quinta-feira, 14 de julho de 2011

As cores da insanidade

Não compreendo o desejo que algumas pessoas têm de tudo querer enxergar. Parecem dispor de sensores ao invés de olhos, esses ciclopes modernos. Um passo em falso e lá estarão eles, para observar desvios e investigar deslizes. Não se utilizam do olhar senão como fonte de suspeita e punição; não suportam erros, não toleram delírios, não respeitam a ilusão. Possuem todos a postura ereta, tediosa e sorrateira de um Moisés, como se o diferente fosse necessariamente o indigno, como se o destoante fosse sempre um caluniador.



Como ilustres detentores de tábuas de leis que julgam acertadas, nossos belos homens de pedra, estrábicos de alma e espírito, se insurgem dialeticamente contra os desarrazoados, como se não houvesse razão na loucura, como se não houvesse loucura na razão. Tentam, diariamente, ajustar os olhinhos míopes, corrigí-los com lentes que aproximam e domesticam, sem compreender que não é necessário enxergar detalhes impostos para fazer parte do manicômio da vida.



Insistem em querer adestrar os astigmáticos e os presbíopes, sob a alegação de que o que vêem não corresponde a realidade. Para tanto, são desferidos os eletrochoques da moral taciturna, as terapias do poder, o blá blá blá retórico. Munidos de uma vestimenta branca que encarcera, tentam tornar saudáveis os supostamente enfermos; por meio da ingestão de drogas que retificam a visão, querem que os míopes e daltônicos enxerguem certas cores, sem saber que se trata, no fundo, de mera perspectiva.



Deitados nas camas da incongruência, apáticos, já com o olhar em repouso que alcança o horizonte, nossos outros, divergentes, são esquecidos, perdem o seu caráter de sujeito e passam a ser tratados como objeto, numa relação alienado-alienista que, aí sim, beira o patológico.



Nos asilos, nossos anormais eram depositados aos montes, como se a exclusão e o afastamento resolvessem o "mal" atribuído aos transtornados. Atualmente, com o advento da Lei 10.216/01 e por intermédio de uma tímida luta antimanicomial, essas instituições sombrias estão se extinguindo gradativamente, sendo substituídas por hospitalecos de curta duração. Tampão no olho alheio é refresco...



O que esses deuses da norma - que tudo vêem - não compreendem é que também é possível enxergar sem cor, já que a cor não é um fenômeno físico, é interpretação. Se não fosse a luz, não haveria cor. Entretanto, a espécie humana possui o requinte, ainda que restrito, da visão noturna - estratégia em muitos casos necessária para a sobrevivência, tanto dos certos quanto dos errados.



Quem deseja o infravermelho ético e a amplitude máxima da visão panorâmica não percebe o limite natural que seu olho possui. Não percebe que sua capacidade de enxergar e identificar objetos, ou seja, de racionalizar, se restringe ao seu corpo, ao pequeno sujeito observador que é, num universo de representação e interesse.



No fundo, a cegueira contempla bem mais aqueles que não hesitam em ver, aprisionados que estão em suas próprias retinas dogmáticas. Mal sabem eles, parasitas oftalmológicos, que a origem daquilo que entendemos, hoje, por conhecimento, por clarividência, está justamente ligada ao delírio e à loucura.



Em seus hospícios particulares, dopados pela sensação de onividência/onisciência, os ciclopes da modernidade continuam a batalhar contra os incontroláveis titãs que devaneiam. Na mitologia grega, Cronos foi rei dos titãs. No nosso folclore discrepante, também. Somente o tempo é capaz de relativizar visões sem a corrente da cegueira histórica. Somente o tempo, primitiva invenção, pode derrotar as lentes impostoras da oposição e da distância.