sábado, 8 de maio de 2010

Palavra-chave

Não obstante a palavra “Filosofia” comporte diversos significados, entusiastas a tomam, no mais das vezes, nos extremos da perplexidade ou do desdém. Da mesma forma que o termo causa repulsa em alguns, em outros, ele renasce como admiração. Por vezes, basta sussurrar a “palavra mágica” para que jovens alunos comecem a se coçar ou a arrancar os cabelos, tamanha a chatice que lhe é atribuída. A “Filosofia” e os estudos filosóficos acabam se tornando chatices porque não são introduzidos aos jovens de maneira a despertá-los. Trata-se de apenas mais uma disciplina em que o aluno tem de alcançar certa nota para a aprovação; uma disciplina que exige do aluno leitura atenta e boa redação e que é recebida como mera obrigação acadêmica da qual não se deve discordar nunca.

Entretanto, o referido termo também causa espanto e admiração. Inúmeras vezes, com um quê de absurdidade, ouvi a seguinte frase: “Puxa! Você estuda Filosofia mesmo?”, como se se tratasse de uma tarefa dificílima e aterrorizante, digna de poucos homens obstinados que, ao longo da história, fundaram ou pretenderam fundar uma verdade eterna.

Longe de querer tecer comentários acerca do ensino de Filosofia no Brasil ou sobre a beleza de se estudar o termo em questão, o tema que proponho esmiuçar tem por base a importância da origem dos significados e sua multiplicidade para compreender como a linguagem nos afeta.

Interessante seria sugerir como primeira leitura a comédia do Anfitrião, de Plauto, mito esquecido, mas tantas vezes encenado nos palcos gregos e que desencadeou um número considerável de obras literárias.

O mito nos conduz a história de Anfitrião, primo e marido de Alcmena que, tendo saído em viagem para a guerra de Tebas, em companhia de seu criado e companheiro Sósia, fora surpreendido por Zeus. O supremo deus do Olimpo, apaixonado por Alcmena, decide consumar seu amor e, para ludibriá-la, cria uma espécie de réplica de Anfitrião - figura que possui todo o seu aspecto, mas que, em verdade, é o próprio Zeus – e faz com que seu filho Hermes se transforme na figura de Sósia, o escravo, para que o lar fosse vigiado e Zeus pudesse ser alertado caso alguém aparecesse.


Fingindo ser Anfitrião, Zeus toma Alcmena como esposa; quando retorna da guerra, Anfitrião e Sósia confundem-se, uma vez que a esposa apaixonada afirma a presença constante de ambos. Para desfazer o mal-entendido e resolver a crise de identidade, Anfitrião consulta Tirésias - o grande adivinho - que lhe dá a chave para o enigma. Mesmo assim, preocupado, Zeus vai ao encontro de Anfitrião e lhe explica o ocorrido, desfazendo a confusão.

Anfitrião, ao invés de se tomar por traído ou agredido, cumprimenta Zeus pelo feito e se sente honrado pela escolha do supremo Deus. Resultantes dessa união entre Zeus e a mortal Alcmena, nascem os gêmeos: Íficles, filho de Anfitrião, e Hércules, filho de Zeus.

Da aceitação pacífica de Anfitrião tem-se para a eternidade o próprio significado da palavra como substantivo: o chefe de um lar que recebe delicadamente os convidados. Do mesmo modo, até os dias de hoje, a palavra sósia, também substantivada, designa um sujeito muito parecido com outro ou o duplo de outrem.

Anfitrião e Sósia são apenas exemplos de palavras cuja origem e significado primeiros foram arbitrariamente esquecidos por nós. Esse esquecimento do que é distintivo, fruto da representação humana, é, em verdade, próprio do processo de formação de conceitos.

A formação de conceitos e a busca pela verdade serão os próximos assuntos a serem desenvolvidos por aqui. Por enquanto, nos contentaremos com a beleza e organização do mito: a potência ameaçadora dos conceitos.

Continuação: Seminário apresentado durante o curso "Sobre a Concepção de alma em Platão", na PUC-SP - Empédocles de Agrigento

7. Abordagem do segundo poema: Purificações

7.1. Nas "Purificações", observamos que as teses pitagóricas da metempsicose encontram-se transmitidas, pela primeira vez, por meio de uma obra escrita. Pelo menos, foi o que chegou até nós. Neste poema, o banimento por sangue (fruto da tradição órfica) e a dieta purificadora (ritual característico da época) são retomados para reforçar as idéias expostas antes em "Sobre a Natureza". Trata-se do mais antigo texto ocidental que se presta a revelar aspectos de seitas órficas vinculadas à metempsicose. Com o intuito de apontar o devido papel da alma, o ritual propõe que, para sobreviver a todos os passos de sua purgação, deve o indivíduo, daímon caído, homem errante, purificar-se até encontrar seu lugar junto à Esfera original.

7.2. Em seu poema “Purificações”, Empédocles parece combinar uma possível teoria da matéria com a doutrina pitagórica da metempsicose. Aqueles que cometem faltas graves – sejam divinos ou humanos – são punidos pelo Ódio que, como força indistinta, aprisiona suas almas em diferentes tipos de criaturas na terra ou no mar. Um ciclo de reencarnação oferece a esperança de uma eventual deificação para classes privilegiadas de homens: videntes, bardos, doutores e príncipes. Naturalmente, Empédocles teria se identificado com todas essas profissões. Em sua escrita, ele parece se mover equivocadamente entre um estilo austero e mecânico, e um outro estilo de caráter crítico-religioso. Algumas vezes ele faz uso de nomes divinos para seus quatro elementos (Zeus, Hera, Hades e Nestis) e exibe seu Amor para com a deusa Afrodite, a quem ele homenageia em termos que antecipa a frente “Ode à alegria” de Schiller (KRS 349). Sem dúvida, a afirmação de que ele mesmo se consideraria divino pode ser reduzida da mesma maneira pela qual ele demitologiza os deuses Olímpicos, embora tal atribuição tenha sido o que mais chamou a atenção de seus intérpretes, especialmente por conta das histórias lendárias sobre sua morte.

7.3. No Fr. 112 – de Diógenes Laércio, Empédocles reconhecendo que é venerado e se apresentando “não como um (mero) mortal, mas como um deus imortal” se afasta de uma suposta "sóbria filosofia materialista da natureza" e se abre ao inebriamento espiritual do Pitagorismo e das religiões denominadas mistéricas. Assim, ao reclamar para si uma natureza divina, Empédocles faz eco da auto-revelação de Hermes a Príamo, no último canto da Ilíada (XXIV). Suas palavras introdutórias ainda ressaltam a saudação que o morto, iniciado nos cultos-mistéricos, era acolhido, conforme Perséfone, nas “laminas de ouro” de Túrios (datadas do séc. IV a.C). Teria ele morrido em Túrios? Não há consenso.

7.4. Uma outra idéia que surge no poema está nas Inscrições Gregas que afirmam: “ó feliz e bem-aventurado, tu serás um deus em vez de um mortal”. A idéia de ser deus (dáimon) é pressuposta na dinâmica de que a divindade era uma vez mais atingível após um ciclo de encarnações. E esta idéia de reencarnar não estaria submetida somente às faltas, aos erros que diluíram o estado de graça do sujeito, mas percebe-se que a dinâmica da reencarnação é própria da religião mistérica.

7.5. Quanto ao ciclo de reencarnações, podemos perceber dois momentos específicos: Primeiro com a promulgação do decreto e, seqüencialmente, com o suplício da encarnação. No fr. 115 – que revitaliza o oráculo da Necessidade - Empédocles estaria a afirmar que alguns dáimones, espíritos de longa vida, erram e poluem seus membros com derramamento de sangue (comer carne) e falseiam o juramento que fizeram pela quantidade de erros. Tais dáimones caídos nasceriam durante [tres vezes dez mil anos] em toda a casta de forma mortais, que mudam de um para o outro nos penosos caminhos da vida.

Frag 115:

[A força do ar persegue-o ate o mar, o mar o cospe para a superfície da terra, a terra o lança para os raios do sol resplandecente, e o sol para os redemoinhos do ar, um recebe-o do outro, mas todos o odeiam. Desse numero eu agora faço parte, desterrado dos deuses e errante, por ter confiado na tresloucada Discórdia].

Desse modo, Empédocles parece nos deixar a sua visão sobre a existência humana:

“Pobre raça infeliz dos mortais”.

"...mísera condição..."

Ainda, verifica-se que o lugar para onde se deslocam as almas, em alguns momentos, é descrito como uma gruta. Ao voltar ao mundo dos vivos, Empédocles diria no Fr. 126 que o dáimon retorna “revestido com uma alheia túnica de carne”. Assim sendo, os fragmentos 118, 119, 120, 122, 124 e 126 denotam a descida do próprio Empédocles a um lugar de suplícios. Neste local estavam reunidos outras espécies de dáimones. Num outro momento, numa espécie de gruta, os dáimones eram revestidos com uma espécie de carne alheia e submetidos a forças contrárias que regem a existência mortal. Tal é a nossa interpretação.

7.7. Quando se apresenta uma certa esperança de libertação do ciclo, Empédocles retrataria essa esperança como sendo a ascensão de um dáimon por meio de um esquema disposto da seguinte maneira: (a) Há um estado original (divino); (b) Há erros e encarnações para purificá-los. (plantas, feras e homem) e (c) Há o retorno à condição original – deus - após o cumprimento dos rituais de purificação e ausência de cometimento de erros. Quando a alma se aproxima de estado de divindade, dá-se ao indivíduo a condição de dáimon.
Aqui, Kirk e Raven fazem alusão a escatologia da religião dos mistérios pitagóricos, sobretudo pelo Fr. 133 de Píndaro, que dispõe: “Aqueles, de quem Perséfone recebe expiação por um antigo sofrimento, no sonho ela de novo lhes devolve a alma ao sol lá do alto [...].

7.8. Nos fragmentos 128 e 130, Empédocles parece nos revelar suas noções sobre os rituais e sacrifícios necessários para o alcance da condição original, bem como algumas idéias sobre teogonia. De certo modo, ele teria corrigido a teologia tradicional e oficial afirmando que o Amor, e não Kronos, foi originalmente o deus supremo. A título de exemplo, temos a passagem do poema Sobre a Natureza, quando Empédocles parece referis-se a Esfera e ao domínio absoluto do amor sobre as raízes. Posteriormente, se seguirmos a obra de Kirk, Raiven e Schofield, eles passam a tratar do derramamento de sangue e do canibalismo expostos nos fragmentos em períodos distintos. Encontramos, nos fragmentos 135 a 137, referências sobre o erro mais grave: a matança de seres vivos. É por isso que Sexto Empírico pretende realçar aos nossos olhos o horror do derramamento de sangue e do consumo da carne ao extrair uma conseqüência da teoria da reencarnação, já referida por Xenófanes. A idéia é simples: ao matar um mero animal, talvez estejamos a matar um filho ou um pai.

8. Encontro dos poemas na avaliação dos estudiosos de Empédocles

8.1. A questão da relação entre “Sobre a Natureza” e “Purificações” permanece um enigma. O contraste não é apenas de humor, pois as doutrinas de salvação pessoal e metempsicose não podem ser facilmente conciliadas com o que os críticos consideram como "metafísica essencialmente materialista", no poema sobre a physis. A maioria dos intérpretes modernos têm esperanças de encontrar mais do que uma solução psicológica ou biográfica. Eles vêem a antinomia implícita nos fragmentos significativamente relacionada com a reputação do múltiplo Empédocles: ora filósofo, ora cientista, ora milagreiro. “O último dos xamãs grego”, um “Fausto”, “um Paracelso grego” são algumas das caracterizações mais sugestivas que têm sido propostas. Enquanto o poema religioso trai a influência do pitagorismo e vertentes afins, tendo sido Empédocles chamado por alguns de estudioso do orfismo e da psicologia, ou de "puritano grego", em seu poema cosmológico observa-se, inequivocamente, um desenvolvimento, mas com modificações cruciais, do pensamento de Parmênides. Parmênides de Eléia tinha deduzido que o real deve ser: (a) nascer e imperecível, (b)uno e indivisível, (c) imóvel, (d) uma realidade completa. Em razão das entidades familiares do mundo dos sentidos não estarem em conformidade a esses critérios, essas entidades seriam um "homem ilusão".

8.2. O que bem se vê é que não há consenso entre os intérpretes. De acordo com M. Halbwachs, Empédocles, em seus poemas, distinguiria a alma do pensamento, de modo a conceber dois “tipos de homem”: o que vive, sente e pensa (com o sangue do coração em que os elementos se misturam em igualdade) e o homem espiritual, o dáimon caído. Haveria o homem da sensibilidade/sensação descrito no poema “Da natureza” e o ser espiritual que reside no homem, descrito no poema “Purificações.

8.3. Entretanto, segundo Kirk, Raven e Schofield, é freqüente, entre os intérpretes, concluir que os poemas “Da natureza” e “Purificações” encontram-se em conflito, principalmente no que concerne à natureza da alma. É que o primeiro é, muitas vezes, analisado como proposta materialista, redutiva das funções psicológicas. De modo contrário, o segundo é interpretado como o poema que contém implícita a idéia de alma ou dáimon que um dia usufruirá de seu verdadeiro caráter incorpóreo, antimatéria. Não há no segundo poema nenhuma menção à “psyché”, mas por meio das múltiplas interpretações, observa-se a nítida permanência da doutrina pitagórica da metempsicose. A noção de dáimon em Empédocles nos remete ao encontro do “Eu”, um sujeito que sobrevive a todas as mudanças do ciclo narrado em “Da Natureza” e que se perfaz como eterno e ineliminável. E esse “Eu” sugere-nos, enfim, uma noção de alma, de interioridade eterna e imperecível.

8.4. Ademais, outras conexões entre os dois poemas supracitados podem ser concebidas por meio da análise dos fragmentos restantes e da doxografia. Desse modo, poderíamos relacionar o Fr.15, Plutarco adv. Colotem, 1113 d, do poema “Da Natureza” – que propõe uma existência que se prolonga para antes do nascimento e para além da morte –com a doutrina da reencarnação proposta nas “Purificações”: “Um homem versado em tais matérias não suporia no seu espírito que, enquanto vivem o que chamam de vida, existem todo esse tempo e lhes sobrevêm bens e males, mas que não existem em absoluto, antes de terem sido formados como mortais e depois de terem dissolvidos.”

8.5. O fragmento mencionado poderia nos parecer contrário a idéia de um dáimon e de um “Eu” imperecíveis, já que fala de um suposto não existir em absoluto. Porém, compreendemos que o argumento ora exposto, em verdade, reforça a doutrina da reencarnação, haja vista que não se sabe exatamente quais seriam as contínuas identidades do dáimon em suas respectivas transformações elementares, no desencadear da transmigração. Dessa forma, entendemos por bem compreender que, se todos os seres são corruptíveis, passíveis de sofrer mudanças, e apenas os elementos são imutáveis, nesse caso, a alma, o dáimon, o “Eu” seriam constituídos pela mistura dos quatro elementos puros, o que também os tornaria imutáveis e eternos, ainda que fisicamente modificados nas mais diversas manifestações naturais – daí a idéia da alma ser imperecível, imortal.

8.6. Nesse ínterim, haveria, então, conexão entre o ciclo dos dáimones (Purificações) e o ciclo dos elementos (Da natureza), além de uma espécie de princípio norteador primordial, um “nous”, uma inteligência que se predispõe em alma, espírito, pensamento. Esse “nous” se manifesta por meio das forças conflitantes de Éros e Neikós, e, mais uma vez se percebe a estreita relação entre os dois poemas.

8.7. Catherine Osbourne, em seu artigo “Empedocles Recycled”, chega, até mesmo, a nos propor a idéia de que, em verdade, não há dois poemas empedocleanos, mas apenas um poema filosófico-religioso, em razão de não se encontrar qualquer divisão dos poemas nos testemunhos arcaicos.

8.8. O que há são apenas evidências de que haveria somente um título “Katharmoi” e outros subtítulos ou classificações que indicariam o conteúdo da obra. E, de acordo com Catherine, os dois títulos atribuídos modernamente são, na realidade, formas alternativas de se denominar o mesmo poema, já que era comum entre os pré-socráticos o mesmo poema possuir dois títulos, como, por exemplo, em Protágoras (Alétheia/Kataballontes). O fato é que não há como se ter certeza de que se trata de apenas um ou dois poemas, dada a escassez dos fragmentos e a dificuldade em interpretá-los.

9. Fragmentos para análise quanto à concepção de alma em Empédocles

No Poema “Da Natureza”, sugerimos a leitura mínima dos fragmentos 2, 6, 7, 8, 13, 15, 17, 103, 107, 111.

No poema “Purificações”, sugerimos a leitura mínima dos fragmentos: 112, 115, 117, 119,

9.1. No livro “Corpo, Alma e Saúde”, Giovanni Reale demonstra como era entendido o conceito de alma na Grécia na época de Homero. Deixemos que o próprio autor fale: “A psyché nos poemas homéricos é a imagem do morto privada de consciência e de inteligência ”, ou seja, “a psyché não é a idéia da vida enquanto tal, mas a idéia da vida-que-se-vai e particularmente a idéia do morto”. Não havia a idéia da imortalidade da alma, pois ela não era o eu do indivíduo, mas o que restava dele depois da morte, representando apenas o que ele foi. Por isso a imortalidade só era possível pela lembrança das realizações humanas, dos gestos heróicos. O conceito evidenciado neste período foi o de eidolon.

9.2. Depois, vimos que os gregos daqueles tempos não tinham a idéia de corpo como algo unitário que representasse o indivíduo. Enquanto vivo, o corpo só era compreendido na sua multiplicidade, ou seja, cada função vital designada na narrativa homérica simbolizava o todo do homem naquele momento. O bater do coração (cárdia) ou o golpe dado com o braço faziam esses órgãos representarem, no momento em que eram enfatizados, o homem por inteiro, isto é, cada parte simbolizava o todo em determinado momento . No dizer de Fränkel: “O homem identifica-se, portanto, com a sua ação, e se deixa compreender de modo completo e válido pela sua ação; ele não tem profundidades escondidas [...] O homem homérico compreende-se muito mais no seu agir do que no seu ser ”. O termo “soma” era usado para designar o organismo depois de morto, e só aí era visto de forma unitária, mas justamente por deixar de ter qualquer função.

Por isso é que a idéia de corpo como algo único que representasse a imagem do indivíduo só foi possível depois que a alma passou a designar a personalidade de cada um, ou seja, “o ser”, o que só ocorre com Sócrates. Isto significa que a idéia física do homem como um todo só surgiu depois da idéia de alma como, no dizer de Havelock, “espírito que pensa, isto é, capaz tanto de decisão moral quanto de conhecimento científico, e a sede da responsabilidade moral, algo infinitamente precioso, uma essência única no reino da natureza ”.

9.4. Do alto de sua sabedoria - auto proclamada divina - Empédocles reafirmaria os ciclos de reencarnações, consoantes às fases de transformações que ocorreriam alternadamente, em ciclos de 10 mil anos, entre amor e ódio. Tudo por conta de um decreto (psephisma) que mandaria purificar todos os crimes de sangue cometidos durante o tempo vivido pelos humanos. Todos teriam de passar, portanto, por etapas de vida vegetal, animal e humana até alcançar a condição divina original, quando os espíritos (dáimones) poderiam finalmente se libertar. Quando tudo estava reunido em uma esfera perfeita, o amor dominava tudo e a amizade reinava. Contudo, a discórdia e seus rituais de matança tudo romperam, fazendo com que os seres se devorassem uns aos outros. Uma lei natural própria para tempos impuros.


10. O EMPÉDOCLES DE NIETZSCHE

Em seu universo Zoroastro, Nietzsche nos descreve um Empédocles divino, teatral, pomposo e pitagórico, conforme as mais diversas biografias apócrifas e lendárias do pré-socrático em questão. Na obra “O nascimento da Filosofia na época da tragédia grega”, Nietzsche analisa toda a vida e a obra de Empédocles a fim de nos mostrar a importância e a atualidade de seu pensamento. Ele também defende a hipótese, tratada por boa parte dos intérpretes, de que Empédocles teria sido banido de Agrigento e que, portanto, passou a vagar pela Grécia, tendo morrido no Peloponeso. Segundo Nietzsche, Empédocles vivia na tentativa de converter os gregos aos ritos sacrificiais pitagóricos, para que todos percebessem e apreciassem a UNIDADE de tudo o que vive. Diante do ciclo das transmigrações da alma tudo se torna uno: a planta, o homem e o animal, deuses – daí o “assassinato”, a “autofagia” em se comer carne. Para evitar o ciclo, necessária é a purificação total por meio dos ritos.

É dessa forma que, para Nietzsche, o pensamento de Empédocles revela-nos que tudo o que vive é um e que essa “unidade dos viventes” é fruto do pensamento parmenidiano da “unidade do ser”. O que o destaca é que Empédocles teria desenvolvido a referida idéia de maneira muito mais fecunda, em razão de sua profunda simpatia pela natureza. Não obstante tenha se especulado sobre o caráter apócrifo da figura lendária de Empédocles, Nietzsche crê que ele tenha sido considerado médico, curandeiro ou deus porque a finalidade de sua existência parecia ser a de sanar os males causados pelo ódio; “proclamar, num mundo de ódio, o pensamento da unidade e levar um remédio a todos os lugares onde aparece a dor” – Daí concluir-se por uma certa ética na physis empedocleana.

Ao compreender o universo como a pura contradição, Empédocles sofre e se culpa. É por meio do pecado e da auto-acusação que ele explicará sua presença no mundo. Em razão da culpa, Nietzsche o denomina de “poeta trágico”, de “contemporâneo de Ésquilo”, de “pessimista ativo”.

Trata-se de um “pessimismo ativo” porque a mistura entre as noções materialistas e idealistas se consolida apenas na atividade ética. O interessante no pensamento empedocleano seria, justamente, a tentativa de vincular instintos religiosos a explicações científicas. Vejamos.

Os mortais, deuses caídos e punidos, agora condenados a errar pela Terra, local de dor, podridão e sofrimento, supostamente, só poderiam encontrar a paz e a ordem por meio de um princípio: o Amor. Dessa forma, Nietzsche sustenta que o ato sexual seria, para Empédocles, o que há de mais nobre e contrário à Discórdia – ao contrário de alguns intérpretes que consideram que “Purificações” é um poema que proclama a abstinência sexual.

O ato sexual seria a atitude nobre por excelência porque tudo o que está separado aspira a se reunir. Um dos problemas centrais do pensamento de Empédocles é, justamente, a nostalgia do semelhante. É por isso que o verdadeiro pensamento de Empédocles poderia ser acolhido como “a unidade de tudo aquilo que se ama”.

A luta entre Éros e Neikós é que dá origem a todo vir-a-ser e toda destruição (que nunca é total, absoluta). Nesse sentido, até mesmo os deuses vieram a ser e não são eternos; esses espíritos divinos não são motores de movimento, como em Anaxágoras. O amor e o ódio é que são.

De maneira a complementar, Empédocles substitui o “Nous” indistinto de Anaxágoras por Éros e Neikós, mais precisos. E, como não há finalidade nesse movimento, a adaptação é que toma a frente do problema: é a adaptação que determina o número de seres existentes - Pensamento, este, posteriormente desenvolvido por Darwin.

É que o amor não se preocuparia em adaptar, mas apenas em unir, e a afinidade é que guiaria os semelhantes até o encontro da combinação, por meio da alternância das forças motrizes.

O que Nietzsche de certa forma condena é o fato de Empédocles, possivelmente, não nos ter explicado quando determinada força prevalece ou quanto. A pluralidade das coisas ora é atribuída ao Éros, ora ao Neikós, que estão em tudo. Não existe o vazio de Demócrito: tudo é amor e ódio. E, ainda, para Nietzsche, o “erro” de Empédocles estaria em ter se utilizado de um reino de forças inexplicáveis, impenetráveis, reduzindo a ciência em magia. Por isso Empédocles é visto ora como médico, ora como mago; ora como poeta, ora como retórico, deus/homem, sábio/artista, rei/sacerdote. Empédocles, que põe fim à idade do mito, da tragédia e que dá início à idade da democracia, da oratória, do racional e da ciência é a contradição por excelência, ele é o homem agonal.

11. O EMPÉDOCLES DE HEGEL

Embora Hegel inicie seus escritos sobre Empédocles numa aparente tendência de afinidade com a sua filosofia da natureza, ele, na medida em que transcreve as observações aristotélicas, acaba por adotar a mesma posição de Aristóteles: Empédocles falhou na distinção, mas acertou trazendo-nos as idéias de unidade dos opostos e unidade de mistura, e quando coordenou os princípios do real e do ideal, os quais poderiam ser dispostos em seis etapas: fogo, água, ar, terra, amor e luta.

Ainda, Hegel ressalta que os elementos poderiam ser compreendidos por meio da seguinte distinção: de um lado, o fogo. E, do outro lado, a água, o ar e a terra. Seguindo as orientações e entendimentos de Aristóteles, Hegel acaba por descrevê-los, sem qualquer aprofundamento ou argumentação mais fecunda sobre a doxografia. Apenas concorda e cita Aristóteles, alegando que Empédocles é contraditório em si mesmo e que é mais poético que filosófico:

“Esta é a natureza da representação sintetizadora como tal, que a falta comum de capacidade de pensar ora procura reter a unidade, ora a multiplicidade, não conseguindo unir ambos os pensamentos.”(Hegel, Os Pré-Socráticos, pg 218)

Hegel termina por afirmar que o referido pré-socrático não desperta o interesse atual e que, em Heráclito, a síntese de Empédocles se mostra mais sábia e eficaz.





Referências Bibliográficas


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terça-feira, 4 de maio de 2010

Continuação - Empédocles de Agrigento

4. As quatro raízes físicas de todas as coisas: água, terra, ar e fogo

4.1. O que Empédocles denominava “raízes” era aquilo que Platão e pensadores gregos posteriores chamavam stoitheia - palavra utilizada como sinônimo de sílaba. A tradução latina, elementum, da qual deriva nossa palavra “elemento”, compara as raízes não às sílabas, mas às letras do alfabeto. De qualquer forma, não se pode duvidar da relevância da abordagem dos elementos elencados por Empédocles.
Insta ressaltar que filósofos e cientistas atribuíram ao quarteto de elementos do pré-socrático em questão um papel fundamental na física e na química até o advento de Boyle, no século XVII. A natureza possuiria quatro elementos básicos, ou raízes: a terra, o ar, o fogo e a água. Não seria correto, portanto, afirmar que “tudo” muda. Basicamente, nada se altera. O que acontece é que esses quatro elementos diferentes simplesmente se combinam e depois voltam a se separar para então se combinarem novamente. O que, supostamente, une e desune os quatro elementos são dois princípios: o amor e o ódio. Os quatro elementos e os dois princípios seriam eternos e imutáveis, mas as substâncias formadas por eles seriam pouco duradouras: são os compostos mortais. Jostein Gaardner afirma que é possível que, quando, Empedócles tenha visto uma madeira queimar, teria percebido que alguma coisa ali se desintegra. Alguma coisa na madeira estala, ferve: é a água; a fumaça é o ar; o responsável é o fogo, e as cinzas são a terra.
O que dá origem aos já referidos compostos mortais são duas forças que atuariam nestas substâncias: o amor e o ódio. O amor agiria como força de atração e união, o ódio como força de dissolução. Aprofundemo-nos.

5. “Éros e Neikós”: como forças motrizes e enquanto dinâmica e efeitos na physis

5.1. Para Empédocles, o cosmos se desenrola num ciclo em que algumas vezes o Amor é dominante, e em outras é o Ódio. Sob a influência do Amor, os elementos se combinam em uma esfera homogênea [sphairos], harmoniosa e resplandecente, herdeira do universo de Parmênides. Sob a influência do Ódio, os elementos se separam, mas, assim que o Amor começa a ganhar o território que havia perdido anteriormente, aparecem todas as diferentes espécies de seres vivos. Todos os seres compostos, como os animais, as aves e os peixes, são criaturas temporárias que surgem e partem; somente os elementos são eternos, e somente o ciclo cósmico continua.

5.2. Ao compreendermos a filosofia de Empédocles, nos paraece que "nascer" e "morrer" não existem se entendermos o nascer e o morrer como um vir do nada e um ir para o nada. Ele parece pensar dessa forma porque acreditaria que o ser é e o não ser não é. Assim não existe o nascimento e a morte de algo. Para ele o que chamamos de nascimento e morte é simplesmente a aproximação e a separação de algumas substâncias. Essas substâncias são indestrutíveis e eternamente iguais. A água, o ar, a terra e o fogo são as substâncias que estão no princípio de todos os derivados e variantes. Elas são as substâncias mais simples das quais derivam todas as outras, são os elementos básicos que não mudam nunca sua qualidade. As quatro substâncias básicas se unem e se separam umas das outras formando todas as substâncias existentes.
Os quatro elementos da filosofia de Empédocles criam as coisas quando se unem e, quando se separam, destroem o que existia no momento anterior de união. A amizade ou o amor é a força cósmica que une os elementos e o ódio ou a discórdia causam a desunião e a conseqüente separação dos elementos. O destino é que alterna a predominância das duas forças que atuam sobre os quatro elementos em um tempo constante. Quando o amor ou a amizade é mais forte os elementos se juntam em uma unidade. E ao contrário, quando o mais forte é o ódio ou a discórdia os elementos se separam e se tornam multiplicidade.

5.3. Tanto os elementos como as forças que atuam sobre eles são divinos. Deus seria o Ésfero, a união de todos os elementos por meio do amor ou da amizade. Na fase em que o amor domina todos os elementos, eles estarão ligados em perfeita harmonia. Nessa fase não existe o sol, nem terra ou o mar, mas uma unidade de tudo que Empédocles denomina como sendo ESFERA. As almas também seriam constituídas pela união dos quatro elementos e sofreriam a ação das forças do amor ou da amizade e do ódio ou da discórdia. Ao contrário do domínio do amor, no domínio do ódio existiria a dissolução dos elementos e formar-se-ía assim o caos. Quando o caos está instalado os elementos começam novamente a se unificar começando um novo ciclo. Para que o mundo exista devem existir tanto os elementos positivos quanto os negativos, pois se existir somente o amor ou a amizade todos os elementos formariam apenas uma unidade compacta, sem finalidade ou vida.

5.4. Entretanto, se o universo fosse constituído apenas pela força do ódio ou da discórdia, os elementos ficariam completamente separados, na repleta desunião, razão pela qual o próprio cosmos não haveria de existir. Portanto, as coisas do mundo passariam a existir num período de transição que seria o do predomínio do amor ao predomínio do ódio. Assim o cosmos nasceria e se destruiria continuamente, dependente e por meio da ação das duas forças sobre os elementos.

Ademais, Empédocles parece ter-nos fornecido uma pequena teoria sobre percepção sensorial. Constam nos fragmentos alguns versos sobre o que se pensava acerca dos sentidos. Dos poros dos compostos mortais sairíam emanações que atingem diretamente os nossos órgãos de sentido. Desse modo, as conexões seriam realizadas por meio de um processo de reconhecimento e semelhança. Os compostos semelhantes tenderiam a se reconhecer. O que for fogo em nossos sentidos vai reconhecer as emanações que vêm do fogo; o que for regido pela água vai reconhecer as emanações que vêm da água. Somente com nossa visão aconteceria o contrário. Nela, as emanações partem dos olhos mas, da mesma forma, essas emanações vão reconhecer nas coisas o que lhe for semelhante. Para Empédocles nosso conhecimento está no coração e o veículo que transporta esse conhecimento é o sangue, posto que o sangue seria a substância em que os elementos podem ser encontrados em quantidade isonômica e pura. Parece-nos seguir a tradição homérica, ao referir-se às "frenas". Não se trata de um interioridade "pensante". Não haveria, aqui, indícios de uma concepção de alma.
Pelo contrário. O que nos parece, e, seguimos a orientação de Holbwachs, é que Empédocles dintigue, muito bem, o "homem que pensa, vive e sente" do "homem espiritual". Tais análises ficarão mais claras após o desvendar de Purificações - se é que isso é possível.

5.5. Na seqüência, compreendemos que haveria, em Empédocles, uma necessidade de se aproveitar e utilizar de todos os sentidos, para que, por meio do intelecto, possamos perceber as evidências que estão ao nosso redor. Evidências de uma realidade empírica? Talvez. Nada pode ser afirmado quando se analisa apenas uma quinta parte de uma obra inacabada. Sustentaria ele, ainda, uma teoria sobre a evolução dos seres vivos? Não no sentido em que, hoje, compreendemos evolução. Empédocles, aparentemente, compreende que no princípio da constituição dos comportos, havia numerosas partes de homens e animais - pernas, olhos, orelhas - que estavam distribuídas desordenadamente. Haveria, dessa maneira, uma primeira geração: a dos membros independentes. Mãos sozinhas, olhos boiando na Esfera, braços, pernas, sem corpo e disformes. Numa segunda geração, a dos seres oníricos, monstruosos, haveria homens com cabeça de boi, braços grudados em costas, répteis com faces de peixes, etc. Já na terceira geração, poderíamos observar formas constituídas. O que vingou dessas junções seletivas do amor, por meio do processo de reconhecimento e semelhança, permaneceria constituído porque adaptado. A quarta geração seria a das misturas das formas constituídas; a geração que hoje vivemos.

Para explicar a origem das espécies vivas, Empédocles parece conceber uma notável “teoria da evolução”, a partir da sobrevivência do mais apto, durante e após o processo de reconhecimento e semelhança do Amor. A título de exemplo, podemos citar o fragmento em que ele descreve que, no início, carne e osso surgiram como composições químicas de elementos, a carne sendo constituída de fogo, ar e água em partes iguais, o osso constituindo-se de duas partes de água, duas de terra e quatro de fogo.

5.6. A partir desses constituintes, formaram-se membros e órgãos do corpo não unidos; olhos fora das cavidades, braços sem ombros e rostos sem pescoços (KRS 375-6). Estes órgãos vagaram por aí até encontrar pares ao acaso; fizeram uniões, que nessa primeira fase resultaram com freqüência não muito adequadas. Disso resultaram várias monstruosidades: homens com cabeça de boi, bois com cabeça de homem, criaturas andróginas com rostos e seios na frente e nas costas. A maioria desses organismos do acaso eram frágeis ou estéreis e somente as estruturas mais bem adaptadas sobreviveram para tornar-se o homem e as espécies animais que conhecemos. Sua capacidade de reproduzir foi algo devido ao acaso, não a um plano (Aristóteles, Fis. 2, 8, 198b29).


6. Abordagem do primeiro poema: Sobre a Natureza

6.1. O primeiro poema de Empédocles é intitulado “Sobre a Natureza”. Observamos que, nos fragmentos disponíveis, Empédocles parece não só estabelecer vínculo com os pré-socráticos, os milésios, como também estabelece que a totalidade da physis explica-se a partir da multiplicidade de elementos - o que ele denominou, como já vimos, de raízes. São estas raízes que explicam a origem do Universo.

6.2. Neste poema é notória também a influência de Parmênides (515-449 a.C.). Desse modo, entendemos que Empédocles tentou resolver alguns problemas encontrados na teoria eleata da existência não criada do mundo. Procurou reconhecer que embora limitada, a experiência sensível era fundamental para o entendimento dos humanos, os mortais. Cada sentido dentro de suas limitações ajudaria a esclarecer as particularidades das coisas percebidas. Junto ao trabalho da inteligência, os sentidos poderiam ser um meio válido de formação do conhecimento adequado do mundo. Os sentidos abririam, assim, algumas passagens por meio das quais o conhecimento poderia ser iniciado.

6.3. O primeiro tema trabalhado, se assim podemos didaticamente enumerar, foi exatamente sobre a defesa dos sentidos.

No Fr. 2: “Reduzidos são os poderes que se encontram espalhados pelo corpo, e muitas são as mazelas que nele se declaram e que embotam o pensamento. Os homens contemplam na sua vida apenas uma parcela dela, depois, rápidos em morrer, são arrebatados e voam para longe como fumo [...]”.

Kirk, Raven e Schofield admitem que, aqui, está em jogo a noção de entendimento para Empédocles. Afirmam que Empédocles lamenta a compreensão extremamente limitada das coisas que a maioria dos homens alcança.

6.4. Seguem-se a este tema as idéias de: poder do conhecimento e descrição das quatro raízes. As quatro raízes do ser eram os princípios materiais básicos das coisas. Estas não teriam nascimento ou morte, mas estariam em movimentos cíclicos permanentes de composição e corrupção - como outrora exposto. Todos os elementos sempre existiriam e nunca seriam destruídos em sua totalidade, mas apenas separados de sua mistura original. Assim, não haveria o vácuo tão criticado pelos eleatas. As mudanças de estado da matéria ocorreriam pela ação das forças de atração (philia) e separação (neikós). Inicialmente, o amor que une a todos estaria no centro da esfera, a manter a unidade. Porém, com a atuação de fora para dentro da discórdia (neikós), a desagregação acabaria por espalhar tudo que estava unido.

6.5. Dessa forma, uma dupla solução parecia ser colocada ao problema trazido por Parmênides em torno de sua exigência sobre a unidade do todo. O ciclo de transformações parece permitir que cada ser composto da mistura de partes equilibradas de todos os outros elementos pudessem prevalecer durante um período de tempo específico. Destarte, nada deixaria de existir. Nascimento e destruição não passariam de etapas dos diversos ciclos de renovação eterna, sendo o universo o todo uno e completamente imóvel imaginado por Parmênides. Duas interpretações podem ser feitas acerca deste ciclo de nascimento e morte, provocado pelo conflito entre amor e ódio. Uma considerando o múltiplo, de um modo geral, uno pela soma constante da quantidade dos elementos que se mantêm apesar da destruição e reunião aparente de todas as coisas. Outra compreendendo a dissolução da mistura como um processo de formação de novos seres sem cessar. Por conseguinte, haveria geração e corrupção tanto na união como na separação. No fim tudo acabaria por preencher o espaço existente de maneira precisa, sem excesso, nem falta. As coisas seriam formadas, portanto, no sistema de Empédocles, a partir do conflito de forças existente entre atração e separação, que tudo uniria em sua esfera própria (num processo de semelhança).

6.6. A ignorância dessa verdade e todos os equívocos decorrem quando coisas dessemelhantes são erradamente relacionadas pelo pensamento humano. Fora a discórdia que provocara o movimento de separação das coisas que o amor, pelo saber, conseguiu reunir. Tudo que havia sido separado é, ao final, corretamente agrupado pelo conhecimento verdadeiro como na original unidade de antes. Sobre a Natureza, então, apresentaria os princípios gerais do que tornou possível o conhecimento de como os quatro elementos materiais poderiam formar a diversidade aparente, superando as limitações dos sentidos que impediam essa compreensão.

6.7. A transformação das substâncias, por nascimento e morte, provocada pela alternância de domínio entre o amor e a discórdia, era a principal causa dessa mistura e confusão também aparentes. Nesse sentido, toda uma cosmologia pôde ser elaborada sob o molde de uma esfera que tudo engloba, enquanto um vórtice faz com que o movimento caótico do turbilhão misture tudo. Em meio a isso, só a força de atração conseguiria novamente tudo juntar, em etapas evolutivas de criação e destruição, na disputa com a força de repulsão que levou à formação do mundo atual e a vida na Terra - incluindo as partes fisiológicas dos seres vivos e a percepção e consciência humanas. Estas idéias calcam um dos mais importantes fragmentos que temos de Empédocles, ou seja, a idéia de ciclo de mudança. É doxografado por Simplício e retrata o conceito de “duplo” como o sentido da natureza física.
O fragmento pode ser dividido em tres secções. Os versos de 1-5 falam-nos de um processo dual, constituído pela criação do uno a partir da multiplicidade, e, depois, da multiplicidade a partir do uno. Os versos 6-8 afirmam que este processo dual se repete incessantemente e explicam-no como devido a uma ação alternada entre o amor e o ódio. E por fim, nos versos 9-13, retomam-se dois pontos. Os versos 9-11 inferem o duplo nascimento das coisas, que estas nascem e não tem uma vida estável, já os versos 12-13 declaram, em virtude da sua incessante alternância entre unidade e pluralidade, elas são sempre imutáveis. Podemos concluir este poema com as idéias estruturais restantes que são: “agentes e substâncias do ciclo; a mistura das raízes; a esfera e o cosmos; cosmogonia; a zoogonia e a biologia”.