segunda-feira, 12 de julho de 2010

Breves considerações acerca do conceito de autenticidade em Martin Heidegger

NOÇÕES GERAIS ACERCA DO CONCEITO DE AUTENTICIDADE EM HEIDEGGER:

Para que possamos esclarecer o que Heidegger compreende por “autenticidade”, nos é imprescindível, antes, identificar a noção de Ser em seu pensamento. Em Ser e Tempo, o autor germânico buscou reestruturar as bases da Filosofia moderna, de modo a transformar o próprio pensar, na medida em que tenta desviar o foco do pensamento para o denominado sentido do Ser. Não mais substantivar esse conteúdo de intensa vivacidade, mas torná-lo verbo: essa era a intenção primeira do referido acadêmico.

E de que maneira podemos pensar Ser como expressão verbal, dessubstantivada? Heidegger nos ensina que somente por meio de nossa existência. O existir é a condição fundamental que se une às outras bases do pensamento, e por isso é a nova estrutura do pensar trazida pelo autor; é mútua pertença entre Ser e o homem, porque o homem é a única criatura de Ser e do Ser. Esse Ser, indescritível verbo, se abre ao homem da mesma forma que o homem se abre ao Ser, e tudo isso simplesmente porque o homem é. As outras criaturas mundanas “estão-aí” e, enquanto todas as coisas “são”, somente o homem “é”: tal é o caráter da existência:

“O ser que existe é o homem. Só o homem existe. As pedras são, mas não existem. Os cavalos são, mas não existem. As árvores são, mas não existem. Os anjos são, mas não existem. Deus é, mas não existe.”

Nesse sentido, podemos constatar que somente o homem se dá conta de sua inexprimível existência, de seu Ser, e essa consciência é a sua condição. Ser, no entendimento heideggeriano, é compreender ser. O homem só é homem porque é verbo projetado no tempo (Ser) e porque o compreende que é.

Não por acaso, na referida obra, Heidegger substitui o substantivo “homem” por “ser-aí” (Dasein), para que de tal maneira fossem recriados os modos de ser do ente investigado. As preocupações do homem e da Filosofia deveriam se debruçar sobre o sentido do Ser, e não somente sobre o significado; para tanto, a existência fora concebida como nova base do pensamento e como condição primordial do Ser. Daí inserir-se Heidegger dentro de uma tradição de pensamento intitulada Existencialismo.

Ora, se o homem existe, ele existe somente em aberto, para fora no tempo, em constante transformação e sem qualquer determinação. Nota-se aqui, portanto, um resquício de herança nietzschiana, ao verificarmos que o homem de Heidegger é um “vir-a-ser”, é um projetar-se adiante lançado em meio a infinitas condições de possibilidades. Essas possibilidades são pouco a pouco esgotadas, na medida em que o homem vive e escolhe suas ações.

A frase de Sartre que bem define a doutrina existencialista: “a existência precede a existência”, renova as bases do pensamento tradicional ao se opor aos argumentos metafísicos de objetividade e determinação. Percebemos, então, que é o modo como vivemos que determina quem somos, e não uma suposta essência natural, inerente. Na verdade, os homens constroem uma essência somente por meio da existência, ao realizarem suas ações, ao viverem. É por isso que é a existência que constitui o Ser, o “Eu”.

Entretanto, o “Eu” pode se desviar de si mesmo, já que é um Ser em aberto, lançado ao mundo, em meio a tantos outros “Eus”. Esse modo de Ser, o “Eu”, é invisível enquanto entidade, mas se revela para a existência justamente por meio dos modos de Ser, que são as nossas escolhas, nossas ações: esse é o momento em que o “Eu” pode ir de encontro consigo mesmo ou desviar-se de seu caminho e perder-se.

Dessa forma, Heidegger compreende que toda a nossa experiência de existência ocorre por apropriação e desapropriação de si. O Ser é nossa propriedade e uma existência que se apropria de si mesma, que vai de encontro a si mesma é uma existência autêntica em seu modo de Ser. De modo contrário, uma existência que não se apropria de si mesma é uma existência inautêntica. Vejamos:

“Heidegger expressou em outros termos oposição - "Precisamente porque o Ser-aí (isto é, o homem) é essencialmente a sua possibilidade, esse ente pode, no seu ser, escolher- se e conquistar-se ou perder-se, ou seja, não se conquistar ou conquistar-se só aparentemente" (Sein und Zeit, \S>21, § 9). A possibilidade própria do Ser-aí é a morte: por isso, "O Ser-aí é autenticamente ele mesmo só no isolamento originário da decisão tácita e votada à angústia" (ibid., § 64). Por outro lado, a existência inautêntica é caracterizada pela tagarelice, pela curiosidade e pelo equívoco, que constituem o modo de ser cotidiano, impessoal do homem e representam, portanto, uma decadência do ser em relação a si mesmo (ibid., §38).”

O Ser somente o é no mundo. E o que é o “ser-no-mundo”? Heidegger põe em questão aquilo que, supostamente, já se sabe. Ele parte de uma prévia interpretação tradicional comum para se questionar e interrogar. Ser e compreender ser são as nossas condições humanas, mas a questão direciona-se para o “como Ser?”.

Somos lançados em um universo previamente constituído, anteriormente organizado; quando nascemos nos deparamos com os outros seres e toda a estruturação mundana e isso nos causa um profundo estranhamento. Tal inserção é mencionada por Heidegger como faticidade ou contingência. Entretanto, não é pelo fato de o mundo estar previamente organizado que haja qualquer tipo de pré-determinação: ele é um emaranhado de possibilidades sem fim. A faticidade nos é apresentada no momento de nosso nascimento e o que nos traz, de fato, a idéia de faticidade é a idéia de alteridade: os “outros” e suas interpretações.

“Os outros” são todos aqueles aos quais nós pertencemos, posto que nenhum homem, por condição ontológica, é, ou pode Ser, isolado. A coexistência é também uma condição humana, haja vista que não se pode Ser somente si mesmo. Nós somos “nós” e “os outros” simultaneamente, e o “Eu” pertence aos “outros”. Somos todos resultados dessa convivência que se finda com a morte.

Quando nos perguntamos quem somos, é o “quem” do cotidiano que nos responde. Nunca somos apenas “nós mesmos”, mas sempre com “os outros”. A esta questão “quem somos?” respondemos como “os outros” são. Nesse sentido, compreende-se que Ser como “os outros” são é não ser si mesmo, é a realização de uma impessoalidade, e esse é, precisamente, o Ser inautêntico.

A inautenticidade também é uma condição humana, permeada pela coexistência, de modo que só podemos compreendê-la pela via ontológica. Se formos inautênticos, não somos o nosso “Eu”; entretanto, não podemos Ser isoladamente. Isso significa dizer que para sermos, necessariamente temos de ser impróprios ou inautênticos.

É válido ressaltar que a impropriedade ou inautenticidade não é um valor negativo, mas apenas um rebaixamento. Tornamo-nos iguais aos “outros” porque nascemos com essa prévia condição ontológica. Abrimos mão de nós mesmos para sermos como “os outros”, perdemo-nos, diluímo-nos. O “Eu” diluído é a representação da inautenticidade: para Ser, somos condicionados a essa dinâmica da impropriedade. Daí constatarmos que a base da existência é a inautenticidade. Entretanto, tais momentos de perda são circulares; há períodos em que somos autênticos.

Em Ser e Tempo, Heidegger parece querer buscar um caminho para o Ser autêntico, definindo-o como aquele que se projeta. Se entendermos que a base da existência, do Ser, é a inautenticidade, a autenticidade é sempre uma projeção de si mesmo, um vir-a-ser, e, portanto, não é real, não se dá no presente: a propriedade só se dá pela possibilidade vindoura. É quando o “Eu” busca a si mesmo que ele se perde, porque o projeto é sempre futuro e não é realizado no plano imediato.

De fato, a autenticidade é tida por Heidegger como uma espécie de modificação da inautenticidade. O homem é inautêntico por condição, porque se encontra imerso num universo alheio; entretanto, a autenticidade pode alterar esse caráter contingente. A existência torna-se, enfim, um desdobramento de projetos, na medida em que realiza possibilidades e a morte é o encerramento completo dessas possibilidades. Essa descoberta, esse despertar para a apropriação da existência e essa percepção de que, afinal, o homem é um “ser-para-morte” geram a angústia nostálgica de uma autenticidade projetora.

É justamente nessa oscilação entre autenticidade/inautenticidade que se encontra a idéia heideggeriana do “poder-ser”. O homem só “é” nessa ambigüidade. Da mesma forma, só podemos observar a inautenticidade sob a luz da finitude, haja vista que só procuramos por nós mesmos, quando, lúcidos, tornamo-nos conscientes de nossa condição finita, mortal. É a morte que nos lembra de nossa condição de Ser e nos faz viver intensamente cada instante.


A)AUTENTICIDADE/INAUTENTICIDADE EM SER E TEMPO

No sentido mais amplo, entendemos autenticidade como a vida que se baseia numa apreciação exata da condição humana. O homem, designado como Dasein, ou “ser-aí”, está lançado num mundo que lhe é hostil e que deve, inevitavelmente, encarar.

Em Ser e Tempo, Heidegger distingue entre o que chama de dimensão ôntica e dimensão ontológica do Ser: “estar-no-meio-do-mundo-do-homem” e “estar-no-mundo”. Segundo Robert Olson , o objetivo dessa distinção consiste em esclarecer que, embora o homem esteja necessariamente presente no mundo e não possa retirar-se dele para alguma região do Ser abrigada ou contida em si mesma, que seja puramente sua, ele não está fadado a perder-se no mundo e baixar ao nível dos objetos materiais brutos.

Isso porque o homem não está literalmente “no” mundo – o “estar-no-mundo” é simplesmente uma presença em face do mundo. Portanto, o homem autêntico pode ser compreendido como aquele que reconhece a dualidade radical entre o humano e o não humano (animais, pedras, etc...), que reconhece que o homem deve viver no mundo e que “estar-no-mundo” não implica em “estar-no-meio-do-mundo”.

Mais tarde, Heidegger irá chamar a dimensão ôntica, isto é, o “estar-no-meio-do-mundo”, de estado de “queda”: duas denominações distintas para a inautenticidade. Esse estado inautêntico de queda possui um lado subjetivo e outro objetivo. O lado subjetivo é o que Heidegger chama de “Das Man”, ou o “Se”, “a Gente” ou “Diz-se” e representa uma pseudo-subjetividade, um “Eu” degradado, uma vez que se encontra diluído em outrem:

“A queda é um estado em que o indivíduo constantemente obedece a comandos e proibições cuja fonte é desconhecida e não identificável, e cuja justificação ele não se incomoda em inquirir.”

O lado objetivo da inautenticidade é todo o mundo artificial em que o homem é lançado, prévio, e transformado tecnologicamente. É o que Heidegger vai nos revelar como “mundo público”. Cumpre-nos ressaltar que não nos aprofundaremos nos conceitos de “mundo público” e “mundo próximo”, uma vez que foge à proposta da presente pesquisa. Todavia, esses dois lados do Ser (subjetivo/objetivo) nos são relevantes na medida em que nossas categorias básicas de existência (sentimento, entendimento, linguagem) tornam-se degradadas no estado de inautenticidade:

“Deve-se, porém, advertir que a distinção e a oposição entre autenticidade e inautenticidade não implicam nenhuma valorização preferencial. A inautenticidade faz parte da estrutura do ser tanto quanto a autenticidade. "O estado de decadência do Ser-aí não deve ser entendido como uma queda de um 'estado original' mais puro e mais alto. De algo semelhante não só não temos nenhuma experimentação ôntica, como nem mesmo o caminho de uma possível interpretação ontológica." (ibid., § 38)”

Para o filósofo alemão, a inautenticidade caracteriza-se como aquela existência cujas influências asfixiam o “Dasein” em seu mundo, retirando dele a responsabilidade por suas ações. Durante esse período, que é condição de Ser, somos sugados por um conjunto de hábitos e ansiedades que não nos pertence, que vêm de fora. Nossas condutas são determinadas por motivos frívolos e medos sem razão, ao passo que o “Das Man” controla e exige o que havia de profundo em nossos sentimentos.

Contudo, ao estado de queda resta-nos questionar: como é possível livrarmo-nos dessa condição de “estar-no-meio-do-mundo”? Heidegger nos responde: somente por meio de uma drástica tomada de consciência, por meio do reconhecimento de nossa condição humana de “Ser-para-morte”. Como “ser-no-mundo”, imerso na inautenticidade, o homem traz em si a capacidade, pela angústia, de deparar-se com a verdade essencial de sua existência, a condição de ser temporal. A temporalidade é revelada na mortalidade inevitável, uma condição intransponível na realidade da existência, contra a qual não é possível bulir as regras. É tal situação angustiante que traz ao homem a consciência da morte.

Ao despertarmos e termos ciência de que somos finitos, somos tomados por essa angústia dilacerante e reveladora, que nos mostra a dualidade radical entre o humano e o não humano e entre o “estar-no-mundo” e o “estar-no-meio-do-mundo”. Desse modo, o nível da consciência através do qual o homem tem acesso ao mundo é aquele que acolhe à voz do Ser e consente em ser o “pastor do Ser”.

Ocorre que em Ser e Tempo, parece-nos que Heidegger buscou definir o homem autêntico exclusivamente em termos de sua atitude para com a morte, definindo-o como aquele que foge ao cotidiano trivial, reconhecendo sua condição de mortal e encarando-a com honra e coragem. Há dois pontos que nos chama atenção na referida obra: a ciência de um fim último como caráter intensificador da vida e da individualidade e a morte como necessidade ontológica. Vejamos:

O reconhecimento da condição humana, à luz de uma perspectiva heideggeriana, culmina numa espécie de técnica por meio da qual o homem inautêntico alivia o medo da morte. Tal técnica consiste, essencialmente, em despersonalizar a morte, reduzindo-a a uma categoria abstrata e universal, a um fenômeno puramente biológico ou social, sem qualquer caráter espiritual.

Para ilustrar tal entendimento, Heidegger recorre ao escritor Tolstói, em A morte de Ivã Ilitch, mostrando-nos o “despedaçamento e colapso do Morre-se ”. Quando nos vemos obrigados a enfrentar essa verdade de morte, a vida presente é tomada por outro sentido, um sentido mais profundo que a simples trivialidade do passar dos dias, numa espécie de carpe diem tardio.

O outro ponto que nos interessa nos escritos heideggerianos é a distinção da morte como expressão de um fim último e invencível, que de modo algum pode ser superado. Há, portanto, uma espécie de crença de que a morte é uma necessidade do Ser e que, uma vez inevitável, pode ter seus efeitos mitigados por meio do reconhecimento desse caráter indelével e por meio da aceitação da angústia existencial que tal pensamento nos traz:

“Se, porém, numa decisão resoluta, abraçamos nossa finitude e assumimos ativamente nosso “ser-para-morte”, poderemos moderar esse terror muito mais eficazmente de que desejando a imortalidade pessoal.”

É que, para Heidegger, assumir a nossa condição finita significaria aliviar o terror original que a morte nos inspira e, mais que isso, consistiria numa comunhão com mundo de maneira a nos situar numa totalidade impossível em vida: na morte, somos a totalidade que não pudemos ser em vida. Entretanto, ainda vivos, podemos nos antecipar em direção à morte, reconhecendo-a como expressão necessária do Ser e adotando um ponto de vista sobre nós como totalidade.


B)O SUPOSTO JARGÃO

Entre os anos de 1962 e 1964, Theodor W. Adorno escreveu “O jargão da autenticidade”, obra que se insere como expressão maior de um contexto de inúmeras críticas voltadas ao pensamento existencialista e heideggeriano, principalmente. O fato é que, muitas vezes associadas à adesão nazista de Heidegger, as críticas que pairam sobre o cenário político e filosófico da época merecem, sob análise, certa dose de cautela, para que sejam evitadas maiores digressões.

Incongruências à parte, parece-nos que o que Adorno buscava, afinal, era desqualificar o discurso sobre o “ser-para-morte” heideggeriano intitulando-o como mero jargão sobre a problemática da autenticidade, de modo que se fizesse transmitir que, em pensadores de um período pós-guerra, tudo não passava de falatório lírico encobridor de questões sociais mais sérias, fruto de uma elite alemã e, muitas vezes, francesa, catastroficamente emergentes e frágeis no que concerne ao pensar filosófico:

"Provavelmente em nenhum lugar a sua filosofia, e tudo que com ela bóia até os esgotos da crendice alemã no Ser, será mais alérgica que nesse ponto.”

Negando ao pensamento heideggeriano qualquer mérito ou originalidade, Adorno prossegue em seu ostensivo intento, tratando-o como prestidigitação, ardil ou falsa erudição, num tom de absoluto descaso, ele confessa clara hostilidade quando nos fala sobre o “asco ao jargão”.

Ora, ocorre que a desconfiança quanto ao aparato intelectual nos é apontada para Adorno, e não para Heidegger. Mesmo recusando qualquer possibilidade de construção ética ou transformação de si por meio de uma postura que reconhece o entendimento heideggeriano acerca da inexorabilidade da morte, Adorno tenta nos convencer de que a novas abordagens científicas é que abrem caminho para uma possível superação.

Contudo, o que vemos nesse esmiuçado ressentimento desconstrutor é que nem mesmo a ciência como cura - e isso é o que nos parece crendice – poderia alterar a irremissibilidade da morte para o Dasein. Desconsiderando as dimensões ôntica e ontológica de Ser e Tempo, Adorno nos parece incapaz de notar que o conceito ontológico-existencial de morte que o livro persegue tem a ver, sobretudo, com uma possibilidade, da qual o Dasein, como ente compreensivo e capaz de projeções, não se pode ver livre. Trata-se, em suma, de uma intensa e admirável preocupação com a totalidade do Ser, pendente, digna de discussão acadêmica e séria reflexão.

Pretendemos, portanto, de forma breve e dentro dos limites possíveis, contestar com veemência a mencionada obra de Adorno, para que melhor se compreenda a idéia de autenticidade e, em especial, a noção heideggeriana de autenticidade.

O pretensioso texto de Adorno nos invoca a consentir em denunciar uma série de conjuntos de hábitos discursivos perniciosos que estavam em voga na época, mais ou menos em meados da década de 50, 60, mais precisamente sobre o termo “autenticidade”, utilizado pela primeira vez por Karl Jaspers. Com relação a origem e disseminação desse jargão, o filósofo da escola de Frankfurt parece crer que há uma espécie de conexão invisível, por meio da linguagem, entre ação e pensamento.

Destarte, não podemos dizer que a disseminação de um pensamento mais profundo e supostamente ameaçador se justifica como fruto de elitismo pessoal ou como estratégia de proteção ante o que se desconhece. Entretanto, é válido lembrar que quem nos encaminha ao universo ideológico marxista por meio de releituras e conceitos truncados não é Heidegger. De acordo com Edgar de Brito Lyra Netto, doutor e professor do departamento de Filosofia da PUC-RIO:

“(...) certa ojeriza "sociológica" a uma espécie de filisteísmo espiritual, mais preocupado com a essência do homem do que com sua dignidade coletiva e concreta. Melhor dizendo, a insistência numa abstrata essência do homem estaria permeada por um irracionalismo camuflador de anseios de proteção e dignidade, típicos de uma classe acostumada a privilégios, sob a capa de formidáveis verdades onto-antropológicas.”

Ao que nos parece, é interesse de Adorno, e não de Heidegger, recair sobre apropriações que confirmem um rebuscado modo de pensar. O irracionalismo desmedido e que supostamente afastaria o homem do campo da ação não nos conduziria ao reacionarismo, mas à ratificação de é que Adoro que detém a razão e saber “verdadeiros”. Bem se vê que a preocupação do autor não se reduzia apenas ao jargão lingüístico, mas ao receio de que certo tipo de pensamento, batizado de subjetivista, se propagasse.

Ousamos dizer que, quando Adorno nos fala de certa doutrina que “difama a objetividade como coisificação e, em segredo, fomenta o irracionalismo” , estaria, em verdade, sugerindo uma autodefesa que recolocasse os argumentos marxistas sobre qualquer diálogo com o “Eu”, descaracterizando a problemática existencial, ao alegar que haveria uma “via reacionária própria dos existencialistas” que não se pode sobrepor aos “verdadeiros” e “condizentes” padrões políticos e sociais.

Na presente pesquisa, não nos interessou analisar se Adorno possui ou não fundamentos para alcunhar aqueles pensadores de reacionários ou burgueses. O que propusemos brevemente fora contestar o trabalho adorniano, sem desmerecê-lo, de modo a concluir que o mesmo se trata de uma característica inversão de valores, típica dos frankfurtianos, filhos de Hegel, atentos à objetividade e à positividade instrumental da razão.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Já mencionamos que a proposta heideggeriana não se inclina a desvendar as desenvolturas de um mísero jargão lingüístico, tampouco a propagar o pedantismo pela comunidade alemã, na segunda metade do século passado. Da mesma forma, por meio da leitura e das citações selecionadas, constatamos que o conceito de autenticidade em Heidegger só é visualizado se discernimos o plano da morte, da angústia e da totalidade do Ser.

Entre dúvidas e evidências, questionamos como seria possível nos livrarmos da condição de inautenticidade ou, ao menos, abrandá-la. E tudo isso nos serviu de base para concluir que, em Heidegger, mais que um simples projetar-se humano, o caminho da busca pela autenticidade nos conduz ao universo da liberdade, mas de uma liberdade que só se perpetua no mundo. E se é, de fato, a existência que dá origem a essência, a liberdade é o cerne que define a problemática da autenticidade, porquanto a criação do essencial implica em liberdade e, por fim, em autenticidade. É a liberdade criadora que elege escolhas que caracterizam o homem como um Ser efetivo de possibilidades.

É por constituir-se exatamente como um Ser de liberdade e encontrar-se em um universo de faticidade que o homem é capaz de assumir, por si, a condição de projeto destinado à realização, isto é, que ele tem capacidade de, estando consciente de sua situação de abandonado a sua própria responsabilidade, guiar-se sob o ponto de vista da totalidade em meio ao mundo - lugar onde ele é chamado a ser projeto, construção de si mesmo. Desse modo, verificamos que cabe ao homem, como Ser livre, a decisão de dar à sua própria existência o sentido que melhor lhe convém.

Portanto, concluímos que o pensamento heideggeriano, na fuga de um niilismo avassalador outrora anunciado por Nietzsche, ao descartar estruturas de massificação, pode ser o verdadeiro propulsor que nos conduziria à construção de um sujeito autêntico na medida de suas projeções, único no mundo e plenamente capaz de edificar e rever seu modo de Ser e de pensar.

Se Heidegger ousaria dizer o mesmo, não sabemos. Mas em meio a tantas discussões hermenêuticas, ainda que fosse considerado um jargão vulgar, o conceito de autenticidade parece nos proporcionar mais projetos e ações que qualquer borrão sem sentido de uma objetividade que não convence.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Mestre Jou, São Paulo, 1982.

ADORNO, Theodor W. The Jargon of Authenticity. Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973.

ARVON, Henri. A Filosofia Alemã: A Filosofia Existencialista. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978.

HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Edición Electrónica, Escuela de Philosophia Universidad ARCIS, Santiago, 1988.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vozes, Petrópolis, 1993.

HEIDEGGER, Martin. The way back into the ground of Metaphysics: publicado em Existencialismo: De Dostoevsky a Sartre, Meridian Books, Nova York, 1956.

NETTO, Edgar de Brito Lyra. Sobre o pensamento filosófico e sua sobrevivência no mundo técnico, PUC-RIO, Rio de Janeiro, 2003.

OLSON, Robert G. Introdução ao existencialismo. Brasiliense, São Paulo, 1970.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. Presença, Lisboa, 1984.