quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Comércio


Eu fui trocada.


Trocaram-me por pés descalços a caminho do entardecer do amor,
Por pedaços de comida e sangue, cheiro do desconhecido, vaidade e armas.
Já fui trocada por palavras escritas, silentes, somadas, alheias
E me dei ao luxo de competir com o esquecimento e a discórdia.


Belas vestes já me substituíram, ao longo das minhas condições.
Medos e carícias, loucura, razão e todos os tipos de bebidas.
O vinho me roubou.
Os vícios do consentimento e as estátuas traíram-me.


A saudade retirou tudo o que, aos poucos, compusera-me.
Canções tomaram-me o lugar,
Olhares abaixaram-se, tristes, para além do meu eu.
Papéis voaram de mim, cortinas fecharam-se,
E remédios aliviaram a dor que eu causava.


Trocaram-me por camas quentes, joelhos sadios, mentes adestradas e pedras.
Da minha boca fez-se ausências, luares, mordidas, verdades, insetos.
As mentiras que contei foram tidas como sorrisos
e as lágrimas como câncer.

A doença caiu melhor que eu.
A madrugada era melhor companhia.
As rezas sabiam acalentar.
A bola era ideal.
Eu era a outra.


Eu já fui trocada por todos os tecidos, rumores, atrasos, comparsas, desertos, guitarras, chutes e automóveis.
As compras satisfazem mais.
As novelas distraem melhor.
Os pulsos são mais fáceis.



Trocaram-me até por um par de óculos!


E os meus cegos não percebem que ao confundir mistérios,
suas trocas -
mesquinhas, capitalistas -
refazem a amante religiosa em mim
ajoelhar-se para a gratidão do afastamento.


O inferno não são os outros.

O purgatório são os outros...
essa eterna espera posterior à troca e anterior ao adeus.

(Foto do Manto de Napoleão Bonaparte, tirada por mim, no Museu do Rissorgimento, em Milão.)