terça-feira, 30 de julho de 2013

Das ações possíveis - Parte V


PARTE V
O desejo de unir-se ao todo, de reconciliação dos extremos (os opostos se atraem) é próprio do ambiente humano. Falarei deste humano, tão ambíguo, mais adiante. Por enquanto, cabe destacar mais alguns pontos do anel da convalescença, no que concerne ao harmônico e ao desarmônico da physis.

Hipocráticos que são, nossos médicos da filosofia utilizaram de um artifício de fuga para substituir mýthos (de tradição oral) e instaurar logos (discurso, palavra escrita): o pharmakón, a droga que é ora remédio, ora veneno. Pode ser antídoto ou toxina. Pode ter função de cura ou de moléstia degenerativa.

O pharmakón socrático-platônico que perdura na tradição é o grámatta (os caracteres escritos), visto, também, às vezes como dádiva, às vezes como mal, como o perfume que desagrega a ordem da physis, transformando o cosmo em cosmético. Quem coordena o grámatta é o interlocutor de um discurso (logos) morto, porque a escrita é somente representação da fala – mímesis -, daí não termos escritos propriamente socráticos, porque Sócrates só fala, não escreve. O caráter negativo da escrita, na Grécia arcaica pré-socrática, de tradição oral, é compreensível, já que ela representa apenas rememoração, e não memória. Confiar no escrito significava somente voltar-se a um assunto por razões externas, por sinais, e não pelo assunto em si mesmo. A fala era conhecimento e a escrita apenas repetiria, sem nada saber. Pharmakéus que é, Sócrates é aquele que detém o poder de manipular o mistério do phamakón-grámatta, na maiêutica, tentando neutralizar potências.

A droga que mascara o discurso filosófico platônico-aristotélico e o atual é justamente a que citei anteriormente, aquela que, julgando-se sintética, saudável, fomenta, no fundo, a determinação de uma força sobre a outra. Exemplo disso foram os pharmakói, das tragédias gregas. Nos ritos de purificação, eles eram sacrificados ou expulsos das cidades, porque se configuravam como o mal encarnado, materializado; eram vistos como uma espécie de “coincidentia oppositorum”, contendo potencialmente em si o bem e o mal, o justo e o injusto, o puro e o impuro, heterogêneos, indefiníveis. Circundados pela ausência de credibilidade, já que carregavam em si a desmedida, tinham de ser imunizados (mortos) ou isolados (exílio), a fim de que a ordem não fosse perturbada. Pharmakói não tem identidade, e isso assusta, ao menos no início, o grego do século V a.c.

Há uma leitura do pharmakói como o louco, o insano, o maníaco, o alienado, que não detém a si mesmo, e se tutela pelo outro. Contudo, não me parece uma leitura adequada, já que nem nas tragédias, nem na transição entre mýthos e logos podemos falar em subjetividades, em indivíduo (ao menos segundo essa noção moderna e liberal de sujeito consciente e responsável de si). Não aprofundarei o tema da individualidade porque escrevo um texto em separado sobre isso.

Voltemos ao viciado e maníaco (a mania, o delírio, é fonte do discurso filosófico em sua origem primeira, no ritual de mistérios) discurso platônico. O que Platão nos remete é a um escrito mimético, com resquícios de mýthos que, ao refletir sobre a verdade e a falsidade dos juízos, descobre que a cópia guarda alguma verdade em relação ao seu modelo; a cópia não é ele, o modelo, mas tem participação nele. Há uma verdade na cópia, diria Platão; inferior ao modelo, mas dependente e participante deste (eidos/eidolon). Se participa, de certo modo, também é o modelo. Digo isto em razão de a tragédia (anterior a Platão) ser encenação, imitação, representação que, longe de ser falsidade, sempre redobra (escondido) o que é, não sendo o que redobra (daí a novidade).  

O agir reflexivo é semelhante, se pensarmos que não é reprodução (fabricar novamente), nem reação (agir de igual modo novamente ou resposta-vingança), mas revolta trágica. Assim como a chôra tem seu lugar de receptáculo na tragédia, explicada pela máscara que cria a imagem transmitida pelo poeta, a verdade da revolta está no mimetismo da representação (não é por acaso que Camus, como dramaturgo, valoriza a figura do ator). O ator é aquele que, ao representar, coloca uma presença que não ela mesma, imageticamente, de modo que, na verdade, não se trata exatamente de um re-apresentar, mas de uma re-presença (ausências presentes).

A imitação, sob o ponto de vista dos gregos, já que é deles que estamos falando, é uma ação fabricadora, uma téchne, e ela perde seu valor diante da racionalidade do filósofo que a subtrai como verdade. Mas, como vimos, essa ação não é falsa, já que ela carrega, como num espelho, a presença do outro, e o poeta trágico é aquele que inaugura esse novo gênero literário que não é só escrito, mas falado em palco, recitado. O modo mítico de revitalização, de tornar o ausente presente se desdobra numa atemporalidade, não indica cronologia alguma e isso é tarefa de difícil compreensão para nós, modernos. Dois mitos ilustram muito bem essa imagem: Sísifo e Prometeu.

Sísifo é o trabalhador dos infernos. Mortal, de Corinto (um corintiano!), condenado por Zeus, ele é obrigado a rolar uma pedra até o cume de uma montanha. Toda vez que ele atinge o limite, o alto da montanha, a pedra rola para baixo novamente e ele tem de carregá-la até o topo, indefinidamente, sucessivamente, eternamente. Representa o operário que vive rotineiramente a inutilidade de todos os seus esforços.

Prometeu é o titã acorrentado, pelo Cronida, numa pedra entre o Tártaro e o Hades. Também a pedra representa (ainda hoje) uma fronteira, um limite, uma demarcação, um perímetro territorial, geográfico. Prometeu, ao doar o fogo aos mortais, ultrapassou um limite e por isso se encontra em zona fronteiriça, num abismo. Limites e castigos são temas trágicos por excelência, mas também atuais. Como se sabe, a ave devora o fígado do titã, que se regenera e vem a ser devorado novamente, num ritmo sem fim.

Nos dois mitos, a repetição infinita é um pharmakón (não deixa de ser grámatta na modernidade) venenoso para o pensamento, porque é transmitida pela racionalidade histórica como ausência de movimento. Ora, se vida é movimento, a repetição nos remeteria, então, ao morto, à ausência de vida – o que é paradoxal, já que repetir não é outra coisa senão movimento! O que nos aparece engessado é, na verdade, o lado criador do humano, a vertente da abertura (novo), e é justamente essa abertura que lutamos, repetidamente, para conquistar. Reabilitar o sentido do mito como manifestação do divino que há em nós é tarefa ainda a ser conquistada.

A convalescença do meu contexto, permeada pelo movimento de aproximação e afastamento (Eros e Neikos), não se utiliza de medicamentos ou drogas que camuflam o sentido da abertura. O recuperar-se é natural das potências. Permitam-me explicar o que entendo por abertura e, talvez, o movimento de Eros e Neikos se torne ainda mais claro (aberto).

O agir técnico que mencionei, voltado ao labor, formou um modo próprio de o homem observar o cosmos e a si mesmo. Aquilo que o homem crê, não porque sacraliza, mas porque calcula, racionaliza, deduz – esse olhar científico – é pharmakón-grámatta também. Pode ser uma grandeza, mas pode o levar também ao maior fracasso. Esse olhar-agir moderno considerou-se sempre, viciosamente, uma grandeza.

Voltemos ao mito, ou melhor, à “Teogonia” e “Os Trabalhos e os dias”, de Hesíodo. Nessas obras, Hesíodo nos ensina que, de acordo com o mýthos grego, a raça humana, dos mortais, não nascida ou criada por deuses, veio ao mundo como a raça viril e guerreira. Nasciam da terra e nela morriam (do pó ao pó). Em outras palavras, os humanos e mortais que constituíam tal raça primeira eram apenas os homens, o masculino. Mas e as mulheres nessa cosmologia? Ora, a mulher, o feminino, surge como raça (génos gynaikôn) posteriormente, como uma raça secundária, tendo sua origem no castigo e nos males do mundo: Pandora (o belo-mal: kalón-kakón).

O feminino é posterior ao masculino e, sendo fabricação dos deuses, tem algo deles: fabrica seres dentro de si mesma. A raça viril e guerreira tem de aprender a lidar com a diferença divina: os homens fabricam objetos numa téchne de exteriorização que perpassa por todo um trajeto de conhecimento, mas a mulher, essa novidade, cria sem o conhecimento do ser.

Ela é temida porque é tida como um ardil, como uma ilusão (Apaté), como algo forjado pelos deuses, fonte de dores e prazeres. É mal porque é dependência. A partir da fabricação de Pandora que disseminou o mal, as mulheres passaram a fabricar homens dentro de si que dependiam dela para a sobrevivência. No mito, assim viam os homens essa nova raça criadora e, secundária, ela teve grudada a si os valores determinados pela raça que a antecedeu. Dos deuses aos homens, elas foram moldadas pela gênese viril e, ao invés de compreenderem-se como fonte criadora e divina, seguiram a visão dos castigados. O feminino foi pharmakón porque deliciava os homens, mas também os assustava. Os homens receberam a diferença como mistério a ser desvelado e como punição (imposição de força). Em Hesíodo, a mulher não é a “Grande mãe” – eis a diferença; ela é autogeradora, é mãe de si e se torna mãe da tribo viril e guerreira, é dominadora ou quer sê-lo, e impõe aos viris o castigo do nascimento. Nos tempos prometeicos, o masculino era a unidade, baseada em philia e andreia. A raça feminina rompe a unidade primária, é Neikos em movimento, é novidade (apesar de imitar os deuses) e abertura... e é negada pelos homens (Continua...)

sábado, 27 de julho de 2013

Das ações possíveis - Parte IV


PARTE IV

O pensamento também tem suas necessidades e limites, e a paciência é o caminho que optei em seguir quando resolvi unificar as primeiras sílabas deste texto. Tudo estava jogado, apartado e eu tornei próximo. O trajeto vagaroso a que me propus vem sendo delineado constantemente, diariamente, no jubiloso exercício da revolta reflexiva.

Colegas que ruminam comigo: trata-se de um exercício porque a convalescença como cosmologia ou pensamento só nos é inteligível se tomada como “sehnsucht”, orientado por um “suchen” e por um “streben” sem fins.

Dito de outro modo, mais abrasileirado: a revolta é o agir reflexivo possível da convalescença porque ela se fundamenta em si mesma. Nada exterior a ela resiste ao absurdo, de forma que ela tira suas razões de si – daí a importância da etimologia da palavra latina. A revolta é um retorno a si, que se examina e se conduz por si, assim como o anseio, a tendência infinita, o desejo que nunca cessa, o desejo de desejar o (in)desejável, que só encontra em si mesmo a plena saciedade; que é Trieb (pulsão), que se sabe Trieb e que se orienta por uma busca interminável (que se sabe sem Telos e sem um final objetivo a ser alcançado) que nada mais é que um redescobrimento, redesvelamento constante do novo (em nada se relaciona com a “pleonexia”). Soa paradoxal para os olhos e ouvidos que não captaram a noção de limite que indiquei. Não se trata de repetição circular do antigo, da grecidade, mas de um encontrar (encontro – união - Eros) incessante do novo. Descobrir é de si mesmo, aprender pertence a outro, e só descobre que procura.

O fluxo da revolta é o fluxo trágico de Eros e Neikos na convalescença da physis. A natureza é vida que pulsa e cria eternamente (sem princípio e fim), é movimento dinâmico, e, como Trieb, é jogo móvel, instável de forças que, ora estão em ordem, ora em desordem. Quando a physis é harmônica diz-se que isto é bom e daí deriva a sensação do bem (bem-estar/prazer) e daquilo que designamos por saúde, saudável.

 Àquele que não é autor-ator-agente criador revoltoso de si, encontrar um princípio saudável equivale a encontrar uma âncora a partir da qual o ser se auto-engendra e assegura sua permanência na mudança, sua identidade na diferença, sua unidade na multiplicidade. Contudo, o revoltoso sabe da inutilidade de se tentar fixar no fluxo plural da convalescença, mas é a isso, precisamente, que damos o nome de vida: fluxo dinâmico, tenso e intenso, de caótica pluralidade de potências (polares ou não) que se chocam e nunca tendem ao repouso (morrer não é repousar).

Ter saúde, nesse sentido, é equilibrar as potências opostas, é moderação. Entretanto, não se trata de conciliar estas potências, amenizá-las ou sintetizá-las, como costumeiramente os médicos da filosofia tradicional fizeram, mas, ao contrário, parece-me que é preciso manter a tensão, o choque entre os extremos, a dinâmica natural, fazendo apenas com que não haja, temporariamente, hierarquia entre elas – esse é o conceito de saúde que imagino ser adequado ao meu contexto.

 [Exemplo de pares: o úmido e o seco, o doce e o amargo, o quente e frio.]

Quando, porém, há a predominância de uma destas forças, nós (a physis, já que não nos concebo separados dela) adoecemos – isso é visível quando pensamos num resfriado. A morte tem seu lugar quando múltiplas forças sobrevêm, e o confronto deixa de ser “justo”, equânime. Se há o domínio de uma força sobre a outra, há doença; se há o domínio de várias forças sobre uma só, há morte, destruição.

Vivemos, portanto, no universo da violência eterna e generalizada em que ter saúde significa amenizar a dinâmica da tensão cosmológica em que vivemos (e não mantê-la, ou suportá-la), significa diminuição de potencialidade, ou seja, redução da saúde. Hoje, ser saudável é não ter saúde. E a felicidade? Ora, ser feliz, para mim, só é possível se soubermos que a felicidade é a pura expressão de um estado harmônico de manutenção da tensão e resistência ao violento: é o estado da conveniência na convalescença. A própria noção de justiça (dikê) também se relaciona, como citei, com a concepção de que saúde é proporção, é “justa medida”, ordem, lei, bem como a matemática, que surgiu como ciência que investiga o número, signo do quantificável, do dimensionável e do harmonioso. A saúde antiga era isonômica, mas moderna, que é monárquica, que visa à salvação, à resolução, que não aceita a vida como imperfeito jamais perfectível, como “Sehnen”* infinito no finito é a grande epidemia que assola nossas determinações e experiências.

Novamente, indico ao leitor, companheiro da calma, que não me deixo tomar por reducionismos drásticos. É indubitável a relevância de se buscar a unidade na multiplicidade, a ordem no caos – por e para isso temos as milhares de instituições que sustentamos. Todavia, minha crítica é direcionada aos que tomam a iniciativa da injunção e ao imediatismo dialético e racional da nossa vontade de compreender, que não podem amortizar o fluxo vital da existência. A saúde científica moderna nos sugere justamente como cura a imposição de uma potência sobre a outra, de um domínio sobre outro, quebrando o movimento natural e negando a “eukrasia”. Como foi dito, a pedagogia trágica do meu contexto nos ensina que proporção e equivalência (que não é igualdade) deveriam ser o limite, e não a ruptura ou abreviação do combate.

No mais, poderiam me questionar se eu não estaria a pensar numa tensão capitalista-positivista-evolucionista-progressista (e mais todos os “istos” e “ismos” possíveis) entre potências, em que a potencialidade mais forte sempre vencerá a mais fraca. Não. Repito: na cosmologia curva da convalescença não há superioridade e previsibilidade entre as potências, porque elas são equivalentes. Neste contexto, o bem não é superior ao mal, nem a saúde à doença ou o quente ao frio. Noite e dia são ambos fecundos e necessários em suas múltiplas singularidades; tudo tem o seu lugar, sem ter uma causa prévia ou um efeito imediato. Esses opostos se enfrentam sem uma “meta”, sem um objetivo a ser alcançado, porque são puras Trieb’s; essas pulsões se afrontam, só pelo fato de que querem viver, exceder, tomar, serem a si mesmas; só porque são vontades, nada mais. São inimigas apenas porque desejam ser. Percebem a importância da alteridade? Sem essa dinâmica da violência, só haveria totalidade, unidade plena e infinita, ou seja, nada existiria.

O clima (a temperatura) é o ambiente do conflito, o lugar do embate em que saúde e doença se manifestam e o reflexo dessa manutenção de potências é a criação (vida) e a degeneração (morte), união e separação dos quatro elementos (ar, terra, fogo e água) – Eros e Neikos em manifestação.

Num outro sentido, a doença se relaciona sempre com o excesso ou com a carência (abundância ou falta) de alguma potência, ou seja, com a desmedida entre as forças. Trata-se de um momento, movimento, de um estado, portanto, em que ou temos (physis) muito ou temos pouco; um estado de pobreza e de riqueza. Um estado quantificável, matemático (logístico e aritmético), que recepcionamos como mal e como sofrimento. Estar doente é sofrer porque se está pobre ou rico de algum elemento; a medicina se insere nesse meu contexto como a ciência redentora que visa a solucionar conflitos quase econômicos, curar a hybris ou a miséria naturais.

Ora, se afirmei que meu contexto é o da convalescença cósmica, significa que eu aleguei que vivemos atualmente num estado em que a physis se recupera e se fortalece o tempo todo. A physis fraca volta-se a si mesma para resgatar sua força pedida. Em outras palavras, vivemos NO instante da doença, em que desejamos infinitamente (Sehnsucht e Streben), porque carecemos de algo constantemente e nunca estamos plenos, satisfeitos, completos. Somo pobres e nos alimentamos por isso, porque temos fome ininterruptamente. Sem alimento, sem forçarmos a nossa continuidade, ela se encerra – daí o amor à pobreza.

Existir é o movimento funcional de querer continuar a ser, sabendo da inevitabilidade do fim indesejado. Trágico é não ter solução.

É a nossa insaciedade insana, demasiada penúria elementar, insuficiência plúrima e total, que nos leva à doença moderna do existir - e também o excesso nos infla, nos engorda, nos deixa fartos, infartos, nos enche (e não preenche) e incha com seu vigor e ambição de totalidade. Meu contexto é de respeito tanto ao exagero quando à deficiência, porque entendo que viver – hoje - é estar doente (e não saudável, como poderia se pensar), abstinente, convulsionado. E imagino que meus amigos do lento saibam que minhas palavras não lhes trarão conforto, alívio ou iluminação.

Com os devidos méritos, creio que a medicina não salva. Ela não faz mais que tentar conciliar o inconciliável. É uma área de investigação louvável, porque é aquela que visa ao harmônico, ao equilíbrio; mas falamos de estados, de momentos (de tempo, portanto), de instantes, de fluxos instáveis intermináveis em que o equilíbrio (que se quer constante) não passa de mera aparência. Ela não é o divino que purifica. Heráclito já nos ensinou, lembram? E é também por esse motivo que me parece que as terapias (e isso inclui as que se auto-intitulam psicológicas) não são mais que placebos mentais.

A ordem do mundo é a do corpo e vice-versa, e ela comporta todo o caráter destrutivo da recepção e todo o caráter construtivo da doação – a isso não há taumaturgia; é puro paradoxo. Cito Heráclito como contraexemplo: “Pois todas as coisas são semelhantes (“homoia”), embora diferentes (“anomoia eonta”); compatíveis (“sumphora”), embora incompatíveis (“diaphora”); em diálogo (“dialegomena”) sem dialogar (ou “dialegomena”); dotadas de inteligência (“gnômen echonta”) sem a ter (“agnômona”). O modo de cada um é oposto embora esteja em concordância; o costume e a natureza, pelo quais nós fazemos tudo, não estando em concordância, concordam, todavia.” Os opostos de Heráclito estão em guerra permanente, mas é fundamental identificar que a guerra nada mais é que um mecanismo de destruição e restabelecimento dos equilíbrios rompidos.

Se vivemos em permanente e maníaco conflito bélico-natural, no tempo da enfermidade crônica do existir, cabe experenciá-lo em sua máxima potencialidade, sem subterfúgios, sublimações ou “panem et circenses”, sabendo respeitar o limite dessa relação (o absurdo híbrido) no círculo da convalescença catártica, por meio da conduta revoltosa. Não é tempo de higiene e de mistura simétrica das qualidades! Indigentes que somos sempre, inseridos no fluxo do imperfeito jamais perfectível, que é o da necessidade fugaz, cedemos a Neikos o seu lugar na “apokrinesthai”, e seu tempo de “Kairos”, apenas para constatar que dispomos em nós mesmos dos meios necessários à manutenção do equilíbrio comprometido. O cuidado de si é permanente e é este o exercício ético-estético de revolta reflexiva que nos permite experimentar e reconhecer possibilidades e limites tanto do micro quanto do macrocosmo - além de ter o sono tranquilo! (Continua...)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Das ações possíveis - Parte III

PARTE III
Cedi o devido tempo para que este texto pudesse ser deliciosamente ruminado, fosse tomando seu Telos, seu destino, de grama verde, de digestão, e é por esse motivo que gostaria de decifrar mais alguns pensamentos antes de partir para o próximo tema que abordarei.
 
Quanto à importância da partip-ação do (des)sujeito na realização do ato, qual seria o seu papel se há diluição? Até que ponto há Eros e Neikos entre esses conceitos (sujeito-ação)?
Pensando metafisicamente seria mais fácil responder. Poderíamos apontar a “absolutez” do sujeito, inclusive quanto ao agir. Como exemplo, há inúmeros apontamentos, mas essa visão específica parece-me muito semelhante à de Fichte, que colocava o “Eu” (o equivalente a substância de Espinosa) como um absoluto, ou melhor, que pensava o absoluto com a estrutura da “egoidade”. Em Fichte, o “Eu” é simultaneamente “Das Thätige” e “Thätigkeit”, é sujeito e objeto, é aquele que age e o que é produzido pela atividade; é “Handlung” (ação) e “That” (fato) ao mesmo tempo. Dizer que se é não é nada mais que dizer “Thathandlung”. Nesse contexto, o “Eu” não deve ser entendido como “aquele que age” ou como “sujeito da ação”, mas como o puro agir (tun) – essência, agilidade.
Ora, nada mais metafísico, psicologista e desconcertante pensar o “Eu” como categoria absoluta, já que em seu absolutismo (unidade) o “Eu” não poderia ter consciência de si, porque a consciência é sempre consciência de algo, de um objeto (em Fichte, o “Eu” contém toda a realidade e fora dele não há nada – não há objeto algum e nem o “Eu” é objeto para si). Em outras palavras, não há consciência em Fichte, que equivale o conceito de sujeito aos conceitos de ação e de fato. Parece-me que Schelling, com o devido respeito às diferenças, também segue em caminho semelhante.
 
Não imagino que seja pertinente nos voltarmos à concepção de fato, porque já explicitei minha noção de temporalidade e hermenêutica anteriormente, bem como já apontei que meu contexto não tem nada de metafísico (na medida da tradição).
Chamo a atenção para a ausência de consciência em Fichte, mas não só: destaco a permanência da presença reflexiva e isso me desperta.
A reflexão, como a etimologia nos ensina, é um voltar-se a si; “reflexão” significa dobrar novamente, e isto explica o papel do Eros que, de fato, une o autor-ator-agente a si mesmo naquilo que desencadeia a vontade e a ação possível. Talvez Fichte quisesse somente dizer, na Fundação e nas Preleções, que é a reflexão a atividade pura originária, talvez. Mas Neikos tem também o seu lugar na ordem das coisas, na “archai”, de modo que esse autor-ator que reflete sobre sua condição tende a diluir-se, separar-se dessa intelecção, inserindo-se no que é externo a si, na alteridade, agindo... às vezes efetivamente, às vezes não. Por esse motivo indiquei anteriormente que o agir efetivo e possível é reflexivo originariamente.
Dito isto, acrescento ainda mais algumas indelicadezas.
 
Compreender o continuum circular do kósmos não é tão somente compreender um modelo de estrutura de tempo pensada pelo ser, nem uma certeza ética que recai em imperativos. Mencionei a etimologia da palavra reflexão justamente para que fosse visualizada essa temporalidade. A curva que proponho em meu contexto não é aquela prisioneira da reação e da reprodução, mas, sendo um círculo, não consistiria justamente em repetição do antigo ao invés de novidade destruidora? Refletir não é redobrar, voltar? Minha proposta de um agir efetivo e possível, ainda que fora da moralidade tradicional, não recairia num esquema linear que se toma como superação sempre nova de um passado rumo a um fim ainda por vir? Não. Vejamos.
Desassujeitado o ser (doente – do ente) enfraquecido resta-lhe o instante e a longa convalescença da enfermidade que o quis matar, mas que não o atinge mais profundamente, já que ele aprendeu a se proteger de certas tendências. É esta convalescença o anel circular em que oscilam Eros e Neikos. Convalescer significa recuperar-se, conviver com a doença, recuperando a saúde perdida. Convalescença é a cosmologia ético-estética do devir que proponho, não como saída ou alternativa para a problemática do agir (porque não há saída, conciliação, resolução – a doença é condição para a saúde), mas como condição de possibilidade de vida, de ação possível e efetiva e de cuidado de si.
Cuidadoso e revigorado, nosso criador se afunda, como dissemos, na multiplicidade. Portanto, não falamos mais em criador, mas em criadores. É interessante salientar que não são heróis, nem ideais a serem tomados como exemplos, padrões a serem seguidos, apesar da identidade do conteúdo trágico de suas relações... nossos colegas da pausa sabem de seus limites e compreendem o instante que os transcende, exatamente na medida em que refletem (dobram-se a si (uno) que agora é múltiplo).
Saber que a condição do ser humano é a de convalescença trágica é saber que não há possibilidade de redenção (esperança no por vir) ou conciliação. Explico melhor: na tragédia, como na vida, há o embate entre duas forças que não se sobrepõem; não há hierarquia entre elas, uma não é mais forte que a outra; elas se apresentam como opostas, conflitantes, como uma tensão entre potências equivalentes num duelo constante, infinito. Romper o elo que une esse conflito entre potências (hybris – excesso, ação desmedida) é romper com a própria vida.
Na tragédia, o herói que comete o excesso sofre o infortúnio, mas é também destino do herói sofrer o infortúnio (sua condição de mortal) já que ele é a figura “apta”, “preparada” para purgar, expiar, limpar a mancha, o erro cometido, livrando a comunidade da ira dos deuses. A pedagogia da tragédia, que floresce juntamente com os grandes tribunais gregos e é um gênero literário baseado numa escrita técnico-jurídica, é a de respeitar o limite intransponível da existência. A esse limite (Némesis) Camus deu o nome de absurdo. O absurdo é relacional: é Eros e Neikos na convalescença, é o elo que une o homem ao mundo, mas é também o divórcio, a fratura que separa. A única maneira de se relacionar com o mundo é por meio do absurdo e o único modo de suportar essa condição é vivendo, mantendo o absurdo em sua absurdidade, em sua ausência de Télos, sem romper com ele. A conduta possível e efetiva que corresponde a esse modo de viver no absurdo é a Revolta e é na convalescença irreversível que ela se dá.
 
A palavra Revolta vem do verbo em latim “revolvere”, que significa voltar para trás, dobrar, enrolar. Percebem? Revoltar-se é o agir reflexivo dos nossos calmos criadores. (Continua...)

Das ações possíveis - Parte II


PARTE II

O autor maduro, sem máscaras, que abandona o sedentarismo e a letargia intelectual da minoridade (Aufklärung) e da gregariedade, afasta-se da tutela do outro experimentando a pluralidade da existência sob novas perspectivas de atuação e interlocução, de distanciamento e esquecimento, de modo que o saber não se deixa encarar como mero ato de força ressentida ou como manto protetor, mas como inov-ação distinta e acessível. Este ser diverso não é sismógrafo, é terremoto; não é o arauto, é a própria mensagem.

O promotor da originalidade não pode ser o homem da tradição, imerso em suas enfermidades morais e submetido aos determinismos metafísicos das escolhas e das valorações, das categorias redundantes, dos absolutismos lineares que insiste (ele) em logicizar. De igual modo, ansiar por um sujeito que se paute somente numa ação possível e efetiva seria um equívoco de minha parte, porque falo justamente do caráter e da natureza da multiplicidade. Se o autor-agente que estou comentando agisse apenas efetiva e possivelmente, então, meu contexto seria empreendido em nome de um sujeito totalmente livre e responsável, mas que é também produto dessa mesma tradição doente (portanto, não é novo).

 É por esse motivo que é preciso entender a proposta e o télos do texto, o desassujeitamento trágico ao qual me referi anteriormente e a noção de vida como o imperfeito jamais perfectível (porque a vontade é sempre a de um plus, a de um ultrapassar, exceder – poder).

O jogo é compreender que as ações possíveis e efetivas não são, de fato, ações morais e imorais às quais devemos nos regular, como reis das tábuas (ações efetivas são extemporâneas e visam a transvalorar todos os valores), porque ações morais e imorais não existem! Atribuímos (i)moralidade quando valoramos nossas atuações e o resultado delas, numa interpretação histórica de hierarquização e privilégio de tudo que não é instintivo, intuitivo; num gargalo linear de culpa, pecado e obediência que visa ao ideal e não passa de esgotamento do imperfectível jamais perfectível (vida).

E não só!

Também o sujeito de tais ações (efetivas) não existe; ora, ele não é livre ou responsável ou doente, porque, simplesmente, ele não existe: é apenas um jogo de superfícies hermenêuticas, extramorais, que se orientam pelo dividuum (e não pelo individuum). Nem moralidade, nem sujeição, nem reducionismo. O autor-ator ao proceder à revisitação de si, descobre-se como dividuum, desassujeitando-se, tornando-se chave para a inov-ação.

Os homens são fontes de valores, mas ao enxergarem apenas um único lado da vida, o diminuto, o tratam como se enxergassem o absoluto, um todo imóvel, visível e superior. Isto eu não eu posso conceber!

À essa percepção inovadora, divisora da experiência de autoria doo o significado de desassujeitamento, de dissolução do tradicional e do consciente (e isso engloba o que se imaginava ser o agir, interagir e o relacionar). Somente no enfraquecimento do superficial, na extensão da atenuação do ser (que ainda é ser) é que se pode criar aquilo que chamo agora de efetivo e possível (plural), porque é a subtração, o declive, o fado da tradição, mas também o fado daquele que se concebe como autor múltiplo e sedento; o declive é a condição do continuum e sabê-lo é o passo inicial para amplitude da inov-ação.

O abismo é a expressão que melhor caracteriza o novo porque compreende uma estrutura de pensamento que não é linear, mas curva: do mesmo modo que não existem ações (i)morais, não há nascimento ou morte propriamente ditos (continuum).

Permitam-me o contraexemplo:

Empédocles me chama atenção justamente porque anuncia que há somente composição e dissociação de elementos compostos - o que significa dizer que a vida é um vir-a-ser em união e separação (Eros e Neikos infinitos), nada mais. Nascer e Morrer são substantivos que nós grudamos ao acontecimento (que é muito mais amplo que o seu significado). Diz o sábio: dupla é a gênese das coisas mortais e também duplo é o seu desaparecimento, porque a duplicidade gera e destrói a união dos elementos.

Ora, o declive é precisamente a alternância do destino (harmonia), e a sábia visão cíclica que envolve adição e subtração (portanto, matemática) é a de que o uno aprendeu a “nascer” do múltiplo pela união (que é solidão circular), enquanto que o múltiplo aprendeu a se apresentar pela separação; tudo é força (a fonte de tudo que é mortal), é embate entre potências iguais em dinâmica e energia. Tomar o planeta como esfera solitária, como círculo, igual em todos os lados – eis o ensinamento astronômico de Empédocles! O tempo não tem duração porque é luta infinita em que ora predomina Eros (adição/multiplicação), ora Neikos (subtração/divisão).

O autor-ator-agente conhece essa oscilação e, portanto, a impossibilidade de agir sempre efetiva e possivelmente – daí colocar-se diante de novas perspectivas, como a do co-autor, do espectador, etc. Ressalto: a novidade precisa de tempo para revelar sua amplitude, ela não é imediata, não é precipitação.

Amigos do lento: é tempo de ouvirmos Neikos e diluirmos o “eu” em múltiplas vozes! O descolar-se de si agora é condição para a invenção, para o provável, para o desejável. Os mais desvinculados do rebanho são aqueles que ensaiam o novo. E o novo é inicialmente fraco porque é pluralidade de possibilidade, extensão, perspectiva; é hesitante porque cuidadoso; é pausado, retardado, demorado porque não é automático, imediato, resposta-vingança: aquele que experimenta o novo (que é o autor irreverente do movimento) é um fraco, é declive, abismo, ousadia em relação à hipertrofia do agir histórico. Ele se posta no umbral do instante, como “nuvem ahistórica” e prevê certo esquecimento (como força, potência, capacidade) do passado, do fardo da memória, de tudo que está enraizado, construído, encerrado em construções humanas, em tumbas artificiais que sepultam as intuições, volatizam os seres.

Nosso desassujeitado conhece Platão, e sabe que o esquecimento (e não a memória) é uma das condições de possibilidade de vida, de ação (efetiva e possível) e até de quase eudaimonia. Vincular-se ao peso histórico que paralisa, à prisão das lembranças, exemplos, à reverência dos modelos, padrões supostamente bem sucedidos, à esterilização, representaria um impedimento não só para o agir efetivo, mas para qualquer tipo de atuação de si. Parece-me necessária certa dose de desatrelamento, atrevimento devagar que privilegia o presente, numa amnésia afirmativa, num turbilhão de vida, e essas são qualidades próprias do autor expansionista do meu contexto que é um tipo que almeja ir além: do criador. (Continua...)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Das ações possíveis



Pontuo, desde já, que esse texto não foi produzido (não é objeto),  não tem finalidade determinada e nem direção certa. Seria obtuso de minha parte negar que ele seja direcionado ou direcionável; afinal, todo discurso, palavra ou linguagem tem um interlocutor (ainda que esse interlocutor seja eu mesma) e uma tendência, de modo que a direção a que me refiro não é a do espectador, leitor, assistente, receptor (que é óbvia - "a quem"), mas a do próprio télos, do sentido do que ouso expor: este texto não tem um sentido pré-determinado, ele faz (fará) sentido ao longo da leitura (recepção), e ele o faz precisamente porque o sentido é criação e contínuum (sem fim). 

Não é pretensão infante, como poderia soar para alguns receptores que passam a vida a resmungar, ásperos e petrificados em suas verdades, enfermos em suas certezazinhas,  mas uma afecção, simples vontade vital. Permitam-me explicar:

O ATO de realizar uma tarefa, de executar uma atividade - definido pelos nossos colegas gregos como práttein - encerrar-se-ia em si mesmo. Esse tipo de execução tem um final determinado, já que, ao se percorrer determinado caminho para a consecução, obtido o fim desejado, cumprido o objetivo que visa a um objeto, o ato é morto. Desta realização efêmera, acabada do ato, resolve-se, ou não, a vontade primária daquele que se pretende como agente no alcance do fim e, a isto, os gregos atribuem o substantivo práxis, certos de que agente, ato e resultado obtido são instâncias inseparáveis naquele contexto. Talvez o fossem, mas sabemos o que pensavam Platão e Aristóteles. Não é preciso apontar que no contexto em que este texto é escrito a noção de práxis não poderia ser a grega. Tomei a liberdade de chamá-lo, então, de meu contexto, mais brasileiro, bem italiano, às vezes alemão, às vezes português, em que pese a multiplicidade do que sou.

Meu contexto situa a ação fora dessa concepção de práxis, fora da utilidade/fabricação, ampliável ao limite do sujeito, inserida no diálogo e na continuidade da atuação. Falemos, portanto, daquilo que chamarei de ação efetiva e possível (que se distingue da reação e da reprodução), não tanto com o olhar do sujeito ansioso e moderno, mas com a lentidão da reflexão contemplativa que, longe de se distanciar da reflexão ativa, a complementa. Digo isso porque o labor cotidiano irreflexivo e maquinal do sujeito moderno não coincide com o que chamo de ação, uma vez que está condicionado por necessidades biológicas, de conservação e sobrevivência, ao consumo. Produz-se para consumir e continuar a consumir. [Abro colchetes para chamar atenção ao fato de que o labor reflexivo, contínuo e que transcende a tais necessidades pode, eventualmente, se caracterizar como ação efetiva - vai depender da autoria, da autoridade do realizador]. No mais, o labor cotidiano nos impele a uma relação de dominação e hierarquias sociais, intra-humanas,  em que o efetivo e o possível estão aprisionados numa teia estável massificante do não ser. Nesta teia de relações nós não somos, nós apenas existimos para produzir atitudes e atividades consumíveis, repetidas, de curta de duração (resultado do labor é perecível), num ciclo artificial que não é o da vida, daquilo que penso ser vida, mas que é o da utilidade e necessidade, sob o âmbito social ou público. O mesmo se pode dizer do processo de fabricação, que não é propriamente o do labor - e que muitas vezes se identifica erroneamente como arte - mas o do constructo que se encerra no objeto produzido - processo  típico da sociedade atual de produção-produto, realização-finalidade, com a peculiaridade de ter relativa duração na teia dos edifícios e artifícios modernos porque visa ao fixar-se,  e que se sustenta não propriamente na sujeição do sujeito, como no labor, mas na agressão à natureza.

Mas e a ação efetiva e possível? Como ela pode se dar afastada do labor rotineiro e da fabricação final (que não é criação)? Ora, a ação possível só é realizável no espaço humano que é do conflito de potências; entretanto, ela não possui rotina, hábito ou pré-definição, de modo que, nessa perspectiva, ela é original. Ela é também contínua, porque não é final. Trata-se de uma novidade, de um modo de ser, de um comportamento de iniciativa do sujeito que se vislumbra inserido numa multiplicidade, em contato com outros possíveis agentes que, assim, interagem. Ação efetiva é, sim, sinônimo de interação. É importante frisar que à essa ação (efetiva) deve preceder incisivamente uma reflexão: uma reflexão não necessariamente sobre a direção ou finalidade da ação, mas sobre a própria vontade, desejo, paixão que a origina imprevisivelmente. A vontade é a responsável pelo impulso ao agir, e é por esse motivo que podemos dizer que toda crença ou hábito, de certa forma, é uma pré disposição ao agir. No entanto, esse impulso não é só fruto de uma vontade que impera, mas de uma conexão instantânea  entre pensamento e ato.

Não considero adequado, como fazem os ásperos ranzinzas, arbitrariamente separar impulso, ação e discurso, ou ação e reflexão, sob pena de se tornar a ação mera reação (re-ação, repetições de uma mesma atividade ou conduta vazia, e não originalidade ou novidade, ou ação que só se inicia pela indução, condicionada pelo ato inicial que a provocou e que se desdobra em resposta-vingança) ou reprodução (como vimos, fabricar ou produzir bens em nada coincide com o que chamo de ação efetiva; menos ainda o re-produzir, o redobro, caracterizando-se como repetição do resultado final obtido, produto).

A antecipação da reflexão ou simultaneidade do discurso é inerente ao agir efetivo porque a comunicação e o pensamento são "lugares" de alteridade e singularidade e, portanto, de interação. A palavra necessita da presença e é precisamente o diálogo que se molda como o campo do agir efetivo e possível, que não foge à persuasão retórica, mas, ao contrário a enfrenta. Não é a toa que a lexis grega era também uma práxis. Opto, nesse texto que se contextualiza meu, nem pela razão pura, nem pela razão prática, porque me são monológicas (não interagem); opto pela intelecção dialógica, que é a da linguagem falada ou escrita, porque é ela que revela quem eu sou e aquilo que me é verossímil (que não tem relação com a verdade), incitando minha particip-ação no mundo. Sem a intelecção discursivo-reflexiva a ação deixaria de ser ação, porque não haveria o papel do ator-agente e, nesse sentido, me parece verossímil a doxa da Arendt de que o ator só é possível se for autor. 

Autor, autoria, autoridade não são só formas de se conceber um discurso, mas modos de promover o próprio desassujeitamento daquele que conduz o canal comunicativo que é plural, e isso ocorre pela hermenêutica indissociável ao lexo do autor que é o ator-agente da ação efetiva. A autoridade dialógica é plural e aberta por natureza - daí a hermenêutica lhe permitir somente a multiplicidade do possível, do verossímil e do provável, ao contrário da autoridade tética que se baseia na lógica do verdadeiro-falso. É por essa razão que a tragédia não se configura somente como novo gênero literário na Grécia antiga, mas como visão de mundo que se coloca diante do possível. A felicidade trágica consiste na vivência e na experiência de diluição do assistente, e não na representação do ator mascarado, já que ele é simultaneamente espectador e ator pela katharsis. Seja sob o prisma da purificação, seja sob a ótica da punição ou do prazer, a tragédia como discurso e como visão de mundo (que se funda na hybris e na pedagogia do limite) é a manifestação de dissolução do sujeito no êxtase ou comunhão plena e alegre do público com o mundo (dor). Compreender que ora se é espectador, ora se é participante, ora se é co-autor e ora ator-autor é o primeiro passo para um agir efetivo e possível,  neste palco que está aí, antes e depois de nós (por isso há continuidade, pelo devir).

O que me toma e me afeta, e a afecção também é um sintoma para o despertar da ação, no entanto, mais que a necessidade reflexiva e mais que a compreensão dialógica da atuação, é a irreversibilidade da ação. O que foi feito está morto, encerrado, consumado e não se pode desfazer (sob pena também de se recair em reação ou reprodução) ... mas o que deixou de ser feito num tempo próprio, a inércia fatal, a inação contundente também se impõe como fim último, sem retorno, sem possibilidade para todo e qualquer além. 

Observem o belo paradoxo:

Ao inerte estagnado, ao menor alienado que se conduz pelo agir alheio (reprodução por covardia, massificação imposta ou ausência de vontade), ao empreendedor imóvel que não é ator, nem autor de si, resta-nos a hermética lástima do insuportável e habitual não ser. Para aqueles que interagem, é exatamente o irreparável, o inapreensível, o imutável que torna a ação efetiva um continuum no tempo, uma hermenêutica e uma possibilidade sem fins. Agir de modo a respeitar a vontade no continuum, o limite do irreversível, é ampliar as probabilidades, é criar, dotar de significado, doar-se em união, ser. É desejar-se como um tipo de vida que vai além, é superar-se. (Continua...)

terça-feira, 16 de julho de 2013

Evoé!


Anoitece e as histórias que tenho para contar se perdem em descaminhos escuros propositais.

[Despedaçamentos rotineiros. Manias vitais.]

São narrativas despropositadas, mudas, que refletem gerações ancestrais, comuns a mim, e que agora canto mentalmente como que um resgate de uma presença de não sei bem o quê, como vontade de não esquecer-me da ausência inaudível, como hino à imagem e ao silêncio que tanto preservo no meu ritual cotidiano.

Existo como quem homenageia cadeias inteiras de material genético, numa liturgia que não cessa de ensinar e apreender. Descrevo cores, sons e aromas (uva) desde as mais aéreas filosofias ao profundo e fúnebre sepultamento dos deuses, só pelo prazer de respirar; crio símbolos, mitos e verdades da memória só pelo prazer de parir.

E nada me ilumina mais que o sossego das noites de luar sem ruídos, repletas de palavra e força e vinho e hábito. Eleutherio, Lethea, Zagreus, Bromio: não me interessam designações, encerramentos.

A minha mitologia pertence exclusivamente a mim, aos meus muitos, e os meus mistérios só podem ser rapsodiados (aos poucos) por aqueles que se iniciam no culto. Para tanto, há um enigma a ser decifrado, como no mito de Thársia ou Tharsis (com ou sem Katharsis), na topologia napitini: aquele que erra é condenado a nunca mais errar. Eis a punição! Você arriscaria?

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Pausa da linha (do ponto, da alma, do mundo, da paixão).


Somente se a métrica fosse milimetricamente estética,
E se a estrofe da minha vida se transformasse em verso livre,
Só assim eu me tornaria o verbo de uma língua qualquer.
 
Não, mentira. Não poderia ser de uma língua qualquer. Teria de ser qualquer coisa que cantasse, que ecoasse melodia, ritmo, resultasse em harmonia. Uma língua musical que me sussurrasse todas as tônicas do universo, que se faz verso, que se faz reverso, se faz imenso, tenso, denso. Língua que devorasse a medida das palavras e que me fizesse sentir a poesia ácida do pensamento, a doce prosa da fantasia, o amargo da literatura mental. Qualquer coisa que se fizesse som, imagem e letra, em que eu pudesse vomitar todas as minhas incertezas, em que eu firmasse a união dos sujeitos aos predicados, criasse diariamente substantivos e revalidasse adjetivos, tornando-os mais que simples linguagem. É... aquela verborragia necessária e insustentável.
 
Somente se a frase não fosse oração e nem designasse conceitos, e se os conceitos não contivessem nada, só assim eu deixaria de ser o sinal bruto da representação intencional, qualquer coisa de feito, citado, determinado, acabado; qualquer coisa pronta, concluída e retórica. Não, mentira. Eu não poderia ser o persuasivo fim, teria de ser o começo, o ponto de partida latino, clássico, das flexões e conjunções interrogativas da história, o novo dialeto dialético milenar, a tragédia epopeica: o idioma de mim mesma. Somente se o nome se iniciasse com maiúscula e me indicasse qualquer coisa de inspiração e entusiasmo.
 
Somente se fosse alguém que rimasse comigo... e ponto final.