sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Disputas e Observações


Descobri que numa semana de chuvas, a maior tempestade não molha ninguém. Não falo das mortes da região serrana do Rio, das enchentes em São Paulo ou do desespero em Santa Catarina. Falarei em nome de algumas regiões esquecidas, supostamente ricas e em desenvolvimento – pedacinhos de um Brasil distante e inofensivo, diariamente oprimido.

Quem compõe esses pedacinhos são pessoas, em sua maioria, franzinas, magrinhas, sem vida. Pessoas do povo, que apesar do frágil veículo físico, disparam olhares paralisantes, sem o glamour dos proprietários das cabeças de gado, sem a vulgaridade da senhorinha mercenária que se imagina dona da pequena cidade, sem a prepotência do único engenheiro ou do dono do bar. Esses olhares, notadamente desconfiados, imobilizam forasteiros suspeitos e investidores à paisana. Eles não te querem por perto, têm medo do desconhecido.

E foi nessa pátria nada minha que decidi sair em busca daquilo que todos, ou quase todos, saem um dia: um emprego. Com a mochila em mãos, fui atraída para uma região razoavelmente despovoada, na fronteira do Mato Grosso com o Pará, região já de floresta amazônica, de muitos rios e poucas estradas. É claro que não imaginei encontrar toda a acessibilidade e facilidade que o estado de São Paulo oferece, mas, o que me espantou não foram as estradas de terra ou a ausência de saneamento básico ou as chuvas torrenciais; tampouco a difusão das antenas de celulares ou a rede wireless por toda a parte, contrastando com os casebres mal cheirosos. O que me assustou foram esses olhares carentes, de animal faminto, de bichano irracional, de necessidade e esperança, que beiram a inocência.

Pequenos olhinhos míopes que foram por mim investigados e não me trouxeram emprego, mas outra fortuna. Foram esses homenzinhos quase cegos que me trouxeram de volta Kafka, no esplendor da oposição. Como não pensar n’O Processo ou n’O Castelo, diante daquele nítido estado de oposição dos contrários?

Não há compreensão ou comunicação para esses coitados magrelos. A lógica que envolve o que lhes é externo é incompreensível e, aos olhos cansados, não interessam acusações, comportam-se, de antemão, como culpados, como se o destino já lhes estivesse sido anteriormente traçado, com um fatalismo satisfeito e derradeiro. Havia ali todo um domínio unido à culpa que parece se resolver em cisão entre homem e autoridade. Há uma ruptura entre civilização e sujeito, e sujeição como moeda de troca para um suposto crescimento. Há uma desconcertante obediência servil e pouca ou nenhuma economia avançada, terra fértil e gente rica. O que vi não é novidade para ninguém: é o poder personificado em um vilarejo, o poder que cultiva a ignorância, a conveniência da cegueira e a mordaça dos fracos.

É nessa enorme esfera ou carapaça política que se esconde o monstro da tempestade que distancia e, no fundo, e ainda sem saber, são todos eles estrangeiros, peregrinos de uma terra de ninguém, usufrutuários de um pedaço de Brasil sozinho, sem pai nem mãe. Esses joguetes franzinos e solitários lutam para permanecer na memória do monstruoso aparato estatal, não em números, não em quantidade, mas em qualidade, qualidade unificadora. No contra-senso dessa disputa de xadrez entre poderes, fui apenas mais uma peça, devorada pelo rei. Mas ainda há a possibilidade da revanche; ainda há a estratégia do xeque-mate.