quinta-feira, 25 de julho de 2013

Das ações possíveis - Parte III

PARTE III
Cedi o devido tempo para que este texto pudesse ser deliciosamente ruminado, fosse tomando seu Telos, seu destino, de grama verde, de digestão, e é por esse motivo que gostaria de decifrar mais alguns pensamentos antes de partir para o próximo tema que abordarei.
 
Quanto à importância da partip-ação do (des)sujeito na realização do ato, qual seria o seu papel se há diluição? Até que ponto há Eros e Neikos entre esses conceitos (sujeito-ação)?
Pensando metafisicamente seria mais fácil responder. Poderíamos apontar a “absolutez” do sujeito, inclusive quanto ao agir. Como exemplo, há inúmeros apontamentos, mas essa visão específica parece-me muito semelhante à de Fichte, que colocava o “Eu” (o equivalente a substância de Espinosa) como um absoluto, ou melhor, que pensava o absoluto com a estrutura da “egoidade”. Em Fichte, o “Eu” é simultaneamente “Das Thätige” e “Thätigkeit”, é sujeito e objeto, é aquele que age e o que é produzido pela atividade; é “Handlung” (ação) e “That” (fato) ao mesmo tempo. Dizer que se é não é nada mais que dizer “Thathandlung”. Nesse contexto, o “Eu” não deve ser entendido como “aquele que age” ou como “sujeito da ação”, mas como o puro agir (tun) – essência, agilidade.
Ora, nada mais metafísico, psicologista e desconcertante pensar o “Eu” como categoria absoluta, já que em seu absolutismo (unidade) o “Eu” não poderia ter consciência de si, porque a consciência é sempre consciência de algo, de um objeto (em Fichte, o “Eu” contém toda a realidade e fora dele não há nada – não há objeto algum e nem o “Eu” é objeto para si). Em outras palavras, não há consciência em Fichte, que equivale o conceito de sujeito aos conceitos de ação e de fato. Parece-me que Schelling, com o devido respeito às diferenças, também segue em caminho semelhante.
 
Não imagino que seja pertinente nos voltarmos à concepção de fato, porque já explicitei minha noção de temporalidade e hermenêutica anteriormente, bem como já apontei que meu contexto não tem nada de metafísico (na medida da tradição).
Chamo a atenção para a ausência de consciência em Fichte, mas não só: destaco a permanência da presença reflexiva e isso me desperta.
A reflexão, como a etimologia nos ensina, é um voltar-se a si; “reflexão” significa dobrar novamente, e isto explica o papel do Eros que, de fato, une o autor-ator-agente a si mesmo naquilo que desencadeia a vontade e a ação possível. Talvez Fichte quisesse somente dizer, na Fundação e nas Preleções, que é a reflexão a atividade pura originária, talvez. Mas Neikos tem também o seu lugar na ordem das coisas, na “archai”, de modo que esse autor-ator que reflete sobre sua condição tende a diluir-se, separar-se dessa intelecção, inserindo-se no que é externo a si, na alteridade, agindo... às vezes efetivamente, às vezes não. Por esse motivo indiquei anteriormente que o agir efetivo e possível é reflexivo originariamente.
Dito isto, acrescento ainda mais algumas indelicadezas.
 
Compreender o continuum circular do kósmos não é tão somente compreender um modelo de estrutura de tempo pensada pelo ser, nem uma certeza ética que recai em imperativos. Mencionei a etimologia da palavra reflexão justamente para que fosse visualizada essa temporalidade. A curva que proponho em meu contexto não é aquela prisioneira da reação e da reprodução, mas, sendo um círculo, não consistiria justamente em repetição do antigo ao invés de novidade destruidora? Refletir não é redobrar, voltar? Minha proposta de um agir efetivo e possível, ainda que fora da moralidade tradicional, não recairia num esquema linear que se toma como superação sempre nova de um passado rumo a um fim ainda por vir? Não. Vejamos.
Desassujeitado o ser (doente – do ente) enfraquecido resta-lhe o instante e a longa convalescença da enfermidade que o quis matar, mas que não o atinge mais profundamente, já que ele aprendeu a se proteger de certas tendências. É esta convalescença o anel circular em que oscilam Eros e Neikos. Convalescer significa recuperar-se, conviver com a doença, recuperando a saúde perdida. Convalescença é a cosmologia ético-estética do devir que proponho, não como saída ou alternativa para a problemática do agir (porque não há saída, conciliação, resolução – a doença é condição para a saúde), mas como condição de possibilidade de vida, de ação possível e efetiva e de cuidado de si.
Cuidadoso e revigorado, nosso criador se afunda, como dissemos, na multiplicidade. Portanto, não falamos mais em criador, mas em criadores. É interessante salientar que não são heróis, nem ideais a serem tomados como exemplos, padrões a serem seguidos, apesar da identidade do conteúdo trágico de suas relações... nossos colegas da pausa sabem de seus limites e compreendem o instante que os transcende, exatamente na medida em que refletem (dobram-se a si (uno) que agora é múltiplo).
Saber que a condição do ser humano é a de convalescença trágica é saber que não há possibilidade de redenção (esperança no por vir) ou conciliação. Explico melhor: na tragédia, como na vida, há o embate entre duas forças que não se sobrepõem; não há hierarquia entre elas, uma não é mais forte que a outra; elas se apresentam como opostas, conflitantes, como uma tensão entre potências equivalentes num duelo constante, infinito. Romper o elo que une esse conflito entre potências (hybris – excesso, ação desmedida) é romper com a própria vida.
Na tragédia, o herói que comete o excesso sofre o infortúnio, mas é também destino do herói sofrer o infortúnio (sua condição de mortal) já que ele é a figura “apta”, “preparada” para purgar, expiar, limpar a mancha, o erro cometido, livrando a comunidade da ira dos deuses. A pedagogia da tragédia, que floresce juntamente com os grandes tribunais gregos e é um gênero literário baseado numa escrita técnico-jurídica, é a de respeitar o limite intransponível da existência. A esse limite (Némesis) Camus deu o nome de absurdo. O absurdo é relacional: é Eros e Neikos na convalescença, é o elo que une o homem ao mundo, mas é também o divórcio, a fratura que separa. A única maneira de se relacionar com o mundo é por meio do absurdo e o único modo de suportar essa condição é vivendo, mantendo o absurdo em sua absurdidade, em sua ausência de Télos, sem romper com ele. A conduta possível e efetiva que corresponde a esse modo de viver no absurdo é a Revolta e é na convalescença irreversível que ela se dá.
 
A palavra Revolta vem do verbo em latim “revolvere”, que significa voltar para trás, dobrar, enrolar. Percebem? Revoltar-se é o agir reflexivo dos nossos calmos criadores. (Continua...)