam-se a liberar pequenos fios do saber, na esperança de produzir e alcançar o que batizam de verdade. Tais fios, finos num primeiro instante, aumentam de espessura a cada vez que eles se esquecem da multiplicidade do mundo e do caráter distintivo do particular, na tentativa de atrair presas para um universo de abstração e ordem.

Devemos levar em consideração tais construções humanas a que chamaremos de conceito, na medida em que as percebemos como proteção aracnídea. Ora, nos é necessário um aparato de saberes, ainda que genérico, para que possamos nos firmar e inaugurar nossa subsistência! Temos tal aparato para não sucumbir ante a ilusão. Entretanto, cabe perguntar se, edificadas sobre a fragilidade, nossas teias conceituais nos levariam necessariamente a uma verdade pura.

- O que é a verdade? - perguntariam alguns leitores. E dentre todas as possibilidades, eu poderia responder: - é a capacidade humana de produzir assimilações e dissolver imagens em conceitos; é a teia da aranha.

- E o que são os conceitos? – perguntariam outros. E mais uma vez, eu poderia responder: - são proteções humanas que nos sustentam contra o desconhecido; são os fios da teia da aranha.

Partindo do pressuposto de que minhas respostas não conduzem, aqui, necessariamente à verdade, e sem descartar a função vital de nossas arquiteturas do saber, sugiro a todos um exercício artístico: teçamos modelos inteligíveis, como aranhas férteis que somos, mas sem, no entanto, deixar escapar o instinto criador que se oculta por detrás desse emaranhado, e sem ter medo daquilo que não se entende por verdade.

As aranhas transcrevem um mundo ao erigirem teias de seda, mas a natureza nada sabe sobre conceitos. O homem, se tomado como um sujeito criador de verdades poderia erigir universos sem grades, livres do medo do devorar predatório, aceitando a vida em todos os seus aspectos, aceitando tanto a verdade quanto a mentira, deixando de ser apenas um sujeito conhecedor. Eu diria que o homem é justamente o animal conhecedor da mentira e da conveniência, mas não posso negar que ele é também aquele que melhor traduz essa relação estética entre o conhecimento e a vida.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Breves considerações acerca do conceito de autenticidade em Martin Heidegger

NOÇÕES GERAIS ACERCA DO CONCEITO DE AUTENTICIDADE EM HEIDEGGER:

Para que possamos esclarecer o que Heidegger compreende por “autenticidade”, nos é imprescindível, antes, identificar a noção de Ser em seu pensamento. Em Ser e Tempo, o autor germânico buscou reestruturar as bases da Filosofia moderna, de modo a transformar o próprio pensar, na medida em que tenta desviar o foco do pensamento para o denominado sentido do Ser. Não mais substantivar esse conteúdo de intensa vivacidade, mas torná-lo verbo: essa era a intenção primeira do referido acadêmico.

E de que maneira podemos pensar Ser como expressão verbal, dessubstantivada? Heidegger nos ensina que somente por meio de nossa existência. O existir é a condição fundamental que se une às outras bases do pensamento, e por isso é a nova estrutura do pensar trazida pelo autor; é mútua pertença entre Ser e o homem, porque o homem é a única criatura de Ser e do Ser. Esse Ser, indescritível verbo, se abre ao homem da mesma forma que o homem se abre ao Ser, e tudo isso simplesmente porque o homem é. As outras criaturas mundanas “estão-aí” e, enquanto todas as coisas “são”, somente o homem “é”: tal é o caráter da existência:

“O ser que existe é o homem. Só o homem existe. As pedras são, mas não existem. Os cavalos são, mas não existem. As árvores são, mas não existem. Os anjos são, mas não existem. Deus é, mas não existe.”

Nesse sentido, podemos constatar que somente o homem se dá conta de sua inexprimível existência, de seu Ser, e essa consciência é a sua condição. Ser, no entendimento heideggeriano, é compreender ser. O homem só é homem porque é verbo projetado no tempo (Ser) e porque o compreende que é.

Não por acaso, na referida obra, Heidegger substitui o substantivo “homem” por “ser-aí” (Dasein), para que de tal maneira fossem recriados os modos de ser do ente investigado. As preocupações do homem e da Filosofia deveriam se debruçar sobre o sentido do Ser, e não somente sobre o significado; para tanto, a existência fora concebida como nova base do pensamento e como condição primordial do Ser. Daí inserir-se Heidegger dentro de uma tradição de pensamento intitulada Existencialismo.

Ora, se o homem existe, ele existe somente em aberto, para fora no tempo, em constante transformação e sem qualquer determinação. Nota-se aqui, portanto, um resquício de herança nietzschiana, ao verificarmos que o homem de Heidegger é um “vir-a-ser”, é um projetar-se adiante lançado em meio a infinitas condições de possibilidades. Essas possibilidades são pouco a pouco esgotadas, na medida em que o homem vive e escolhe suas ações.

A frase de Sartre que bem define a doutrina existencialista: “a existência precede a existência”, renova as bases do pensamento tradicional ao se opor aos argumentos metafísicos de objetividade e determinação. Percebemos, então, que é o modo como vivemos que determina quem somos, e não uma suposta essência natural, inerente. Na verdade, os homens constroem uma essência somente por meio da existência, ao realizarem suas ações, ao viverem. É por isso que é a existência que constitui o Ser, o “Eu”.

Entretanto, o “Eu” pode se desviar de si mesmo, já que é um Ser em aberto, lançado ao mundo, em meio a tantos outros “Eus”. Esse modo de Ser, o “Eu”, é invisível enquanto entidade, mas se revela para a existência justamente por meio dos modos de Ser, que são as nossas escolhas, nossas ações: esse é o momento em que o “Eu” pode ir de encontro consigo mesmo ou desviar-se de seu caminho e perder-se.

Dessa forma, Heidegger compreende que toda a nossa experiência de existência ocorre por apropriação e desapropriação de si. O Ser é nossa propriedade e uma existência que se apropria de si mesma, que vai de encontro a si mesma é uma existência autêntica em seu modo de Ser. De modo contrário, uma existência que não se apropria de si mesma é uma existência inautêntica. Vejamos:

“Heidegger expressou em outros termos oposição - "Precisamente porque o Ser-aí (isto é, o homem) é essencialmente a sua possibilidade, esse ente pode, no seu ser, escolher- se e conquistar-se ou perder-se, ou seja, não se conquistar ou conquistar-se só aparentemente" (Sein und Zeit, \S>21, § 9). A possibilidade própria do Ser-aí é a morte: por isso, "O Ser-aí é autenticamente ele mesmo só no isolamento originário da decisão tácita e votada à angústia" (ibid., § 64). Por outro lado, a existência inautêntica é caracterizada pela tagarelice, pela curiosidade e pelo equívoco, que constituem o modo de ser cotidiano, impessoal do homem e representam, portanto, uma decadência do ser em relação a si mesmo (ibid., §38).”

O Ser somente o é no mundo. E o que é o “ser-no-mundo”? Heidegger põe em questão aquilo que, supostamente, já se sabe. Ele parte de uma prévia interpretação tradicional comum para se questionar e interrogar. Ser e compreender ser são as nossas condições humanas, mas a questão direciona-se para o “como Ser?”.

Somos lançados em um universo previamente constituído, anteriormente organizado; quando nascemos nos deparamos com os outros seres e toda a estruturação mundana e isso nos causa um profundo estranhamento. Tal inserção é mencionada por Heidegger como faticidade ou contingência. Entretanto, não é pelo fato de o mundo estar previamente organizado que haja qualquer tipo de pré-determinação: ele é um emaranhado de possibilidades sem fim. A faticidade nos é apresentada no momento de nosso nascimento e o que nos traz, de fato, a idéia de faticidade é a idéia de alteridade: os “outros” e suas interpretações.

“Os outros” são todos aqueles aos quais nós pertencemos, posto que nenhum homem, por condição ontológica, é, ou pode Ser, isolado. A coexistência é também uma condição humana, haja vista que não se pode Ser somente si mesmo. Nós somos “nós” e “os outros” simultaneamente, e o “Eu” pertence aos “outros”. Somos todos resultados dessa convivência que se finda com a morte.

Quando nos perguntamos quem somos, é o “quem” do cotidiano que nos responde. Nunca somos apenas “nós mesmos”, mas sempre com “os outros”. A esta questão “quem somos?” respondemos como “os outros” são. Nesse sentido, compreende-se que Ser como “os outros” são é não ser si mesmo, é a realização de uma impessoalidade, e esse é, precisamente, o Ser inautêntico.

A inautenticidade também é uma condição humana, permeada pela coexistência, de modo que só podemos compreendê-la pela via ontológica. Se formos inautênticos, não somos o nosso “Eu”; entretanto, não podemos Ser isoladamente. Isso significa dizer que para sermos, necessariamente temos de ser impróprios ou inautênticos.

É válido ressaltar que a impropriedade ou inautenticidade não é um valor negativo, mas apenas um rebaixamento. Tornamo-nos iguais aos “outros” porque nascemos com essa prévia condição ontológica. Abrimos mão de nós mesmos para sermos como “os outros”, perdemo-nos, diluímo-nos. O “Eu” diluído é a representação da inautenticidade: para Ser, somos condicionados a essa dinâmica da impropriedade. Daí constatarmos que a base da existência é a inautenticidade. Entretanto, tais momentos de perda são circulares; há períodos em que somos autênticos.

Em Ser e Tempo, Heidegger parece querer buscar um caminho para o Ser autêntico, definindo-o como aquele que se projeta. Se entendermos que a base da existência, do Ser, é a inautenticidade, a autenticidade é sempre uma projeção de si mesmo, um vir-a-ser, e, portanto, não é real, não se dá no presente: a propriedade só se dá pela possibilidade vindoura. É quando o “Eu” busca a si mesmo que ele se perde, porque o projeto é sempre futuro e não é realizado no plano imediato.

De fato, a autenticidade é tida por Heidegger como uma espécie de modificação da inautenticidade. O homem é inautêntico por condição, porque se encontra imerso num universo alheio; entretanto, a autenticidade pode alterar esse caráter contingente. A existência torna-se, enfim, um desdobramento de projetos, na medida em que realiza possibilidades e a morte é o encerramento completo dessas possibilidades. Essa descoberta, esse despertar para a apropriação da existência e essa percepção de que, afinal, o homem é um “ser-para-morte” geram a angústia nostálgica de uma autenticidade projetora.

É justamente nessa oscilação entre autenticidade/inautenticidade que se encontra a idéia heideggeriana do “poder-ser”. O homem só “é” nessa ambigüidade. Da mesma forma, só podemos observar a inautenticidade sob a luz da finitude, haja vista que só procuramos por nós mesmos, quando, lúcidos, tornamo-nos conscientes de nossa condição finita, mortal. É a morte que nos lembra de nossa condição de Ser e nos faz viver intensamente cada instante.


A)AUTENTICIDADE/INAUTENTICIDADE EM SER E TEMPO

No sentido mais amplo, entendemos autenticidade como a vida que se baseia numa apreciação exata da condição humana. O homem, designado como Dasein, ou “ser-aí”, está lançado num mundo que lhe é hostil e que deve, inevitavelmente, encarar.

Em Ser e Tempo, Heidegger distingue entre o que chama de dimensão ôntica e dimensão ontológica do Ser: “estar-no-meio-do-mundo-do-homem” e “estar-no-mundo”. Segundo Robert Olson , o objetivo dessa distinção consiste em esclarecer que, embora o homem esteja necessariamente presente no mundo e não possa retirar-se dele para alguma região do Ser abrigada ou contida em si mesma, que seja puramente sua, ele não está fadado a perder-se no mundo e baixar ao nível dos objetos materiais brutos.

Isso porque o homem não está literalmente “no” mundo – o “estar-no-mundo” é simplesmente uma presença em face do mundo. Portanto, o homem autêntico pode ser compreendido como aquele que reconhece a dualidade radical entre o humano e o não humano (animais, pedras, etc...), que reconhece que o homem deve viver no mundo e que “estar-no-mundo” não implica em “estar-no-meio-do-mundo”.

Mais tarde, Heidegger irá chamar a dimensão ôntica, isto é, o “estar-no-meio-do-mundo”, de estado de “queda”: duas denominações distintas para a inautenticidade. Esse estado inautêntico de queda possui um lado subjetivo e outro objetivo. O lado subjetivo é o que Heidegger chama de “Das Man”, ou o “Se”, “a Gente” ou “Diz-se” e representa uma pseudo-subjetividade, um “Eu” degradado, uma vez que se encontra diluído em outrem:

“A queda é um estado em que o indivíduo constantemente obedece a comandos e proibições cuja fonte é desconhecida e não identificável, e cuja justificação ele não se incomoda em inquirir.”

O lado objetivo da inautenticidade é todo o mundo artificial em que o homem é lançado, prévio, e transformado tecnologicamente. É o que Heidegger vai nos revelar como “mundo público”. Cumpre-nos ressaltar que não nos aprofundaremos nos conceitos de “mundo público” e “mundo próximo”, uma vez que foge à proposta da presente pesquisa. Todavia, esses dois lados do Ser (subjetivo/objetivo) nos são relevantes na medida em que nossas categorias básicas de existência (sentimento, entendimento, linguagem) tornam-se degradadas no estado de inautenticidade:

“Deve-se, porém, advertir que a distinção e a oposição entre autenticidade e inautenticidade não implicam nenhuma valorização preferencial. A inautenticidade faz parte da estrutura do ser tanto quanto a autenticidade. "O estado de decadência do Ser-aí não deve ser entendido como uma queda de um 'estado original' mais puro e mais alto. De algo semelhante não só não temos nenhuma experimentação ôntica, como nem mesmo o caminho de uma possível interpretação ontológica." (ibid., § 38)”

Para o filósofo alemão, a inautenticidade caracteriza-se como aquela existência cujas influências asfixiam o “Dasein” em seu mundo, retirando dele a responsabilidade por suas ações. Durante esse período, que é condição de Ser, somos sugados por um conjunto de hábitos e ansiedades que não nos pertence, que vêm de fora. Nossas condutas são determinadas por motivos frívolos e medos sem razão, ao passo que o “Das Man” controla e exige o que havia de profundo em nossos sentimentos.

Contudo, ao estado de queda resta-nos questionar: como é possível livrarmo-nos dessa condição de “estar-no-meio-do-mundo”? Heidegger nos responde: somente por meio de uma drástica tomada de consciência, por meio do reconhecimento de nossa condição humana de “Ser-para-morte”. Como “ser-no-mundo”, imerso na inautenticidade, o homem traz em si a capacidade, pela angústia, de deparar-se com a verdade essencial de sua existência, a condição de ser temporal. A temporalidade é revelada na mortalidade inevitável, uma condição intransponível na realidade da existência, contra a qual não é possível bulir as regras. É tal situação angustiante que traz ao homem a consciência da morte.

Ao despertarmos e termos ciência de que somos finitos, somos tomados por essa angústia dilacerante e reveladora, que nos mostra a dualidade radical entre o humano e o não humano e entre o “estar-no-mundo” e o “estar-no-meio-do-mundo”. Desse modo, o nível da consciência através do qual o homem tem acesso ao mundo é aquele que acolhe à voz do Ser e consente em ser o “pastor do Ser”.

Ocorre que em Ser e Tempo, parece-nos que Heidegger buscou definir o homem autêntico exclusivamente em termos de sua atitude para com a morte, definindo-o como aquele que foge ao cotidiano trivial, reconhecendo sua condição de mortal e encarando-a com honra e coragem. Há dois pontos que nos chama atenção na referida obra: a ciência de um fim último como caráter intensificador da vida e da individualidade e a morte como necessidade ontológica. Vejamos:

O reconhecimento da condição humana, à luz de uma perspectiva heideggeriana, culmina numa espécie de técnica por meio da qual o homem inautêntico alivia o medo da morte. Tal técnica consiste, essencialmente, em despersonalizar a morte, reduzindo-a a uma categoria abstrata e universal, a um fenômeno puramente biológico ou social, sem qualquer caráter espiritual.

Para ilustrar tal entendimento, Heidegger recorre ao escritor Tolstói, em A morte de Ivã Ilitch, mostrando-nos o “despedaçamento e colapso do Morre-se ”. Quando nos vemos obrigados a enfrentar essa verdade de morte, a vida presente é tomada por outro sentido, um sentido mais profundo que a simples trivialidade do passar dos dias, numa espécie de carpe diem tardio.

O outro ponto que nos interessa nos escritos heideggerianos é a distinção da morte como expressão de um fim último e invencível, que de modo algum pode ser superado. Há, portanto, uma espécie de crença de que a morte é uma necessidade do Ser e que, uma vez inevitável, pode ter seus efeitos mitigados por meio do reconhecimento desse caráter indelével e por meio da aceitação da angústia existencial que tal pensamento nos traz:

“Se, porém, numa decisão resoluta, abraçamos nossa finitude e assumimos ativamente nosso “ser-para-morte”, poderemos moderar esse terror muito mais eficazmente de que desejando a imortalidade pessoal.”

É que, para Heidegger, assumir a nossa condição finita significaria aliviar o terror original que a morte nos inspira e, mais que isso, consistiria numa comunhão com mundo de maneira a nos situar numa totalidade impossível em vida: na morte, somos a totalidade que não pudemos ser em vida. Entretanto, ainda vivos, podemos nos antecipar em direção à morte, reconhecendo-a como expressão necessária do Ser e adotando um ponto de vista sobre nós como totalidade.


B)O SUPOSTO JARGÃO

Entre os anos de 1962 e 1964, Theodor W. Adorno escreveu “O jargão da autenticidade”, obra que se insere como expressão maior de um contexto de inúmeras críticas voltadas ao pensamento existencialista e heideggeriano, principalmente. O fato é que, muitas vezes associadas à adesão nazista de Heidegger, as críticas que pairam sobre o cenário político e filosófico da época merecem, sob análise, certa dose de cautela, para que sejam evitadas maiores digressões.

Incongruências à parte, parece-nos que o que Adorno buscava, afinal, era desqualificar o discurso sobre o “ser-para-morte” heideggeriano intitulando-o como mero jargão sobre a problemática da autenticidade, de modo que se fizesse transmitir que, em pensadores de um período pós-guerra, tudo não passava de falatório lírico encobridor de questões sociais mais sérias, fruto de uma elite alemã e, muitas vezes, francesa, catastroficamente emergentes e frágeis no que concerne ao pensar filosófico:

"Provavelmente em nenhum lugar a sua filosofia, e tudo que com ela bóia até os esgotos da crendice alemã no Ser, será mais alérgica que nesse ponto.”

Negando ao pensamento heideggeriano qualquer mérito ou originalidade, Adorno prossegue em seu ostensivo intento, tratando-o como prestidigitação, ardil ou falsa erudição, num tom de absoluto descaso, ele confessa clara hostilidade quando nos fala sobre o “asco ao jargão”.

Ora, ocorre que a desconfiança quanto ao aparato intelectual nos é apontada para Adorno, e não para Heidegger. Mesmo recusando qualquer possibilidade de construção ética ou transformação de si por meio de uma postura que reconhece o entendimento heideggeriano acerca da inexorabilidade da morte, Adorno tenta nos convencer de que a novas abordagens científicas é que abrem caminho para uma possível superação.

Contudo, o que vemos nesse esmiuçado ressentimento desconstrutor é que nem mesmo a ciência como cura - e isso é o que nos parece crendice – poderia alterar a irremissibilidade da morte para o Dasein. Desconsiderando as dimensões ôntica e ontológica de Ser e Tempo, Adorno nos parece incapaz de notar que o conceito ontológico-existencial de morte que o livro persegue tem a ver, sobretudo, com uma possibilidade, da qual o Dasein, como ente compreensivo e capaz de projeções, não se pode ver livre. Trata-se, em suma, de uma intensa e admirável preocupação com a totalidade do Ser, pendente, digna de discussão acadêmica e séria reflexão.

Pretendemos, portanto, de forma breve e dentro dos limites possíveis, contestar com veemência a mencionada obra de Adorno, para que melhor se compreenda a idéia de autenticidade e, em especial, a noção heideggeriana de autenticidade.

O pretensioso texto de Adorno nos invoca a consentir em denunciar uma série de conjuntos de hábitos discursivos perniciosos que estavam em voga na época, mais ou menos em meados da década de 50, 60, mais precisamente sobre o termo “autenticidade”, utilizado pela primeira vez por Karl Jaspers. Com relação a origem e disseminação desse jargão, o filósofo da escola de Frankfurt parece crer que há uma espécie de conexão invisível, por meio da linguagem, entre ação e pensamento.

Destarte, não podemos dizer que a disseminação de um pensamento mais profundo e supostamente ameaçador se justifica como fruto de elitismo pessoal ou como estratégia de proteção ante o que se desconhece. Entretanto, é válido lembrar que quem nos encaminha ao universo ideológico marxista por meio de releituras e conceitos truncados não é Heidegger. De acordo com Edgar de Brito Lyra Netto, doutor e professor do departamento de Filosofia da PUC-RIO:

“(...) certa ojeriza "sociológica" a uma espécie de filisteísmo espiritual, mais preocupado com a essência do homem do que com sua dignidade coletiva e concreta. Melhor dizendo, a insistência numa abstrata essência do homem estaria permeada por um irracionalismo camuflador de anseios de proteção e dignidade, típicos de uma classe acostumada a privilégios, sob a capa de formidáveis verdades onto-antropológicas.”

Ao que nos parece, é interesse de Adorno, e não de Heidegger, recair sobre apropriações que confirmem um rebuscado modo de pensar. O irracionalismo desmedido e que supostamente afastaria o homem do campo da ação não nos conduziria ao reacionarismo, mas à ratificação de é que Adoro que detém a razão e saber “verdadeiros”. Bem se vê que a preocupação do autor não se reduzia apenas ao jargão lingüístico, mas ao receio de que certo tipo de pensamento, batizado de subjetivista, se propagasse.

Ousamos dizer que, quando Adorno nos fala de certa doutrina que “difama a objetividade como coisificação e, em segredo, fomenta o irracionalismo” , estaria, em verdade, sugerindo uma autodefesa que recolocasse os argumentos marxistas sobre qualquer diálogo com o “Eu”, descaracterizando a problemática existencial, ao alegar que haveria uma “via reacionária própria dos existencialistas” que não se pode sobrepor aos “verdadeiros” e “condizentes” padrões políticos e sociais.

Na presente pesquisa, não nos interessou analisar se Adorno possui ou não fundamentos para alcunhar aqueles pensadores de reacionários ou burgueses. O que propusemos brevemente fora contestar o trabalho adorniano, sem desmerecê-lo, de modo a concluir que o mesmo se trata de uma característica inversão de valores, típica dos frankfurtianos, filhos de Hegel, atentos à objetividade e à positividade instrumental da razão.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Já mencionamos que a proposta heideggeriana não se inclina a desvendar as desenvolturas de um mísero jargão lingüístico, tampouco a propagar o pedantismo pela comunidade alemã, na segunda metade do século passado. Da mesma forma, por meio da leitura e das citações selecionadas, constatamos que o conceito de autenticidade em Heidegger só é visualizado se discernimos o plano da morte, da angústia e da totalidade do Ser.

Entre dúvidas e evidências, questionamos como seria possível nos livrarmos da condição de inautenticidade ou, ao menos, abrandá-la. E tudo isso nos serviu de base para concluir que, em Heidegger, mais que um simples projetar-se humano, o caminho da busca pela autenticidade nos conduz ao universo da liberdade, mas de uma liberdade que só se perpetua no mundo. E se é, de fato, a existência que dá origem a essência, a liberdade é o cerne que define a problemática da autenticidade, porquanto a criação do essencial implica em liberdade e, por fim, em autenticidade. É a liberdade criadora que elege escolhas que caracterizam o homem como um Ser efetivo de possibilidades.

É por constituir-se exatamente como um Ser de liberdade e encontrar-se em um universo de faticidade que o homem é capaz de assumir, por si, a condição de projeto destinado à realização, isto é, que ele tem capacidade de, estando consciente de sua situação de abandonado a sua própria responsabilidade, guiar-se sob o ponto de vista da totalidade em meio ao mundo - lugar onde ele é chamado a ser projeto, construção de si mesmo. Desse modo, verificamos que cabe ao homem, como Ser livre, a decisão de dar à sua própria existência o sentido que melhor lhe convém.

Portanto, concluímos que o pensamento heideggeriano, na fuga de um niilismo avassalador outrora anunciado por Nietzsche, ao descartar estruturas de massificação, pode ser o verdadeiro propulsor que nos conduziria à construção de um sujeito autêntico na medida de suas projeções, único no mundo e plenamente capaz de edificar e rever seu modo de Ser e de pensar.

Se Heidegger ousaria dizer o mesmo, não sabemos. Mas em meio a tantas discussões hermenêuticas, ainda que fosse considerado um jargão vulgar, o conceito de autenticidade parece nos proporcionar mais projetos e ações que qualquer borrão sem sentido de uma objetividade que não convence.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Mestre Jou, São Paulo, 1982.

ADORNO, Theodor W. The Jargon of Authenticity. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973.

ARVON, Henri. A Filosofia Alemã: A Filosofia Existencialista. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978.

HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Edición Electrónica, Escuela de Philosophia Universidad ARCIS, Santiago, 1988.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vozes, Petrópolis, 1993.

HEIDEGGER, Martin. The way back into the ground of Metaphysics: publicado em Existencialismo: De Dostoevsky a Sartre, Meridian Books, Nova York, 1956.

NETTO, Edgar de Brito Lyra. Sobre o pensamento filosófico e sua sobrevivência no mundo técnico, PUC-RIO, Rio de Janeiro, 2003.

OLSON, Robert G. Introdução ao existencialismo. Brasiliense, São Paulo, 1970.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. Presença, Lisboa, 1984.

sábado, 8 de maio de 2010

Palavra-chave

Não obstante a palavra “Filosofia” comporte diversos significados, entusiastas a tomam, no mais das vezes, nos extremos da perplexidade ou do desdém. Da mesma forma que o termo causa repulsa em alguns, em outros, ele renasce como admiração. Por vezes, basta sussurrar a “palavra mágica” para que jovens alunos comecem a se coçar ou a arrancar os cabelos, tamanha a chatice que lhe é atribuída. A “Filosofia” e os estudos filosóficos acabam se tornando chatices porque não são introduzidos aos jovens de maneira a despertá-los. Trata-se de apenas mais uma disciplina em que o aluno tem de alcançar certa nota para a aprovação; uma disciplina que exige do aluno leitura atenta e boa redação e que é recebida como mera obrigação acadêmica da qual não se deve discordar nunca.

Entretanto, o referido termo também causa espanto e admiração. Inúmeras vezes, com um quê de absurdidade, ouvi a seguinte frase: “Puxa! Você estuda Filosofia mesmo?”, como se se tratasse de uma tarefa dificílima e aterrorizante, digna de poucos homens obstinados que, ao longo da história, fundaram ou pretenderam fundar uma verdade eterna.

Longe de querer tecer comentários acerca do ensino de Filosofia no Brasil ou sobre a beleza de se estudar o termo em questão, o tema que proponho esmiuçar tem por base a importância da origem dos significados e sua multiplicidade para compreender como a linguagem nos afeta.

Interessante seria sugerir como primeira leitura a comédia do Anfitrião, de Plauto, mito esquecido, mas tantas vezes encenado nos palcos gregos e que desencadeou um número considerável de obras literárias.

O mito nos conduz a história de Anfitrião, primo e marido de Alcmena que, tendo saído em viagem para a guerra de Tebas, em companhia de seu criado e companheiro Sósia, fora surpreendido por Zeus. O supremo deus do Olimpo, apaixonado por Alcmena, decide consumar seu amor e, para ludibriá-la, cria uma espécie de réplica de Anfitrião - figura que possui todo o seu aspecto, mas que, em verdade, é o próprio Zeus – e faz com que seu filho Hermes se transforme na figura de Sósia, o escravo, para que o lar fosse vigiado e Zeus pudesse ser alertado caso alguém aparecesse.


Fingindo ser Anfitrião, Zeus toma Alcmena como esposa; quando retorna da guerra, Anfitrião e Sósia confundem-se, uma vez que a esposa apaixonada afirma a presença constante de ambos. Para desfazer o mal-entendido e resolver a crise de identidade, Anfitrião consulta Tirésias - o grande adivinho - que lhe dá a chave para o enigma. Mesmo assim, preocupado, Zeus vai ao encontro de Anfitrião e lhe explica o ocorrido, desfazendo a confusão.

Anfitrião, ao invés de se tomar por traído ou agredido, cumprimenta Zeus pelo feito e se sente honrado pela escolha do supremo Deus. Resultantes dessa união entre Zeus e a mortal Alcmena, nascem os gêmeos: Íficles, filho de Anfitrião, e Hércules, filho de Zeus.

Da aceitação pacífica de Anfitrião tem-se para a eternidade o próprio significado da palavra como substantivo: o chefe de um lar que recebe delicadamente os convidados. Do mesmo modo, até os dias de hoje, a palavra sósia, também substantivada, designa um sujeito muito parecido com outro ou o duplo de outrem.

Anfitrião e Sósia são apenas exemplos de palavras cuja origem e significado primeiros foram arbitrariamente esquecidos por nós. Esse esquecimento do que é distintivo, fruto da representação humana, é, em verdade, próprio do processo de formação de conceitos.

A formação de conceitos e a busca pela verdade serão os próximos assuntos a serem desenvolvidos por aqui. Por enquanto, nos contentaremos com a beleza e organização do mito: a potência ameaçadora dos conceitos.

Continuação: Seminário apresentado durante o curso "Sobre a Concepção de alma em Platão", na PUC-SP - Empédocles de Agrigento

7. Abordagem do segundo poema: Purificações

7.1. Nas "Purificações", observamos que as teses pitagóricas da metempsicose encontram-se transmitidas, pela primeira vez, por meio de uma obra escrita. Pelo menos, foi o que chegou até nós. Neste poema, o banimento por sangue (fruto da tradição órfica) e a dieta purificadora (ritual característico da época) são retomados para reforçar as idéias expostas antes em "Sobre a Natureza". Trata-se do mais antigo texto ocidental que se presta a revelar aspectos de seitas órficas vinculadas à metempsicose. Com o intuito de apontar o devido papel da alma, o ritual propõe que, para sobreviver a todos os passos de sua purgação, deve o indivíduo, daímon caído, homem errante, purificar-se até encontrar seu lugar junto à Esfera original.

7.2. Em seu poema “Purificações”, Empédocles parece combinar uma possível teoria da matéria com a doutrina pitagórica da metempsicose. Aqueles que cometem faltas graves – sejam divinos ou humanos – são punidos pelo Ódio que, como força indistinta, aprisiona suas almas em diferentes tipos de criaturas na terra ou no mar. Um ciclo de reencarnação oferece a esperança de uma eventual deificação para classes privilegiadas de homens: videntes, bardos, doutores e príncipes. Naturalmente, Empédocles teria se identificado com todas essas profissões. Em sua escrita, ele parece se mover equivocadamente entre um estilo austero e mecânico, e um outro estilo de caráter crítico-religioso. Algumas vezes ele faz uso de nomes divinos para seus quatro elementos (Zeus, Hera, Hades e Nestis) e exibe seu Amor para com a deusa Afrodite, a quem ele homenageia em termos que antecipa a frente “Ode à alegria” de Schiller (KRS 349). Sem dúvida, a afirmação de que ele mesmo se consideraria divino pode ser reduzida da mesma maneira pela qual ele demitologiza os deuses Olímpicos, embora tal atribuição tenha sido o que mais chamou a atenção de seus intérpretes, especialmente por conta das histórias lendárias sobre sua morte.

7.3. No Fr. 112 – de Diógenes Laércio, Empédocles reconhecendo que é venerado e se apresentando “não como um (mero) mortal, mas como um deus imortal” se afasta de uma suposta "sóbria filosofia materialista da natureza" e se abre ao inebriamento espiritual do Pitagorismo e das religiões denominadas mistéricas. Assim, ao reclamar para si uma natureza divina, Empédocles faz eco da auto-revelação de Hermes a Príamo, no último canto da Ilíada (XXIV). Suas palavras introdutórias ainda ressaltam a saudação que o morto, iniciado nos cultos-mistéricos, era acolhido, conforme Perséfone, nas “laminas de ouro” de Túrios (datadas do séc. IV a.C). Teria ele morrido em Túrios? Não há consenso.

7.4. Uma outra idéia que surge no poema está nas Inscrições Gregas que afirmam: “ó feliz e bem-aventurado, tu serás um deus em vez de um mortal”. A idéia de ser deus (dáimon) é pressuposta na dinâmica de que a divindade era uma vez mais atingível após um ciclo de encarnações. E esta idéia de reencarnar não estaria submetida somente às faltas, aos erros que diluíram o estado de graça do sujeito, mas percebe-se que a dinâmica da reencarnação é própria da religião mistérica.

7.5. Quanto ao ciclo de reencarnações, podemos perceber dois momentos específicos: Primeiro com a promulgação do decreto e, seqüencialmente, com o suplício da encarnação. No fr. 115 – que revitaliza o oráculo da Necessidade - Empédocles estaria a afirmar que alguns dáimones, espíritos de longa vida, erram e poluem seus membros com derramamento de sangue (comer carne) e falseiam o juramento que fizeram pela quantidade de erros. Tais dáimones caídos nasceriam durante [tres vezes dez mil anos] em toda a casta de forma mortais, que mudam de um para o outro nos penosos caminhos da vida.

Frag 115:

[A força do ar persegue-o ate o mar, o mar o cospe para a superfície da terra, a terra o lança para os raios do sol resplandecente, e o sol para os redemoinhos do ar, um recebe-o do outro, mas todos o odeiam. Desse numero eu agora faço parte, desterrado dos deuses e errante, por ter confiado na tresloucada Discórdia].

Desse modo, Empédocles parece nos deixar a sua visão sobre a existência humana:

“Pobre raça infeliz dos mortais”.

"...mísera condição..."

Ainda, verifica-se que o lugar para onde se deslocam as almas, em alguns momentos, é descrito como uma gruta. Ao voltar ao mundo dos vivos, Empédocles diria no Fr. 126 que o dáimon retorna “revestido com uma alheia túnica de carne”. Assim sendo, os fragmentos 118, 119, 120, 122, 124 e 126 denotam a descida do próprio Empédocles a um lugar de suplícios. Neste local estavam reunidos outras espécies de dáimones. Num outro momento, numa espécie de gruta, os dáimones eram revestidos com uma espécie de carne alheia e submetidos a forças contrárias que regem a existência mortal. Tal é a nossa interpretação.

7.7. Quando se apresenta uma certa esperança de libertação do ciclo, Empédocles retrataria essa esperança como sendo a ascensão de um dáimon por meio de um esquema disposto da seguinte maneira: (a) Há um estado original (divino); (b) Há erros e encarnações para purificá-los. (plantas, feras e homem) e (c) Há o retorno à condição original – deus - após o cumprimento dos rituais de purificação e ausência de cometimento de erros. Quando a alma se aproxima de estado de divindade, dá-se ao indivíduo a condição de dáimon.
Aqui, Kirk e Raven fazem alusão a escatologia da religião dos mistérios pitagóricos, sobretudo pelo Fr. 133 de Píndaro, que dispõe: “Aqueles, de quem Perséfone recebe expiação por um antigo sofrimento, no sonho ela de novo lhes devolve a alma ao sol lá do alto [...].

7.8. Nos fragmentos 128 e 130, Empédocles parece nos revelar suas noções sobre os rituais e sacrifícios necessários para o alcance da condição original, bem como algumas idéias sobre teogonia. De certo modo, ele teria corrigido a teologia tradicional e oficial afirmando que o Amor, e não Kronos, foi originalmente o deus supremo. A título de exemplo, temos a passagem do poema Sobre a Natureza, quando Empédocles parece referis-se a Esfera e ao domínio absoluto do amor sobre as raízes. Posteriormente, se seguirmos a obra de Kirk, Raiven e Schofield, eles passam a tratar do derramamento de sangue e do canibalismo expostos nos fragmentos em períodos distintos. Encontramos, nos fragmentos 135 a 137, referências sobre o erro mais grave: a matança de seres vivos. É por isso que Sexto Empírico pretende realçar aos nossos olhos o horror do derramamento de sangue e do consumo da carne ao extrair uma conseqüência da teoria da reencarnação, já referida por Xenófanes. A idéia é simples: ao matar um mero animal, talvez estejamos a matar um filho ou um pai.

8. Encontro dos poemas na avaliação dos estudiosos de Empédocles

8.1. A questão da relação entre “Sobre a Natureza” e “Purificações” permanece um enigma. O contraste não é apenas de humor, pois as doutrinas de salvação pessoal e metempsicose não podem ser facilmente conciliadas com o que os críticos consideram como "metafísica essencialmente materialista", no poema sobre a physis. A maioria dos intérpretes modernos têm esperanças de encontrar mais do que uma solução psicológica ou biográfica. Eles vêem a antinomia implícita nos fragmentos significativamente relacionada com a reputação do múltiplo Empédocles: ora filósofo, ora cientista, ora milagreiro. “O último dos xamãs grego”, um “Fausto”, “um Paracelso grego” são algumas das caracterizações mais sugestivas que têm sido propostas. Enquanto o poema religioso trai a influência do pitagorismo e vertentes afins, tendo sido Empédocles chamado por alguns de estudioso do orfismo e da psicologia, ou de "puritano grego", em seu poema cosmológico observa-se, inequivocamente, um desenvolvimento, mas com modificações cruciais, do pensamento de Parmênides. Parmênides de Eléia tinha deduzido que o real deve ser: (a) nascer e imperecível, (b)uno e indivisível, (c) imóvel, (d) uma realidade completa. Em razão das entidades familiares do mundo dos sentidos não estarem em conformidade a esses critérios, essas entidades seriam um "homem ilusão".

8.2. O que bem se vê é que não há consenso entre os intérpretes. De acordo com M. Halbwachs, Empédocles, em seus poemas, distinguiria a alma do pensamento, de modo a conceber dois “tipos de homem”: o que vive, sente e pensa (com o sangue do coração em que os elementos se misturam em igualdade) e o homem espiritual, o dáimon caído. Haveria o homem da sensibilidade/sensação descrito no poema “Da natureza” e o ser espiritual que reside no homem, descrito no poema “Purificações.

8.3. Entretanto, segundo Kirk, Raven e Schofield, é freqüente, entre os intérpretes, concluir que os poemas “Da natureza” e “Purificações” encontram-se em conflito, principalmente no que concerne à natureza da alma. É que o primeiro é, muitas vezes, analisado como proposta materialista, redutiva das funções psicológicas. De modo contrário, o segundo é interpretado como o poema que contém implícita a idéia de alma ou dáimon que um dia usufruirá de seu verdadeiro caráter incorpóreo, antimatéria. Não há no segundo poema nenhuma menção à “psyché”, mas por meio das múltiplas interpretações, observa-se a nítida permanência da doutrina pitagórica da metempsicose. A noção de dáimon em Empédocles nos remete ao encontro do “Eu”, um sujeito que sobrevive a todas as mudanças do ciclo narrado em “Da Natureza” e que se perfaz como eterno e ineliminável. E esse “Eu” sugere-nos, enfim, uma noção de alma, de interioridade eterna e imperecível.

8.4. Ademais, outras conexões entre os dois poemas supracitados podem ser concebidas por meio da análise dos fragmentos restantes e da doxografia. Desse modo, poderíamos relacionar o Fr.15, Plutarco adv. Colotem, 1113 d, do poema “Da Natureza” – que propõe uma existência que se prolonga para antes do nascimento e para além da morte –com a doutrina da reencarnação proposta nas “Purificações”: “Um homem versado em tais matérias não suporia no seu espírito que, enquanto vivem o que chamam de vida, existem todo esse tempo e lhes sobrevêm bens e males, mas que não existem em absoluto, antes de terem sido formados como mortais e depois de terem dissolvidos.”

8.5. O fragmento mencionado poderia nos parecer contrário a idéia de um dáimon e de um “Eu” imperecíveis, já que fala de um suposto não existir em absoluto. Porém, compreendemos que o argumento ora exposto, em verdade, reforça a doutrina da reencarnação, haja vista que não se sabe exatamente quais seriam as contínuas identidades do dáimon em suas respectivas transformações elementares, no desencadear da transmigração. Dessa forma, entendemos por bem compreender que, se todos os seres são corruptíveis, passíveis de sofrer mudanças, e apenas os elementos são imutáveis, nesse caso, a alma, o dáimon, o “Eu” seriam constituídos pela mistura dos quatro elementos puros, o que também os tornaria imutáveis e eternos, ainda que fisicamente modificados nas mais diversas manifestações naturais – daí a idéia da alma ser imperecível, imortal.

8.6. Nesse ínterim, haveria, então, conexão entre o ciclo dos dáimones (Purificações) e o ciclo dos elementos (Da natureza), além de uma espécie de princípio norteador primordial, um “nous”, uma inteligência que se predispõe em alma, espírito, pensamento. Esse “nous” se manifesta por meio das forças conflitantes de Éros e Neikós, e, mais uma vez se percebe a estreita relação entre os dois poemas.

8.7. Catherine Osbourne, em seu artigo “Empedocles Recycled”, chega, até mesmo, a nos propor a idéia de que, em verdade, não há dois poemas empedocleanos, mas apenas um poema filosófico-religioso, em razão de não se encontrar qualquer divisão dos poemas nos testemunhos arcaicos.

8.8. O que há são apenas evidências de que haveria somente um título “Katharmoi” e outros subtítulos ou classificações que indicariam o conteúdo da obra. E, de acordo com Catherine, os dois títulos atribuídos modernamente são, na realidade, formas alternativas de se denominar o mesmo poema, já que era comum entre os pré-socráticos o mesmo poema possuir dois títulos, como, por exemplo, em Protágoras (Alétheia/Kataballontes). O fato é que não há como se ter certeza de que se trata de apenas um ou dois poemas, dada a escassez dos fragmentos e a dificuldade em interpretá-los.

9. Fragmentos para análise quanto à concepção de alma em Empédocles

No Poema “Da Natureza”, sugerimos a leitura mínima dos fragmentos 2, 6, 7, 8, 13, 15, 17, 103, 107, 111.

No poema “Purificações”, sugerimos a leitura mínima dos fragmentos: 112, 115, 117, 119,

9.1. No livro “Corpo, Alma e Saúde”, Giovanni Reale demonstra como era entendido o conceito de alma na Grécia na época de Homero. Deixemos que o próprio autor fale: “A psyché nos poemas homéricos é a imagem do morto privada de consciência e de inteligência ”, ou seja, “a psyché não é a idéia da vida enquanto tal, mas a idéia da vida-que-se-vai e particularmente a idéia do morto”. Não havia a idéia da imortalidade da alma, pois ela não era o eu do indivíduo, mas o que restava dele depois da morte, representando apenas o que ele foi. Por isso a imortalidade só era possível pela lembrança das realizações humanas, dos gestos heróicos. O conceito evidenciado neste período foi o de eidolon.

9.2. Depois, vimos que os gregos daqueles tempos não tinham a idéia de corpo como algo unitário que representasse o indivíduo. Enquanto vivo, o corpo só era compreendido na sua multiplicidade, ou seja, cada função vital designada na narrativa homérica simbolizava o todo do homem naquele momento. O bater do coração (cárdia) ou o golpe dado com o braço faziam esses órgãos representarem, no momento em que eram enfatizados, o homem por inteiro, isto é, cada parte simbolizava o todo em determinado momento . No dizer de Fränkel: “O homem identifica-se, portanto, com a sua ação, e se deixa compreender de modo completo e válido pela sua ação; ele não tem profundidades escondidas [...] O homem homérico compreende-se muito mais no seu agir do que no seu ser ”. O termo “soma” era usado para designar o organismo depois de morto, e só aí era visto de forma unitária, mas justamente por deixar de ter qualquer função.

Por isso é que a idéia de corpo como algo único que representasse a imagem do indivíduo só foi possível depois que a alma passou a designar a personalidade de cada um, ou seja, “o ser”, o que só ocorre com Sócrates. Isto significa que a idéia física do homem como um todo só surgiu depois da idéia de alma como, no dizer de Havelock, “espírito que pensa, isto é, capaz tanto de decisão moral quanto de conhecimento científico, e a sede da responsabilidade moral, algo infinitamente precioso, uma essência única no reino da natureza ”.

9.4. Do alto de sua sabedoria - auto proclamada divina - Empédocles reafirmaria os ciclos de reencarnações, consoantes às fases de transformações que ocorreriam alternadamente, em ciclos de 10 mil anos, entre amor e ódio. Tudo por conta de um decreto (psephisma) que mandaria purificar todos os crimes de sangue cometidos durante o tempo vivido pelos humanos. Todos teriam de passar, portanto, por etapas de vida vegetal, animal e humana até alcançar a condição divina original, quando os espíritos (dáimones) poderiam finalmente se libertar. Quando tudo estava reunido em uma esfera perfeita, o amor dominava tudo e a amizade reinava. Contudo, a discórdia e seus rituais de matança tudo romperam, fazendo com que os seres se devorassem uns aos outros. Uma lei natural própria para tempos impuros.


10. O EMPÉDOCLES DE NIETZSCHE

Em seu universo Zoroastro, Nietzsche nos descreve um Empédocles divino, teatral, pomposo e pitagórico, conforme as mais diversas biografias apócrifas e lendárias do pré-socrático em questão. Na obra “O nascimento da Filosofia na época da tragédia grega”, Nietzsche analisa toda a vida e a obra de Empédocles a fim de nos mostrar a importância e a atualidade de seu pensamento. Ele também defende a hipótese, tratada por boa parte dos intérpretes, de que Empédocles teria sido banido de Agrigento e que, portanto, passou a vagar pela Grécia, tendo morrido no Peloponeso. Segundo Nietzsche, Empédocles vivia na tentativa de converter os gregos aos ritos sacrificiais pitagóricos, para que todos percebessem e apreciassem a UNIDADE de tudo o que vive. Diante do ciclo das transmigrações da alma tudo se torna uno: a planta, o homem e o animal, deuses – daí o “assassinato”, a “autofagia” em se comer carne. Para evitar o ciclo, necessária é a purificação total por meio dos ritos.

É dessa forma que, para Nietzsche, o pensamento de Empédocles revela-nos que tudo o que vive é um e que essa “unidade dos viventes” é fruto do pensamento parmenidiano da “unidade do ser”. O que o destaca é que Empédocles teria desenvolvido a referida idéia de maneira muito mais fecunda, em razão de sua profunda simpatia pela natureza. Não obstante tenha se especulado sobre o caráter apócrifo da figura lendária de Empédocles, Nietzsche crê que ele tenha sido considerado médico, curandeiro ou deus porque a finalidade de sua existência parecia ser a de sanar os males causados pelo ódio; “proclamar, num mundo de ódio, o pensamento da unidade e levar um remédio a todos os lugares onde aparece a dor” – Daí concluir-se por uma certa ética na physis empedocleana.

Ao compreender o universo como a pura contradição, Empédocles sofre e se culpa. É por meio do pecado e da auto-acusação que ele explicará sua presença no mundo. Em razão da culpa, Nietzsche o denomina de “poeta trágico”, de “contemporâneo de Ésquilo”, de “pessimista ativo”.

Trata-se de um “pessimismo ativo” porque a mistura entre as noções materialistas e idealistas se consolida apenas na atividade ética. O interessante no pensamento empedocleano seria, justamente, a tentativa de vincular instintos religiosos a explicações científicas. Vejamos.

Os mortais, deuses caídos e punidos, agora condenados a errar pela Terra, local de dor, podridão e sofrimento, supostamente, só poderiam encontrar a paz e a ordem por meio de um princípio: o Amor. Dessa forma, Nietzsche sustenta que o ato sexual seria, para Empédocles, o que há de mais nobre e contrário à Discórdia – ao contrário de alguns intérpretes que consideram que “Purificações” é um poema que proclama a abstinência sexual.

O ato sexual seria a atitude nobre por excelência porque tudo o que está separado aspira a se reunir. Um dos problemas centrais do pensamento de Empédocles é, justamente, a nostalgia do semelhante. É por isso que o verdadeiro pensamento de Empédocles poderia ser acolhido como “a unidade de tudo aquilo que se ama”.

A luta entre Éros e Neikós é que dá origem a todo vir-a-ser e toda destruição (que nunca é total, absoluta). Nesse sentido, até mesmo os deuses vieram a ser e não são eternos; esses espíritos divinos não são motores de movimento, como em Anaxágoras. O amor e o ódio é que são.

De maneira a complementar, Empédocles substitui o “Nous” indistinto de Anaxágoras por Éros e Neikós, mais precisos. E, como não há finalidade nesse movimento, a adaptação é que toma a frente do problema: é a adaptação que determina o número de seres existentes - Pensamento, este, posteriormente desenvolvido por Darwin.

É que o amor não se preocuparia em adaptar, mas apenas em unir, e a afinidade é que guiaria os semelhantes até o encontro da combinação, por meio da alternância das forças motrizes.

O que Nietzsche de certa forma condena é o fato de Empédocles, possivelmente, não nos ter explicado quando determinada força prevalece ou quanto. A pluralidade das coisas ora é atribuída ao Éros, ora ao Neikós, que estão em tudo. Não existe o vazio de Demócrito: tudo é amor e ódio. E, ainda, para Nietzsche, o “erro” de Empédocles estaria em ter se utilizado de um reino de forças inexplicáveis, impenetráveis, reduzindo a ciência em magia. Por isso Empédocles é visto ora como médico, ora como mago; ora como poeta, ora como retórico, deus/homem, sábio/artista, rei/sacerdote. Empédocles, que põe fim à idade do mito, da tragédia e que dá início à idade da democracia, da oratória, do racional e da ciência é a contradição por excelência, ele é o homem agonal.

11. O EMPÉDOCLES DE HEGEL

Embora Hegel inicie seus escritos sobre Empédocles numa aparente tendência de afinidade com a sua filosofia da natureza, ele, na medida em que transcreve as observações aristotélicas, acaba por adotar a mesma posição de Aristóteles: Empédocles falhou na distinção, mas acertou trazendo-nos as idéias de unidade dos opostos e unidade de mistura, e quando coordenou os princípios do real e do ideal, os quais poderiam ser dispostos em seis etapas: fogo, água, ar, terra, amor e luta.

Ainda, Hegel ressalta que os elementos poderiam ser compreendidos por meio da seguinte distinção: de um lado, o fogo. E, do outro lado, a água, o ar e a terra. Seguindo as orientações e entendimentos de Aristóteles, Hegel acaba por descrevê-los, sem qualquer aprofundamento ou argumentação mais fecunda sobre a doxografia. Apenas concorda e cita Aristóteles, alegando que Empédocles é contraditório em si mesmo e que é mais poético que filosófico:

“Esta é a natureza da representação sintetizadora como tal, que a falta comum de capacidade de pensar ora procura reter a unidade, ora a multiplicidade, não conseguindo unir ambos os pensamentos.”(Hegel, Os Pré-Socráticos, pg 218)

Hegel termina por afirmar que o referido pré-socrático não desperta o interesse atual e que, em Heráclito, a síntese de Empédocles se mostra mais sábia e eficaz.





Referências Bibliográficas


ABRÃO, B.S. & COSCODAI, M.U. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BARNES, J. Filósofos Pré-Socráticos. Trad. J. Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BOLLACK, Jean. Empedocle. ii Les origines, Comtnentaire I, Paris, 1969.

______________. Voir la Haine. Sur les nouveaux fragments d’Empédocle.

BORNHEIM, Gerd. Empédocles de Agrigento: Os filósofos Pré –socráticos. São Paulo, Cultrix, 1967.

BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. M.J. Simões Loureiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.

BURNET, J. Greek Philosophy. Londres: Macmillan, 1928.

__________. O Despertar da Filosofia Grega. Trad. M. Gama. São Paulo: Siciliano, 1994.

CAVALCANTE DE SOUZA, J. (ORG.) Os Pré-Socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994.

COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: História e grandes temas; São Paulo, Saraiva, 2000.

CONAÎTRE, Pour. Les Presocratiques. Par Gerard Legrand, Bordas.

DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres; trad. Mário da G. Kury. Brasília, D.F: UnB, 1977.

ERLER, M. & GRAESER, A. (org.). Filósofos da Antigüidade, 2 v. Trad. N. Schneider. São Leopoldo, Ed. UNISINOS, 2002.

GRAHAN, Daniel W. Empédocles e Anaxágoras: respostas a Parmênides, Aparecida, Idéias e Letras, 2008.

GUTHRIE, W.K.C. A History of Greek Philosophy, 6 v. Cambridge: Cambridge University Press, 1965.

_______________. Los Filosofos Griegos, trad. Florentino M. Torner. - México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1994.

HALBWACHS, M. Représentation de l’amê chez lês grecs. Revue de Métaphysique et de Morale: Librairie Armand Co, Paris, 1980.

JAEGER, W. Paidéia – A Formação do Homem Grego. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora LTDA, 1995, 3ª edição – tradutor: Arthur M. Parreira.

JP DUMONT, D. DELATTRE, JL Poirier, Les Presocratiques, Bibliothèque de la Plêiade (NRF, Éditions Gallimard, 1998), 10-20.

KIRK, G.S., RAVEN, J.E. & SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos; trad. Carlos A. L. Fonseca. – Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.

LARA, Thiago Adão. Caminhos da Razão no Ocidente: A filosofia nas suas origens gregas. Petrópolis, Vozes, 1989.

LONG, A.A (Org) et alii. Primórdios da Filosofia Grega, Tradução Paulo Ferreira,

LUCE, J.V. Curso de Filosofia Grega. Trad. M. G. Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

MONDOLFO, R. O Pensamento Antigo; trad. Lycurgo G. da Motta. - São Paulo: Mestre Jou, 1966.

OSBOURNE, Catherine. Empedocles Recycled. The Classical Quarterly, New Series, Vol.37, Nº1, pp 24-50 – 1987.

OS PRÉ-SOCRÁTICOS. Fragmentos, Doxografia e Comentários; trad. José C. de Souza. - São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)

PENHA, J. Períodos Filosóficos. São Paulo: Ática, 1987

PEREIRA, Ivanete. Aspectos Sagrados do Mito e do Lógos - Poesia Hesiódica e Filosofia de Empédocles. PUC, São Paulo, 2003.

PETERS, F. E. Termos Filosóficos Gregos, um léxico histórico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1983.

REALE, G. & ANTISERI, D. Filosofia pagã antiga (História da Filosofia, v. 1), 2ª ed. Trad. S. Storniolo, São Paulo: Paulus, 2004.

RONAN, C. A. História Ilustrada da Ciência; trad. Jorge E. Fortes. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

RUNES, D.R. (ORG.) Dicionário de Filosofia. Trad. M.V. Guimarães e outros. Lisboa: Presença, 1990.

RUSSELL, B. História do Pensamento Ocidental; trad. Laura Alves e Aurélio Rebello. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel – Difusão Editorial S/A, 1977.

______________. Mito e Pensamento Entre os Gregos. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S/A, 1990 - Haiganuch Sarian.

______________. et alii . Indivíduo e Poder. Lisboa: Edições 70 LDA, 1987.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Continuação - Empédocles de Agrigento

4. As quatro raízes físicas de todas as coisas: água, terra, ar e fogo

4.1. O que Empédocles denominava “raízes” era aquilo que Platão e pensadores gregos posteriores chamavam stoitheia - palavra utilizada como sinônimo de sílaba. A tradução latina, elementum, da qual deriva nossa palavra “elemento”, compara as raízes não às sílabas, mas às letras do alfabeto. De qualquer forma, não se pode duvidar da relevância da abordagem dos elementos elencados por Empédocles.
Insta ressaltar que filósofos e cientistas atribuíram ao quarteto de elementos do pré-socrático em questão um papel fundamental na física e na química até o advento de Boyle, no século XVII. A natureza possuiria quatro elementos básicos, ou raízes: a terra, o ar, o fogo e a água. Não seria correto, portanto, afirmar que “tudo” muda. Basicamente, nada se altera. O que acontece é que esses quatro elementos diferentes simplesmente se combinam e depois voltam a se separar para então se combinarem novamente. O que, supostamente, une e desune os quatro elementos são dois princípios: o amor e o ódio. Os quatro elementos e os dois princípios seriam eternos e imutáveis, mas as substâncias formadas por eles seriam pouco duradouras: são os compostos mortais. Jostein Gaardner afirma que é possível que, quando, Empedócles tenha visto uma madeira queimar, teria percebido que alguma coisa ali se desintegra. Alguma coisa na madeira estala, ferve: é a água; a fumaça é o ar; o responsável é o fogo, e as cinzas são a terra.
O que dá origem aos já referidos compostos mortais são duas forças que atuariam nestas substâncias: o amor e o ódio. O amor agiria como força de atração e união, o ódio como força de dissolução. Aprofundemo-nos.

5. “Éros e Neikós”: como forças motrizes e enquanto dinâmica e efeitos na physis

5.1. Para Empédocles, o cosmos se desenrola num ciclo em que algumas vezes o Amor é dominante, e em outras é o Ódio. Sob a influência do Amor, os elementos se combinam em uma esfera homogênea [sphairos], harmoniosa e resplandecente, herdeira do universo de Parmênides. Sob a influência do Ódio, os elementos se separam, mas, assim que o Amor começa a ganhar o território que havia perdido anteriormente, aparecem todas as diferentes espécies de seres vivos. Todos os seres compostos, como os animais, as aves e os peixes, são criaturas temporárias que surgem e partem; somente os elementos são eternos, e somente o ciclo cósmico continua.

5.2. Ao compreendermos a filosofia de Empédocles, nos paraece que "nascer" e "morrer" não existem se entendermos o nascer e o morrer como um vir do nada e um ir para o nada. Ele parece pensar dessa forma porque acreditaria que o ser é e o não ser não é. Assim não existe o nascimento e a morte de algo. Para ele o que chamamos de nascimento e morte é simplesmente a aproximação e a separação de algumas substâncias. Essas substâncias são indestrutíveis e eternamente iguais. A água, o ar, a terra e o fogo são as substâncias que estão no princípio de todos os derivados e variantes. Elas são as substâncias mais simples das quais derivam todas as outras, são os elementos básicos que não mudam nunca sua qualidade. As quatro substâncias básicas se unem e se separam umas das outras formando todas as substâncias existentes.
Os quatro elementos da filosofia de Empédocles criam as coisas quando se unem e, quando se separam, destroem o que existia no momento anterior de união. A amizade ou o amor é a força cósmica que une os elementos e o ódio ou a discórdia causam a desunião e a conseqüente separação dos elementos. O destino é que alterna a predominância das duas forças que atuam sobre os quatro elementos em um tempo constante. Quando o amor ou a amizade é mais forte os elementos se juntam em uma unidade. E ao contrário, quando o mais forte é o ódio ou a discórdia os elementos se separam e se tornam multiplicidade.

5.3. Tanto os elementos como as forças que atuam sobre eles são divinos. Deus seria o Ésfero, a união de todos os elementos por meio do amor ou da amizade. Na fase em que o amor domina todos os elementos, eles estarão ligados em perfeita harmonia. Nessa fase não existe o sol, nem terra ou o mar, mas uma unidade de tudo que Empédocles denomina como sendo ESFERA. As almas também seriam constituídas pela união dos quatro elementos e sofreriam a ação das forças do amor ou da amizade e do ódio ou da discórdia. Ao contrário do domínio do amor, no domínio do ódio existiria a dissolução dos elementos e formar-se-ía assim o caos. Quando o caos está instalado os elementos começam novamente a se unificar começando um novo ciclo. Para que o mundo exista devem existir tanto os elementos positivos quanto os negativos, pois se existir somente o amor ou a amizade todos os elementos formariam apenas uma unidade compacta, sem finalidade ou vida.

5.4. Entretanto, se o universo fosse constituído apenas pela força do ódio ou da discórdia, os elementos ficariam completamente separados, na repleta desunião, razão pela qual o próprio cosmos não haveria de existir. Portanto, as coisas do mundo passariam a existir num período de transição que seria o do predomínio do amor ao predomínio do ódio. Assim o cosmos nasceria e se destruiria continuamente, dependente e por meio da ação das duas forças sobre os elementos.

Ademais, Empédocles parece ter-nos fornecido uma pequena teoria sobre percepção sensorial. Constam nos fragmentos alguns versos sobre o que se pensava acerca dos sentidos. Dos poros dos compostos mortais sairíam emanações que atingem diretamente os nossos órgãos de sentido. Desse modo, as conexões seriam realizadas por meio de um processo de reconhecimento e semelhança. Os compostos semelhantes tenderiam a se reconhecer. O que for fogo em nossos sentidos vai reconhecer as emanações que vêm do fogo; o que for regido pela água vai reconhecer as emanações que vêm da água. Somente com nossa visão aconteceria o contrário. Nela, as emanações partem dos olhos mas, da mesma forma, essas emanações vão reconhecer nas coisas o que lhe for semelhante. Para Empédocles nosso conhecimento está no coração e o veículo que transporta esse conhecimento é o sangue, posto que o sangue seria a substância em que os elementos podem ser encontrados em quantidade isonômica e pura. Parece-nos seguir a tradição homérica, ao referir-se às "frenas". Não se trata de um interioridade "pensante". Não haveria, aqui, indícios de uma concepção de alma.
Pelo contrário. O que nos parece, e, seguimos a orientação de Holbwachs, é que Empédocles dintigue, muito bem, o "homem que pensa, vive e sente" do "homem espiritual". Tais análises ficarão mais claras após o desvendar de Purificações - se é que isso é possível.

5.5. Na seqüência, compreendemos que haveria, em Empédocles, uma necessidade de se aproveitar e utilizar de todos os sentidos, para que, por meio do intelecto, possamos perceber as evidências que estão ao nosso redor. Evidências de uma realidade empírica? Talvez. Nada pode ser afirmado quando se analisa apenas uma quinta parte de uma obra inacabada. Sustentaria ele, ainda, uma teoria sobre a evolução dos seres vivos? Não no sentido em que, hoje, compreendemos evolução. Empédocles, aparentemente, compreende que no princípio da constituição dos comportos, havia numerosas partes de homens e animais - pernas, olhos, orelhas - que estavam distribuídas desordenadamente. Haveria, dessa maneira, uma primeira geração: a dos membros independentes. Mãos sozinhas, olhos boiando na Esfera, braços, pernas, sem corpo e disformes. Numa segunda geração, a dos seres oníricos, monstruosos, haveria homens com cabeça de boi, braços grudados em costas, répteis com faces de peixes, etc. Já na terceira geração, poderíamos observar formas constituídas. O que vingou dessas junções seletivas do amor, por meio do processo de reconhecimento e semelhança, permaneceria constituído porque adaptado. A quarta geração seria a das misturas das formas constituídas; a geração que hoje vivemos.

Para explicar a origem das espécies vivas, Empédocles parece conceber uma notável “teoria da evolução”, a partir da sobrevivência do mais apto, durante e após o processo de reconhecimento e semelhança do Amor. A título de exemplo, podemos citar o fragmento em que ele descreve que, no início, carne e osso surgiram como composições químicas de elementos, a carne sendo constituída de fogo, ar e água em partes iguais, o osso constituindo-se de duas partes de água, duas de terra e quatro de fogo.

5.6. A partir desses constituintes, formaram-se membros e órgãos do corpo não unidos; olhos fora das cavidades, braços sem ombros e rostos sem pescoços (KRS 375-6). Estes órgãos vagaram por aí até encontrar pares ao acaso; fizeram uniões, que nessa primeira fase resultaram com freqüência não muito adequadas. Disso resultaram várias monstruosidades: homens com cabeça de boi, bois com cabeça de homem, criaturas andróginas com rostos e seios na frente e nas costas. A maioria desses organismos do acaso eram frágeis ou estéreis e somente as estruturas mais bem adaptadas sobreviveram para tornar-se o homem e as espécies animais que conhecemos. Sua capacidade de reproduzir foi algo devido ao acaso, não a um plano (Aristóteles, Fis. 2, 8, 198b29).


6. Abordagem do primeiro poema: Sobre a Natureza

6.1. O primeiro poema de Empédocles é intitulado “Sobre a Natureza”. Observamos que, nos fragmentos disponíveis, Empédocles parece não só estabelecer vínculo com os pré-socráticos, os milésios, como também estabelece que a totalidade da physis explica-se a partir da multiplicidade de elementos - o que ele denominou, como já vimos, de raízes. São estas raízes que explicam a origem do Universo.

6.2. Neste poema é notória também a influência de Parmênides (515-449 a.C.). Desse modo, entendemos que Empédocles tentou resolver alguns problemas encontrados na teoria eleata da existência não criada do mundo. Procurou reconhecer que embora limitada, a experiência sensível era fundamental para o entendimento dos humanos, os mortais. Cada sentido dentro de suas limitações ajudaria a esclarecer as particularidades das coisas percebidas. Junto ao trabalho da inteligência, os sentidos poderiam ser um meio válido de formação do conhecimento adequado do mundo. Os sentidos abririam, assim, algumas passagens por meio das quais o conhecimento poderia ser iniciado.

6.3. O primeiro tema trabalhado, se assim podemos didaticamente enumerar, foi exatamente sobre a defesa dos sentidos.

No Fr. 2: “Reduzidos são os poderes que se encontram espalhados pelo corpo, e muitas são as mazelas que nele se declaram e que embotam o pensamento. Os homens contemplam na sua vida apenas uma parcela dela, depois, rápidos em morrer, são arrebatados e voam para longe como fumo [...]”.

Kirk, Raven e Schofield admitem que, aqui, está em jogo a noção de entendimento para Empédocles. Afirmam que Empédocles lamenta a compreensão extremamente limitada das coisas que a maioria dos homens alcança.

6.4. Seguem-se a este tema as idéias de: poder do conhecimento e descrição das quatro raízes. As quatro raízes do ser eram os princípios materiais básicos das coisas. Estas não teriam nascimento ou morte, mas estariam em movimentos cíclicos permanentes de composição e corrupção - como outrora exposto. Todos os elementos sempre existiriam e nunca seriam destruídos em sua totalidade, mas apenas separados de sua mistura original. Assim, não haveria o vácuo tão criticado pelos eleatas. As mudanças de estado da matéria ocorreriam pela ação das forças de atração (philia) e separação (neikós). Inicialmente, o amor que une a todos estaria no centro da esfera, a manter a unidade. Porém, com a atuação de fora para dentro da discórdia (neikós), a desagregação acabaria por espalhar tudo que estava unido.

6.5. Dessa forma, uma dupla solução parecia ser colocada ao problema trazido por Parmênides em torno de sua exigência sobre a unidade do todo. O ciclo de transformações parece permitir que cada ser composto da mistura de partes equilibradas de todos os outros elementos pudessem prevalecer durante um período de tempo específico. Destarte, nada deixaria de existir. Nascimento e destruição não passariam de etapas dos diversos ciclos de renovação eterna, sendo o universo o todo uno e completamente imóvel imaginado por Parmênides. Duas interpretações podem ser feitas acerca deste ciclo de nascimento e morte, provocado pelo conflito entre amor e ódio. Uma considerando o múltiplo, de um modo geral, uno pela soma constante da quantidade dos elementos que se mantêm apesar da destruição e reunião aparente de todas as coisas. Outra compreendendo a dissolução da mistura como um processo de formação de novos seres sem cessar. Por conseguinte, haveria geração e corrupção tanto na união como na separação. No fim tudo acabaria por preencher o espaço existente de maneira precisa, sem excesso, nem falta. As coisas seriam formadas, portanto, no sistema de Empédocles, a partir do conflito de forças existente entre atração e separação, que tudo uniria em sua esfera própria (num processo de semelhança).

6.6. A ignorância dessa verdade e todos os equívocos decorrem quando coisas dessemelhantes são erradamente relacionadas pelo pensamento humano. Fora a discórdia que provocara o movimento de separação das coisas que o amor, pelo saber, conseguiu reunir. Tudo que havia sido separado é, ao final, corretamente agrupado pelo conhecimento verdadeiro como na original unidade de antes. Sobre a Natureza, então, apresentaria os princípios gerais do que tornou possível o conhecimento de como os quatro elementos materiais poderiam formar a diversidade aparente, superando as limitações dos sentidos que impediam essa compreensão.

6.7. A transformação das substâncias, por nascimento e morte, provocada pela alternância de domínio entre o amor e a discórdia, era a principal causa dessa mistura e confusão também aparentes. Nesse sentido, toda uma cosmologia pôde ser elaborada sob o molde de uma esfera que tudo engloba, enquanto um vórtice faz com que o movimento caótico do turbilhão misture tudo. Em meio a isso, só a força de atração conseguiria novamente tudo juntar, em etapas evolutivas de criação e destruição, na disputa com a força de repulsão que levou à formação do mundo atual e a vida na Terra - incluindo as partes fisiológicas dos seres vivos e a percepção e consciência humanas. Estas idéias calcam um dos mais importantes fragmentos que temos de Empédocles, ou seja, a idéia de ciclo de mudança. É doxografado por Simplício e retrata o conceito de “duplo” como o sentido da natureza física.
O fragmento pode ser dividido em tres secções. Os versos de 1-5 falam-nos de um processo dual, constituído pela criação do uno a partir da multiplicidade, e, depois, da multiplicidade a partir do uno. Os versos 6-8 afirmam que este processo dual se repete incessantemente e explicam-no como devido a uma ação alternada entre o amor e o ódio. E por fim, nos versos 9-13, retomam-se dois pontos. Os versos 9-11 inferem o duplo nascimento das coisas, que estas nascem e não tem uma vida estável, já os versos 12-13 declaram, em virtude da sua incessante alternância entre unidade e pluralidade, elas são sempre imutáveis. Podemos concluir este poema com as idéias estruturais restantes que são: “agentes e substâncias do ciclo; a mistura das raízes; a esfera e o cosmos; cosmogonia; a zoogonia e a biologia”.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Continuação - Empédocles de Agrigento

2. A Cosmologia Empedocleana: a physis do ponto de vista plural
2.1. De certo modo, a filosofia da natureza de Empédocles poderia ser considerada uma espécie de resumo da cosmologia dos jônios que o precederam. Em “Sobre a Natureza” - tema comum entre os pré-socráticos - Empédocles parece nos apresentar uma visão do processo cosmogônico que constitui um desenvolvimento e uma modificação da linha de investigação iniciada pelos milesianos. Seu principal interesse é o mesmo de seus antecessores: investigar, de maneira ampla e plausível, a natureza que o cerca. Entretanto, Empédocles parece se opor ao ponto de vista dos eleatas, em relação ao uso exclusivo de uma razão que afirma a unidade do ser e que nega a legitimidade racional da multiplicidade e do movimento. Tal era a postura de Parmênides. Por sua vez, Empédocles altera essa concepção, como veremos em seguida.

2.2. Segundo Marcio H. Pereira, buscamos demonstrar que Empédocles teria herdado aspectos míticos do aedo arcaico, acrescentando a eles aspectos místicos da religião órfico-pitagórica, e que sua filosofia estaria em estreita relação com ambos os aspectos sagrados. Num primeiro momento observamos que Empédocles, influenciado pela noção parmenidiana de que o Universo repousa sobre o amor e a unidade do todo, a modificou e acrescentou a idéia de multiplicidade e separação, além da imagem teórica da Esfera. O fragmento 27 trata exatamente deste contexto em que Empédocles nos revela a harmonia do Spherus, numa suposta solidão circular. O aspecto concernente à Esfera será tratado com maior profundidade num momento posterior.
Não obstante, haveria um sistema dialético no trajeto de antítese à esta harmonia inicial descrita com a sublevação da discórdia. Os fragmentos 30 e 31 mostram que todos os membros foram agitados, até mesmo os divinos. E por fim, o fragmento 35 evidencia os períodos intermediários, de onde podemos perceber a circularidade dos eventos éros e neikós em relação a constatação das coisas no tempo. (Os fragmentos serão dispostos nos próximos posts).

2.3. A conciliação entre razão e sentidos conduz à substituição do monismo corporalista pelo pluralismo. Então, finalmente, o universo poderia ser compreendido como resultado de quatro raízes: a água, o ar, a terra, o fogo. Todos os elementos seriam governados pela isonomia; nenhuma raíz seria mais importante ou mais primitiva em relação às outras, pois todas são eternas e imutáveis:
“Não há em absoluto nascimento (physis) para todas coisas mortais, nem fim, na detestável morte; mas somente mistura e distinção das coisas misturadas, é isso que os homens chamam physis” .

3. A formação e as influências das doutrinas órfico-pitagórica e dos filósofos eleatas na constituição do pensamento de Empédocles de Agrigento
3.1. A religião exerceu uma profunda influência na gênese da filosofia grega, e, por conseqüência, na filosofia ocidental. Mas quando falamos em religião helênica, faz-se necessário distinguir a religião pública (que teve seu modelo na representação dos deuses e do culto que foi legado por Homero, e adotada pela maioria da população pela sua simplicidade explicativa dos fenômenos naturais e humanos, antropomorfizando-os) e a chamada religião dos mistérios.
Apesar de serem religiões com pontos em comum, há importantes diferenças entre estas duas formas de religiosidade (como, por exemplo, a concepção de homem, do sentido da vida e o destino último da alma humana). Neste aspecto encontra-se nosso maior interesse, pois a religião derivada de Homero – o denominado dionisismo – nos traz um “Deus que toma a alma” e em cuja doutrina não há noção de imortalidade.
Já no Orfismo, que é de origem asiática, temos a noção de imortalidade e de metempsicose, que de Pitágoras em diante vamos percebendo como uma praxe entre as supostas teorias da alma. Assim sendo, ambas as formas de religiosidade são fundamentais para a gênese da filosofia grega, mas a segunda forma se destaca muito mais no presente momento que a primeira.
Neste sentido pretendemos realizar uma breve abordagem sobre o orfismo, as influências egípicias e o pitagorismo no pensamento de Empédocles. Vejamos.

3.2. Afirma Autiveres Maciel que Empédocles tinha de si a seguinte idéia: ele era “um homen que fazia parte daqueles que foram condenados a viajar na errância durante vários anos, atravessando eras, períodos de vida, reencarnações sucessivas, a ponto de adquirir um certo saber de todo os ciclos de seres” . O conteúdo e estilo de sua poesia revela um homem de imaginação, versatilidade e eloqüência, com um toque de teatralidade. A junção, um pequeno aglomerado de elementos comuns que antecederam a vida de Empédocles no cenário pré-socrático, o constitui. Talvez alguns dos traços do Empédocles histórico tenha realmente sido capturado no retrato colorido da tradição biográfica. As lendas, as biografias apócrifas, não conquistaram apenas os estudiosos do tema, mas têm continuado a despertar a curiosidade e imaginação atuais: Empédocles foi o herói do drama romântico dos poemas de Holderlin e Matthew Arnold, e de outras obras literárias. Teria ele se lançado ao Etna para comprovar sua origem divina? Seria xamã? Médico? Político? Rei?
Não sabemos. O que sabemos é o que nos restou.. alguns fragmentos e doxografias.
Leonel Franca afirma-nos que os poemas de Empédocles teriam apenas a intenção de conciliar a unidade e a imutabilidade do ser, ensinada, sobretudo pela escola eleática, com a pluralidade e o movimento local, evidentemente atestados pelo senso comum, momento em que, de fato, propõe a doutrina dos quatro elementos. Será?

3.3. Muitas tradições bibliográficas, nem todas possíveis do ponto de vista cronológico, fazem de Empédocles em discípulo de Pitágoras, de Xenófanes e de Parmênides. Parece-nos que ele imitara Parmênides ao escrever, em forma hexametral, o poema “Sobre a natureza”. Este poema, dedicado a seu amigo Pausânias, conforme encontramos no Fr. 1: “E, tu, Pausânias, filho do sábio Antiques, escuta-me”, continha cerca de 3.000 versos, dos quais chegaram até nós apenas uma quinta parte. Ele também escreveu um poema religioso, “Purificações”, do qual muito menos se preservou. É neste poema que encontraremos mais razões para estudar os indícios de uma noção de alma. Os estudiosos não chegaram a um consenso sobre a qual dos dois poemas devem ser agregados a maior parte das citações dispersas que sobreviveram – alguns, na verdade, julgam que os dois poemas sejam fragmentos pertencentes a uma única obra. Mas há controvérsias e tal questão neste exato momento não nos interessa tanto.

3.4. Peças adicionais desse quebra-cabeça textual foram recuperadas quando quarenta fragmentos de papiro foram identificados nos arquivos da Universidade de Estrasburgo em 1994 (“O Novo Empédocles”). Como poeta, Empédocles era mais fluente que Parmênides, além de mais versátil. Segundo Aristóteles, ele teria escrito um épico sobre a invasão da Grécia por Xerxes, e de acordo com outras tradições seria o autor de muitas tragédias. Assim como Pitágoras e os órficos, Empédocles defendia a transmigração das almas por meio de um longo ciclo de reencarnações, condicionado pelas conseqüências de alguma grave ofensa cometida (erro).

3.5. Quanto ao orfismo é de imensa relevância nossa inflexão a este aspecto, porquanto tal seita teria influenciado, juntamente com o pitagorismo, grande parte da filosofia posterior, até mesmo Platão, no que diz respeito, por exemplo, às posições relativas à alma humana, sua constituição, transição, etc.
O orfismo é um movimento religioso complexo onde se detectam influências dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e, obviamente, orientais. Teria sido fundado por Orfeu, um herói lendário da Grécia arcaica e patrono da música. É importante aqui salientar o caráter monoteísta do orfismo, que representa uma ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos homéricos.
Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico se dá no plano escatológico, ou seja, na ciência dos fins últimos do homem, naquilo que deverá seguir à vida terrestre. A descida ao Hades simbolizava uma espécie de "vida após a morte".
Desse modo, podemos compreender como a concepção órfica da imortalidade advém de um crime primordial: a alma está enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que significa corpo-túmulo). Como conseqüência desse sepultamento, a existência encarnada se assemelharia mais a uma morte, e o falecimento constituiria o começo de uma verdadeira vida. Esta verdadeira vida não é obtida automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos (concepção moral?).
Após um certo período, a alma reencarnará e desencarnará novamente.
Trata-se de uma concepção cíclica, eterna, que só pode ser resolvida por meio da Purificação (ritual).

3.6. A influência egípcia (julgamento de Osíris e reencarnação) é inquestionável no orfismo. Nessa via-crúcis, de transmigrações, até mesmo em corpo de animais (metempisocose), a alma vai se purificando. Nesses intervalos reincarnacionistas a alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo do inferno, onde sofre um ciclo de pesadas penas. Quando completamente purificada, sai desse ciclo de gerações para reinar entre os heróis. O destino, obviamente, não será o mesmo para os iniciados órficos e os profanos. O mortal comum, profano, deverá percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar. Um artefato importantíssimo no orfismo são as “lamelas órficas”. São pequenas lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais. Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade. Numa das lamelas encontradas, estão incrustados versos de aconselhamento à alma do morto para sua viagem em direção ao Hades. Em lá chegando, o morto deve escolher entre o caminho da direita e da esquerda. “À esquerda da morada do Hades, tu encontrarás o Lago da Memória (Lethes), e os guardiões estarão lá. Diga-lhes... eu sou o menino da Terra e do Céu estrelado, mas estou morrendo de sede. Dá-me rapidamente a água fresca que flue do Lago da Memória”.
Para a alma que deve retornar a terra no intuito de reencarnar, essa água do Lethes tem por função não esquecer sua existência terrestre, mas eclipsar a recordação do mundo pós-morte. O orfismo assim reverte a função da água do Esquecimento pela nova doutrina da transmigração. O esquecimento não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber na fonte do Lethes reencarnará e será novamente projetada no ciclo do devir. Para aquelas almas que não precisam mais reencarnar, é aconselhado evitar a água do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E está escrito numa das lamelas: “Venho de uma comunidade de puros, ó puro soberano dos Infernos”.
Ao que Perséfone replica: “Saúdo-te, toma o caminho da direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de Perséfone”. A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério, pelo longo caminhar da mesma em direção a outra vida, mas sobretudo simboliza a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se, para os gregos "os mortos são aqueles que perderam a memória", o esquecimento para os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à vida.

3.7. Quanto ao pitagorismo, no entanto, observamos que as crenças pitagóricas não envolviam apenas números. Como a seita possuía caráter religioso, havia crenças que explicavam a existência ou não-existência humana, estudadas por eles numa suposta Filosofia. Os pitagóricos, ao que tudo indica, pregavam o corpo humano como o “túmulo da alma”. Quando o corpo (prisão) morria, a alma se libertava e renascia. Diziam que para manter a alma imaculada e limpa durante seu confinamento, não se poderia comer favas (vagens), galos brancos e alguns tipos de peixes, e não se podia apanhar qualquer alimento que caísse no chão.

3.8. Era, sobretudo, necessário manter a alma limpa. Assim, eles difundiram a noção de metempsicose ou transmigração da alma, cujo preceito teria por base informar que uma mesma alma poderia animar diferentes corpos, não importando se eram de origem vegetal, animal ou mineral. Este ciclo de reencarnações da alma teria por objetivo purificá-la - caso houvesse alguma maldade nela - para que, no final do ciclo, a alma pudesse alcançar o paraíso ou a Ilha dos Bem-Aventurados. Escreveram uma escatologia pitagórica, que é um tratado sobre as ações finais do homem ou de sua alma. Diz o tratado que “a alma, após a morte do corpo, está sujeita a um julgamento divino. Aquelas que forem perversas serão castigadas nos mundos inferiores e aquelas que forem boas, ou não possuírem maldade, alcançarão a Ilha dos Bem-Aventurados” .


***Anotações de aula:

Dionisismo: Aqui não há consciência do duplo. O deus apossa-se do sujeito. Deus faz do sujeito o que bem entender. As Bacantes. Tragédia de Eurípides. A Grécia abre-se para os festivais dionisíacos. Nestes festivais as estátuas são – EIDOLON. E se trata de um eidolon (aspecto - forma). Não se tendo em texto – Dionísio é o fundamento de todas as possibilidades de duplos possíveis. Ele é tudo e não é nada. Ele maldoso e benfazejo. Há vários dionísios. Depois dos festivais – todos vão para a floresta e copulam. Aproximação com o bacanal romano. Na Grécia arcaica tratava-se de um culto sagrado.

Orfismo: No orfismo o duplo possui certa lembrança posterior. Ser vivente é recipiente. Há também o "enthéos" e há a hierarquia dos iniciados. Por isso há rituais de iniciação. Ligação entre orfismo e pitagorismo. Os valores são muito fortes. É o modo de viver bem o aqui. Mistérios - é ao pé do ouvido. Ninguém se sabe como vai ser a ascese daquela pessoa. Processo de aprovação, e ao mesmo tempo – beberagem. “Produshcinell” afirma que na lírica já há indícios de uma interioridade. Há um certo rigor para aprovação do iniciado. O duplo pode, no orfismo, visitar a divindade. Em Parmênides – diferentemente do Orfismo - é o original mesmo que visita os deuses através do poema famoso sobre o ser. Homens e deuses não se misturam. O homem tem que saber os seus limites. Sócrates. O limite impediria de visitar placas divinas. Em Platão tenho a dialética que não me faz deus, mas abre o acesso de, racionalmente, agir como um deus. Os Órficos não inventaram a idéia de transmigração das almas. Diferenciar – pitagorismo, orfismo e pitagorismo-orfico. “Tudo esta em tudo”: pitagorismo. A leitura mais próxima dos pitagóricos é Aristóteles. A alma seria um duplo sui generis, porque poderia viver sem corpo.