É comum que as ciências sociais de modo geral tenham, envoltas num discurso evolucionista, rebaixado as sociedades arcaicas a um primitivismo provincial e mitológico, como se somente o saber científico moderno fosse digno de elucidação do mundo. Não questiono, nesse breve comentário, a fidedignidade da ciência, seja como linguagem adequada ao conhecimento, seja como subterfúgio metafísico. O que me interessa investigar, por ora, é a desvalorização e mutação de determinados conceitos ao longo da história das sociedades e, dentre eles, o tema da liberdade.
Por mais que se desconsidere a sabedoria arcaico-mitológica,
o simbolismo muito ainda nos ensina e elucida. O que é ser livre ontem e hoje?
Hoje, a noção de liberdade nos remete a concepção moderna de
indivíduo, herdeira do liberalismo – a de que o homem é sujeito senhor de si
próprio, de suas ações e vontades, de seu trabalho; portanto, um proprietário –
que não coincide com a antiga. É claro que alguns poderiam me contestar,
apontando o livre-arbítrio medieval como “espécie” do gênero liberdade, mas
entendo que esse apontamento se trata, afinal, de uma visão embrionária,
somente fixada com a ascensão do Estado moderno, totalmente distinta da
arcaica, em que o indivíduo é todo agente sujeito e conhecedor de si,
responsável por suas ações.
No universo arcaico – e me refiro especificamente aos gregos,
antes da emergência da póleis -, ser
livre era não ser escravo. Isso não diz muita coisa, quando não se entende o
que é ser escravo. Nesse contexto, ser escravo era ser prisioneiro de guerra,
viver num território que não é o seu; é ser estrangeiro, sem raízes, obrigado
(pela violência) ao sacrifício do trabalho (castigo) e a viver aprisionado e
sem identidade junto a um grupo do qual não pertence. Ser livre, portanto, não
significava poder de ir e vir ou escolher e agir pluralmente diante de
possibilidades, mas pertencer a um grupo determinado, ter identidade, ter
raízes fixadas num génos que não é
senão extensão da pessoa. O “Eu” só era considerado enquanto parte constitutiva
(partícipe) da identidade grupal. Liberdade é pertencimento mútuo e valor
externo a ser sustentado. Em outras palavras, ser livre é unir-se ao conjunto
(que ultrapassa a família) em vínculos genéticos (génos), étnicos, sociais, bem como submeter-se às regras do
grupo. O escravo não possui tais
vínculos, o que o torna um ser errante, nômade e apropriável: na visão arcaica,
paradoxalmente, é o desenraizamento que impede a liberdade, e isso nada tem a
ver com superioridade étnica, racismo ou fascismo.
Não querendo tomar antigas visões genérica e arbitrariamente,
nem reduzi-las ao presente histórico e territorial, proponho, como exercício,
que transportemos essa concepção ao Brasil. Não é preciso esforçar-se muito para
recordar a nossa história de colônia e exploração. Nosso país formou-se pela
combinação de diferentes povos e tradições – daí a discussão sobre a ausência
de uma identidade cultural no Brasil – tornando-nos filhos de portugueses,
sudaneses, angolanos, italianos, indígenas, japoneses, espanhóis, etc.,
bastardos imigrantes, alienígenas, que não se reconhecem como partícipes nem se
identificam com uma extensão valorativa a qual merece respeito e conservação.
Tomo-me como exemplo: sou neta de italianos, cresci ouvindo
músicas, histórias, lendas de um contexto que não é aquele em que vivo; comendo
comidas distantes, escutando e pronunciando termos em outros idiomas e, muitas
vezes, gesticulando e agindo como tipicamente o faz um ítalo. Nasci fixada na
memória e na origem de um povo distante, calabrês, meio grego, meio árabe, que
me vincula não só a um local, mas a um grupo no qual eu não estou inserida, do
qual estou afastada, seja por uma lógica histórica ou por um acidente cósmico.
Sim, sou brasileira, mas brasileira italiana, portuguesa, o que me faz pensar
que serei sempre escrava, porque, de certo modo, desterrada.
Penso também nestes milhões de compatriotas sem pátria, sem
raiz ou grupo, isolados em si mesmos, prisioneiros de guerra individual, que se
perdem em manifestos desconexos, porque nada têm em comum senão a ausência de génos. Talvez a identidade se dê na
ausência, talvez. Enquanto isso ou aquilo, são todos escravos, todos filhos
bastardos de mãe gentil, inexoravelmente acorrentados a uma única certeza: a de
que, ao menos numa visão arcaica, jamais serão homens livres (no melhor e no
pior sentido axiológico do termo)!