sábado, 8 de maio de 2010

Palavra-chave

Não obstante a palavra “Filosofia” comporte diversos significados, entusiastas a tomam, no mais das vezes, nos extremos da perplexidade ou do desdém. Da mesma forma que o termo causa repulsa em alguns, em outros, ele renasce como admiração. Por vezes, basta sussurrar a “palavra mágica” para que jovens alunos comecem a se coçar ou a arrancar os cabelos, tamanha a chatice que lhe é atribuída. A “Filosofia” e os estudos filosóficos acabam se tornando chatices porque não são introduzidos aos jovens de maneira a despertá-los. Trata-se de apenas mais uma disciplina em que o aluno tem de alcançar certa nota para a aprovação; uma disciplina que exige do aluno leitura atenta e boa redação e que é recebida como mera obrigação acadêmica da qual não se deve discordar nunca.

Entretanto, o referido termo também causa espanto e admiração. Inúmeras vezes, com um quê de absurdidade, ouvi a seguinte frase: “Puxa! Você estuda Filosofia mesmo?”, como se se tratasse de uma tarefa dificílima e aterrorizante, digna de poucos homens obstinados que, ao longo da história, fundaram ou pretenderam fundar uma verdade eterna.

Longe de querer tecer comentários acerca do ensino de Filosofia no Brasil ou sobre a beleza de se estudar o termo em questão, o tema que proponho esmiuçar tem por base a importância da origem dos significados e sua multiplicidade para compreender como a linguagem nos afeta.

Interessante seria sugerir como primeira leitura a comédia do Anfitrião, de Plauto, mito esquecido, mas tantas vezes encenado nos palcos gregos e que desencadeou um número considerável de obras literárias.

O mito nos conduz a história de Anfitrião, primo e marido de Alcmena que, tendo saído em viagem para a guerra de Tebas, em companhia de seu criado e companheiro Sósia, fora surpreendido por Zeus. O supremo deus do Olimpo, apaixonado por Alcmena, decide consumar seu amor e, para ludibriá-la, cria uma espécie de réplica de Anfitrião - figura que possui todo o seu aspecto, mas que, em verdade, é o próprio Zeus – e faz com que seu filho Hermes se transforme na figura de Sósia, o escravo, para que o lar fosse vigiado e Zeus pudesse ser alertado caso alguém aparecesse.


Fingindo ser Anfitrião, Zeus toma Alcmena como esposa; quando retorna da guerra, Anfitrião e Sósia confundem-se, uma vez que a esposa apaixonada afirma a presença constante de ambos. Para desfazer o mal-entendido e resolver a crise de identidade, Anfitrião consulta Tirésias - o grande adivinho - que lhe dá a chave para o enigma. Mesmo assim, preocupado, Zeus vai ao encontro de Anfitrião e lhe explica o ocorrido, desfazendo a confusão.

Anfitrião, ao invés de se tomar por traído ou agredido, cumprimenta Zeus pelo feito e se sente honrado pela escolha do supremo Deus. Resultantes dessa união entre Zeus e a mortal Alcmena, nascem os gêmeos: Íficles, filho de Anfitrião, e Hércules, filho de Zeus.

Da aceitação pacífica de Anfitrião tem-se para a eternidade o próprio significado da palavra como substantivo: o chefe de um lar que recebe delicadamente os convidados. Do mesmo modo, até os dias de hoje, a palavra sósia, também substantivada, designa um sujeito muito parecido com outro ou o duplo de outrem.

Anfitrião e Sósia são apenas exemplos de palavras cuja origem e significado primeiros foram arbitrariamente esquecidos por nós. Esse esquecimento do que é distintivo, fruto da representação humana, é, em verdade, próprio do processo de formação de conceitos.

A formação de conceitos e a busca pela verdade serão os próximos assuntos a serem desenvolvidos por aqui. Por enquanto, nos contentaremos com a beleza e organização do mito: a potência ameaçadora dos conceitos.