quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Lógica Silenciosa


Pudesse eu dissertar sobre verdades, e o mundo estaria repleto de pântanos mal cheirosos! O quente odor que agora se aproxima, há muito revela o meu faro desolador: é chegado o tempo das desclassificações!

Olho para janelas afora como quem fita o reflexo no espelho, e observo a deformidade de tristes rostos quase-humanos. Não pretendo hierarquizá-los ou distinguí-los em espécie. Apenas identifico e absorvo as incertezas de um ambiente fétido em que se encerram as sólidas carapaças de homens e besouros.

Pudesse eu falar sobre mentiras, e os besouros estariam sorridentes!

Mas no tempo das desclassificações o silêncio é deus...

Ah! Pudesse eu tagarelar sobre o silêncio e reclassificar insetos sem os simbolismos da eternidade!

O homem, esse escaravelho das sistematizações, comungaria de uma natureza jamais experimentada. E seriam tantos risos e tantos suicídios...

Quem dera que os élitros humanos fossem flexíveis... teriam o movimento cíclico dos primeiros sobrevôos.

Quem dera que os nossos vôos fossem noturnos, porque só então seria possível desfrutar da beleza e da claridade dos vaga-lumes de outrora.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Meu primeiro lango-lango



Podemos dizer, sem maiores receios, que a memória é um labirinto que quase sempre nos prega peças. É nesse corredor dos efeitos do tempo que agora me ponho a pensar sobre a tarde poente que é a infância. Quantas saudades das traquinagens, do pega-pega, dos aniversários, dos esconderijos, das historinhas! Explorávamos o mundo e o tempo não existia.

É com um carinho de criança chorosa que me lembro de cada brinquedo, cada objeto que delicadamente fora projetado para que eu pudesse crescer. Lembro-me dos patins, que me faziam cair; do escorregador da piscina, do pula-pirata e do Sr. Batata. Os anos oitenta foram verdadeiramente incríveis não só pelas transformações políticas, ambientais, musicais, mas pela produção dedicada ao público infantil e pela diversão sem fim a qual nos entregávamos.

De fato, a diversão não é característica exclusiva dos anos 80. Mas eu me lembro muito bem de um brinquedo, em especial, que promoveu a diversão de muitas crianças da época: o lango-lango.

Lango-lango era uma marionete de brinquedo que, nos comerciais, se propunha como amiga da natureza. Era como que um guardião e podia ser encontrado em diversas cores e formatos. Cada cor do fantoche representava um elemento da natureza. O meu lango-lango era verde, era o protetor das florestas. Em formato de monstrinho, o verde-lango me permitia acessar um mecanismo de controle interno que, ao ser acionado, fazia com que o monstrengo proferisse pequenos socos. Os golpes eram tão fraquinhos que mal podiam ser sentidos. No fundo, o verde-lango era um brinquedo sutil e delicado, incapaz de disseminar o mal.

Saudosista e embriagada pela nostalgia de anos tão saudáveis, observo que em 2010 a escolha de algumas crianças ainda recai sobre langos-langos da vida. Temos um exemplo vivo em Bauru que está longe de ser um monstro, mas que, como guardião, pouco a pouco se deixa controlar por cruéis crianças supostamente legisladoras. Tais crianças, nada inocentes, na ânsia de dominar e destruir um brinquedo que nos proporciona tanto diversão quanto segurança, com suas sujas mãozinhas assumem o controle interno do jovem fantoche que, indefensável, consente em lutar contra o nada.

No ato risível de sua solitária luta, o executivo brinquedo tende a ser esquecido. Seria maravilhoso pensar num pozinho mágico que transformasse o boneco de borracha em efetivo guardião, mas não penso que essa transformação dependa de uma fictícia substância alheia. Cabe ao nosso querido representante lango-lango retribuir o carinho das bondosas crianças que o elegeram, acolheram e recolheram, com tanta estima, das sombrias prateleiras comerciais, e elaborar novos mecanismos de controle, que não mais o sujeite a crianças tão mal-educadas. Cabe ao nosso verde-lango abdicar das esmagadoras crianças e afastar-se dos velhos baús da amizade, para que não seja ele o próximo a ser trancado no baú.

Não se encontram mais langos-langos nas lojas; ele é um brinquedo raro e que ainda não fora esquecido. Se não me falha a memória, o lango-lango também chacoalhava a cabeça, para frente e para trás, como se concordasse com tudo, querendo cair no gosto das multidões. Entretanto, devemos lembrar que lango-lango não agradou a todos, e nem poderia. Lango-lango, o brinquedo, sabia que, apesar de anuir com a cabeça, haveria aqueles que por politicagem infantil, ou mera incompatibilidade, o desprezariam. Lango-lango, o representante-guardião, nada parece saber sobre antagonismos.

Nem todo mundo teve a oportunidade de crescer explorando a habilidade de um verde-lango, mas sabemos quem são as crianças que o querem esquecido, quem são as crianças que o querem explorado e quem são as crianças que o querem de volta aos lares.

Ah! Que saudades do meu primeiro lango-lango!

E não era azul...

Não desejava muito. Queria enxergar o pico do Jaraguá, alguns prédios, talvez um parque. Não era a altura que me impedia, era a atmosfera paulistana. Cinza não era somente a cor do céu; era a cor dos carros, dos fumantes, das janelas, das roupas, dos olhos, das árvores, das enchentes; era também a cor do tédio, do abandono, da solidão, do desespero e do fracasso. Em São Paulo, o odor era cinza, a velocidade e o metrô eram cinzas, a música era cinza e o corpo, aos poucos, virava cinza.

Reclamava do tom cinza e ouvia de volta: “ - mas você ainda não se acostumou à poluição de São Paulo?” Sejamos francos, eu não tinha do que me queixar. Vivia entre os acinzentados como uma negra medida, sempre a filtrar branquidões, sempre a expirar o que não me agradava. Não me acostumei nem ao cinza nem à cidade, e procurava colorir alguns cenários.

Maringá, ao contrário, era a terra dos pés vermelhos e a morada do verde. Mesmo com a frota intransigente de carros, eu podia desfrutar dos parques, dos mirantes, do céu estrelado, do sabor das cores fortes de um domingo à toa. Em Maringá, as folhas eram mais tenras, os bosques mais doces, o clima mais acolhedor e só a saudade era cinza.

De volta a Bauru, pus-me a fitar o grosso céu de fim de inverno e percebi que não era mais capaz de decifrá-lo. Um daltonismo se apoderava de mim, e o azul, a cor da vida, dava lugar ao branco opaco de delicadas neblinas. Não reconhecia o nublado e não distinguia cores. Da observação do mundo, do alto da minha janela, vejo a que distância estou daquilo que não consigo enxergar. A claridade me ofusca até o mais remoto pensamento. A aridez não me aponta caminhos.

Em Bauru, é o céu que me pede para cerrar as pálpebras, enquanto as árvores se insinuam como espantalhos e os carros lembram fantasmas errantes. É nessa cidade de gases quentes que a ebulição da vida tem se tornado um desafio, que o medo ronda não só as esquinas, mas todos os quarteirões, e que a angústia tornou-se o colírio dos adultos e das crianças. Numa estreita faixa cinza, verifico uma linha divisória no céu, que ora tende para o branco, ora para o negro. O azul fora esquecido ou intencionalmente dissimulado. Onde é que está o azul de Bauru? Em que bolso foi parar o nosso dia?

Dizem as más línguas que ele está aqui o tempo todo, e que eu é que preciso de óculos, podendo dispensar as daltônicas metáforas. Sem bolsos ou cartas na manga, longe dos requintes do que chamam hoje de literatura, bebo das tortuosas águas poluídas de um rio que não nasce em mim, revisito pinturas em tons pastéis, e deito à janela esperando pelo azul.

Sem lentes de aumento, cremando alguns conceitos restantes, em silêncio, aguardo o próximo instante de partida, a próxima cidade, ansiosa pela saudade cinza que ameaça o olhar, ansiosa pela fumaça cinza que ameaça a janela.

E não era azul...

Não desejava muito. Queria enxergar o pico do Jaraguá, alguns prédios, talvez um parque. Não era a altura que me impedia, era a atmosfera paulistana. Cinza não era somente a cor do céu; era a cor dos carros, dos fumantes, das janelas, das roupas, dos olhos, das árvores, das enchentes; era também a cor do tédio, do abandono, da solidão, do desespero e do fracasso. Em São Paulo, o odor era cinza, a velocidade e o metrô eram cinzas, a música era cinza e o corpo, aos poucos, virava cinza.

Reclamava do tom cinza e ouvia de volta: “ - mas você ainda não se acostumou à poluição de São Paulo?” Sejamos francos, eu não tinha do que me queixar. Vivia entre os acinzentados como uma negra medida, sempre a filtrar branquidões, sempre a expirar o que não me agradava. Não me acostumei nem ao cinza nem à cidade, e procurava colorir alguns cenários.

Maringá, ao contrário, era a terra dos pés vermelhos e a morada do verde. Mesmo com a frota intransigente de carros, eu podia desfrutar dos parques, dos mirantes, do céu estrelado, do sabor das cores fortes de um domingo à toa. Em Maringá, as folhas eram mais tenras, os bosques mais doces, o clima mais acolhedor e só a saudade era cinza.

De volta a Bauru, pus-me a fitar o grosso céu de fim de inverno e percebi que não era mais capaz de decifrá-lo. Um daltonismo se apoderava de mim, e o azul, a cor da vida, dava lugar ao branco opaco de delicadas neblinas. Não reconhecia o nublado e não distinguia cores. Da observação do mundo, do alto da minha janela, vejo a que distância estou daquilo que não consigo enxergar. A claridade me ofusca até o mais remoto pensamento. A aridez não me aponta caminhos.

Em Bauru, é o céu que me pede para cerrar as pálpebras, enquanto as árvores se insinuam como espantalhos e os carros lembram fantasmas errantes. É nessa cidade de gases quentes que a ebulição da vida tem se tornado um desafio, que o medo ronda não só as esquinas, mas todos os quarteirões, e que a angústia tornou-se o colírio dos adultos e das crianças. Numa estreita faixa cinza, verifico uma linha divisória no céu, que ora tende para o branco, ora para o negro. O azul fora esquecido ou intencionalmente dissimulado. Onde é que está o azul de Bauru? Em que bolso foi parar o nosso dia?

Dizem as más línguas que ele está aqui o tempo todo, e que eu é que preciso de óculos, podendo dispensar as daltônicas metáforas. Sem bolsos ou cartas na manga, longe dos requintes do que chamam hoje de literatura, bebo das tortuosas águas poluídas de um rio que não nasce em mim, revisito pinturas em tons pastéis, e deito à janela esperando pelo azul.

Sem lentes de aumento, cremando alguns conceitos restantes, em silêncio, aguardo o próximo instante de partida, a próxima cidade, ansiosa pela saudade cinza que ameaça o olhar, ansiosa pela fumaça cinza que ameaça a janela.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Depósito da fé

Em época de eleição, o assunto é: ELEIÇÃO!

Em muito me agradam os desabafos alheios acerca do atual imobilismo-penetra das parcelas mais jovens do povão! No entanto, permitam-me falar não em nome dos jovens, nem em nome de uma geração, mas em nome dos meus 24 anos.

Também eu já votei em Luiz Inácio. Não na primeira vez em que se candidatou, mas na primeira vez em que pude votar, em 2002 - ano em que foi eleito (eu tinha, então, 16 anos e carregava uma bela visão romântica do mundo).

Hoje, já afastada daquele romantismo, surpreendo-me em pensar nessa continuidade tão desejada pela maior parte da população. Em conversas de botequim com os amigos (que não são da Filosofia), quase sempre ouço elogios escancarados ao sr.molusco; constatações de que ele fora (é) um dos melhores presidentes que esse país já teve - "Nunca antes na história desse país". Lembram-me os vovôs já crescidinhos da Era Vargas...

Pois é, por mais triste que eu possa ficar com essas impensadas atribuições, compreendo a posição deles e de nada me adianta tentar argumentar, porque, no fundo, além de Lula ser uma figura muito mais carismática que eu, nenhum deles quer deixar de crer. Lula entrou para o nosso cenário justamente sob esse enfoque, o da esperança. E, tal qual um Santo Papa, ele reina como o nosso novo pai dos pobres.

Se os brasileiros são bastardos e carentes de pai, eu não sei. Mas agora me parece que são carentes também de mãe, mãe que aguardam ajoelhados, na esperança de que ela vença a próxima batalha. Que batalha? Dilma sabe. Haveria alguém melhor para combater que a nossa guerrilheira? ou, repetindo a pergunta em tons mais apropriados: Haveria melhor adversário para combatermos?

Sabemos quem são os que votam em mamães armadas e quem são os nossos adversários.
E não me parece que o jovem necessariamente se encaixe nesse perfil de continuidade bélica. Quem vota em mamãe armada é o pobre bastardo, mas é também a engajada e jargônica elite intelectual brasileira, que em seus fiéis mandamentos não desiste do velho ideal apodrecido. É isso que me causa espanto: observar que essa camada que se julga inteligente parou no tempo e se recusa a repensar, a rever, a reavaliar, a criar e transformar. Não me parece que é só aos jovens que caberia a reclamação de imobilismo e a recomendação da aprendizagem.

Releio esses "gênios" brasileiros e o que encontro? O velho falatório de divisões e profecias! É disso que estou farta! Quando é que a repetição, no Brasil, deixará de ser a lei?

Outra coisa que me causa espanto é o espanto que eu causo quando digo que votarei nulo. Ora, se julgo que não há ninguém digno de me representar, por que eu votaria no menos pior, sabendo que ele ainda é PIOR?

E quando penso no maldito quociente eleitoral? Fico ainda mais P* da vida!

Saco cheio dos discursos dos pseudo-democratas (de esquerda!)! (rs)

Fica registrado o jovem desabafo,

Milena

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Culinária do Amor

Sentada diante daqueles que não me vêem, aceno aos garçons do meu inconsciente para que me tragam minha bebida e prato prediletos. Eles não me ouvem. Mas ao ensaiar pequenos relatos de belas paisagens, começo a escutar, num ritmo quase ditirâmbico, os apelos dos meus tambores estomacais: tenho fome.

É certo que eu poderia optar por deixar meus amigos invisíveis e, então, saciar não só o meu desejo, mas a minha necessidade vital. Alimentar-se não é justamente esse continuar a ser? Mas optei por continuar a escrever, e eis-me aqui, tamborilando sobre o que nos dá água na boca e nos preenche deliciosamente.

Decididamente, falar de uma alimentação saudável é difícil, visto que muitas das nossas delícias nos fazem mal. Um doce bem açucarado ou uma carne bem sangrenta muitas vezes são preferíveis aos ásperos tecidos de uma folha verde - folha que também se alimenta por esses mesmos tecidos. Entretanto, é por meio da ingestão dos alimentos que nos são mais saborosos que pouco a pouco me atrevo a pensar em outros tipos de alimentos, mais ácidos, mas também vitais, que com seus poderosos nutrientes nos fornecem energia suficiente para o continuar.

A carne que agora mastigo lentamente me mantém em pé. Eu poderia dizer que é dessa mesma forma que o amor - esse alimento mal passado, sangrento, suculento - sustenta em mim a minha fome de viver. Ele, que com seus irresistíveis temperos picantes, insiste em perturbar o meu olfato e maltratar meu paladar! Ele, que com seu atrativo aspecto e forma e peso, me estufa em grandes pesadelos noturnos indigestos!

Mas eu estaria mentindo. Vejam, leitores que não me enxergam, eu não me oporia aos que dizem que o amor é um alimento, que é o placebo do insaciável, que é o motor vital dos mortais. Não me oporia em compará-lo, também, com a carne, ainda que humana, que desloca grupos inteiros de lobos famintos mundo afora, na ânsia do devorar.

O que eu reluto em aceitar, caro leitor invisível, é o entendimento do amor como um mero alimento, e não como energia, como força. Por sentir o estômago roncar tantas vezes é que me atrevo a ver o amor como um Poder. Não como um Deus que nos governa, mas como um Poder invisível que paira sobre alguns olhos cansados. O amor não é cego, nós é que somos – daí a invisibilidade do Poder. Nessa relação de comando, aceito o que me é imposto e sigo com o mínimo de urgência para poder sobreviver, de modo que o Poder, mais dia ou menos dia, acaba por se tornar o narcótico mais alucinógeno, do qual me torno usuária dependente.

Mas não sejamos relapsos. É a essa dependência de um Poder invisível que devemos nossa maior singularidade; ela é o que nos faz energicamente criadores, poeticamente humanos. Portanto, quando digo que amor é energia e Poder invisível, não há o intuito de tratá-lo como sobre-humano, mas como absolutamente e tão somente humano: tão humano e invisível quanto você, caro leitor: insuperavelmente fictício.