sexta-feira, 29 de julho de 2011

Como não te sonhar?

Como não te sonhar? Como não te sonhar?

Senhor das Horas que passam, Lord das águas estagnadas
e das algas mortas,
Deus Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras de rochedos estéreis - Livra-me da minha mocidade.

Consolador dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa - Livra-me da alegria e da felicidade.

Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono - faze com que eu seja odiada pelas mulheres e escarnecida pelos homens.
Címbalo da Extrema-Unção, Carícia sem gesto, Pomba morta à sombra, Óleo de horas passadas a sonhar - Livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte.

Lírio fanando à tarde, Cofre de rosas murchas, silêncio entre prece e prece - Enche-me de nojo de viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem.

Torna-me útil e estéril, ó Acolhedor de todos os sonhos vagos; faze-me pura sem razão para o ser, e falsa sem amor a sê-lo.

Ó Água Corrente das tristezas vividas; que a minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus gestos um esfolhar lento de árvores velhas -Ó Ladainha de Desassossegos,
Ó Missa de cansaços, Ó Ascensão!

Que pena eu ter de rezar (não que eu reze) como um homem, e não te querer como uma mulher, e não te poder erguer os olhos do meu sonho como Aurora-Ao-Contrário do sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu.

Rezo a ti, meu amor, porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amado, nem te ergo ante mim como santo. Que os teus atos sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação.

Como não te adorar, se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digno de amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás meu ali, num outro e puro mundo, onde sem corpo tátil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse?

Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei, te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo?

Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-te em ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?

Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de distância...

Posso amar-te e adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.

Sê o Dia Eterno e que os meus poentes sejam raios do teu sol possuídos em ti.
Sê o Crepúsculo Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras da tua incerteza.
Sê a Noite Total, torna-te a Noite Única e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação.

Cinza na tua lareira, importas que eu seja pó? Janela do teu quarto, que importa que eu seja espaço? Hora do teu horário, que importa que eu passe, se por ser tua ficarei, que eu morra se por ser tua não morrerei, que eu te perca se o perder-te é encontrar-te?

Realizador dos absurdos,
Seguidor de frases sem nexo.
Que o teu silêncio me embale, que a tua mão me adormeça,
que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte, ó Heráldico do Além, Ó Imperial Ausência, Pai de todos os silêncios,
Lareira das almas que têm frio, Anjo da guarda dos abandonados, Paisagem Humana e irreal de triste e eterna Perfeição.

Não te esqueças de mim e não te rias.

Sou vil, Sou fraca, mas antes de qualquer coisa, SOU VOCÊ.

Milena Tarzia e Fernando Pessoa.