PARTE III
Cedi o devido tempo para que este texto pudesse ser deliciosamente
ruminado, fosse tomando seu Telos, seu destino, de grama verde, de digestão, e
é por esse motivo que gostaria de decifrar mais alguns pensamentos antes de
partir para o próximo tema que abordarei.
Quanto à importância da partip-ação do (des)sujeito na realização do
ato, qual seria o seu papel se há diluição? Até que ponto há Eros e Neikos entre esses conceitos (sujeito-ação)?
Pensando metafisicamente seria mais fácil responder. Poderíamos apontar
a “absolutez” do sujeito, inclusive quanto ao agir. Como exemplo, há inúmeros apontamentos,
mas essa visão específica parece-me muito semelhante à de Fichte, que colocava
o “Eu” (o equivalente a substância de
Espinosa) como um absoluto, ou melhor, que pensava o absoluto com a estrutura
da “egoidade”. Em Fichte, o “Eu” é simultaneamente “Das Thätige” e “Thätigkeit”, é sujeito e objeto, é aquele que age e o que é
produzido pela atividade; é “Handlung”
(ação) e “That” (fato) ao mesmo
tempo. Dizer que se é não é nada mais que dizer “Thathandlung”. Nesse contexto, o “Eu” não deve ser entendido como “aquele que age” ou como “sujeito
da ação”, mas como o puro agir (tun)
– essência, agilidade.
Ora, nada mais metafísico, psicologista e desconcertante pensar o “Eu” como categoria absoluta, já que em
seu absolutismo (unidade) o “Eu” não
poderia ter consciência de si, porque a consciência é sempre consciência de
algo, de um objeto (em Fichte, o “Eu”
contém toda a realidade e fora dele não há nada – não há objeto algum e nem o “Eu” é objeto para si). Em outras
palavras, não há consciência em Fichte, que equivale o conceito de sujeito aos
conceitos de ação e de fato. Parece-me que Schelling, com o devido respeito às
diferenças, também segue em caminho semelhante.
Não imagino que seja pertinente nos voltarmos à concepção de fato, porque já explicitei minha noção
de temporalidade e hermenêutica anteriormente, bem como já apontei que meu
contexto não tem nada de metafísico (na medida da tradição).
Chamo a atenção para a ausência de consciência em Fichte, mas não só:
destaco a permanência da presença reflexiva e isso me desperta.
A reflexão, como a etimologia nos ensina, é um voltar-se a si; “reflexão” significa dobrar novamente, e isto explica o papel do Eros que, de fato, une o autor-ator-agente a si mesmo naquilo que
desencadeia a vontade e a ação possível. Talvez Fichte quisesse somente dizer,
na Fundação e nas Preleções, que é a reflexão a atividade
pura originária, talvez. Mas Neikos
tem também o seu lugar na ordem das coisas, na “archai”, de modo que esse autor-ator que reflete sobre sua condição
tende a diluir-se, separar-se dessa intelecção, inserindo-se no que é externo a
si, na alteridade, agindo... às vezes efetivamente, às vezes não. Por esse
motivo indiquei anteriormente que o agir efetivo e possível é reflexivo
originariamente.
Dito isto, acrescento ainda mais algumas indelicadezas.
Compreender o continuum circular do kósmos
não é tão somente compreender um modelo de estrutura de tempo pensada pelo
ser, nem uma certeza ética que recai em imperativos. Mencionei a etimologia da
palavra reflexão justamente para que fosse visualizada essa temporalidade. A
curva que proponho em meu contexto não é aquela prisioneira da reação e da
reprodução, mas, sendo um círculo, não consistiria justamente em repetição do
antigo ao invés de novidade destruidora? Refletir não é redobrar, voltar? Minha
proposta de um agir efetivo e possível, ainda que fora da moralidade
tradicional, não recairia num esquema linear que se toma como superação sempre
nova de um passado rumo a um fim ainda por vir? Não. Vejamos.
Desassujeitado o ser (doente – do ente) enfraquecido resta-lhe o
instante e a longa convalescença da enfermidade que o quis matar, mas que não o
atinge mais profundamente, já que ele aprendeu a se proteger de certas
tendências. É esta convalescença o anel circular em que oscilam Eros e Neikos. Convalescer significa recuperar-se, conviver com a doença,
recuperando a saúde perdida. Convalescença é a cosmologia ético-estética do
devir que proponho, não como saída ou alternativa para a problemática do agir
(porque não há saída, conciliação, resolução – a doença é condição para a saúde),
mas como condição de possibilidade de vida, de ação possível e efetiva e de
cuidado de si.
Cuidadoso e revigorado, nosso criador se afunda, como dissemos, na
multiplicidade. Portanto, não falamos mais em criador, mas em criadores. É
interessante salientar que não são heróis, nem ideais a serem tomados como
exemplos, padrões a serem seguidos, apesar da identidade do conteúdo trágico de
suas relações... nossos colegas da pausa sabem de seus limites e compreendem o
instante que os transcende, exatamente na medida em que refletem (dobram-se a
si (uno) que agora é múltiplo).
Saber que a condição do ser humano é a de convalescença trágica é saber
que não há possibilidade de redenção (esperança no por vir) ou conciliação.
Explico melhor: na tragédia, como na vida, há o embate entre duas forças que
não se sobrepõem; não há hierarquia entre elas, uma não é mais forte que a
outra; elas se apresentam como opostas, conflitantes, como uma tensão entre
potências equivalentes num duelo constante, infinito. Romper o elo que une esse
conflito entre potências (hybris –
excesso, ação desmedida) é romper com a própria vida.
Na tragédia, o herói que comete o excesso sofre o infortúnio, mas é
também destino do herói sofrer o infortúnio (sua condição de mortal) já que ele
é a figura “apta”, “preparada” para purgar, expiar, limpar a mancha, o erro
cometido, livrando a comunidade da ira dos deuses. A pedagogia da tragédia, que
floresce juntamente com os grandes tribunais gregos e é um gênero literário baseado
numa escrita técnico-jurídica, é a de respeitar o limite intransponível da
existência. A esse limite (Némesis)
Camus deu o nome de absurdo. O absurdo é relacional: é Eros e Neikos na
convalescença, é o elo que une o homem ao mundo, mas é também o divórcio, a
fratura que separa. A única maneira de se relacionar com o mundo é por meio do
absurdo e o único modo de suportar essa condição é vivendo, mantendo o absurdo
em sua absurdidade, em sua ausência de Télos, sem romper com ele. A conduta
possível e efetiva que corresponde a esse modo de viver no absurdo é a Revolta
e é na convalescença irreversível que ela se dá.
A
palavra Revolta vem do verbo em latim
“revolvere”, que significa voltar
para trás, dobrar, enrolar. Percebem? Revoltar-se é o agir reflexivo dos nossos
calmos criadores. (Continua...)