segunda-feira, 22 de julho de 2013

Das ações possíveis



Pontuo, desde já, que esse texto não foi produzido (não é objeto),  não tem finalidade determinada e nem direção certa. Seria obtuso de minha parte negar que ele seja direcionado ou direcionável; afinal, todo discurso, palavra ou linguagem tem um interlocutor (ainda que esse interlocutor seja eu mesma) e uma tendência, de modo que a direção a que me refiro não é a do espectador, leitor, assistente, receptor (que é óbvia - "a quem"), mas a do próprio télos, do sentido do que ouso expor: este texto não tem um sentido pré-determinado, ele faz (fará) sentido ao longo da leitura (recepção), e ele o faz precisamente porque o sentido é criação e contínuum (sem fim). 

Não é pretensão infante, como poderia soar para alguns receptores que passam a vida a resmungar, ásperos e petrificados em suas verdades, enfermos em suas certezazinhas,  mas uma afecção, simples vontade vital. Permitam-me explicar:

O ATO de realizar uma tarefa, de executar uma atividade - definido pelos nossos colegas gregos como práttein - encerrar-se-ia em si mesmo. Esse tipo de execução tem um final determinado, já que, ao se percorrer determinado caminho para a consecução, obtido o fim desejado, cumprido o objetivo que visa a um objeto, o ato é morto. Desta realização efêmera, acabada do ato, resolve-se, ou não, a vontade primária daquele que se pretende como agente no alcance do fim e, a isto, os gregos atribuem o substantivo práxis, certos de que agente, ato e resultado obtido são instâncias inseparáveis naquele contexto. Talvez o fossem, mas sabemos o que pensavam Platão e Aristóteles. Não é preciso apontar que no contexto em que este texto é escrito a noção de práxis não poderia ser a grega. Tomei a liberdade de chamá-lo, então, de meu contexto, mais brasileiro, bem italiano, às vezes alemão, às vezes português, em que pese a multiplicidade do que sou.

Meu contexto situa a ação fora dessa concepção de práxis, fora da utilidade/fabricação, ampliável ao limite do sujeito, inserida no diálogo e na continuidade da atuação. Falemos, portanto, daquilo que chamarei de ação efetiva e possível (que se distingue da reação e da reprodução), não tanto com o olhar do sujeito ansioso e moderno, mas com a lentidão da reflexão contemplativa que, longe de se distanciar da reflexão ativa, a complementa. Digo isso porque o labor cotidiano irreflexivo e maquinal do sujeito moderno não coincide com o que chamo de ação, uma vez que está condicionado por necessidades biológicas, de conservação e sobrevivência, ao consumo. Produz-se para consumir e continuar a consumir. [Abro colchetes para chamar atenção ao fato de que o labor reflexivo, contínuo e que transcende a tais necessidades pode, eventualmente, se caracterizar como ação efetiva - vai depender da autoria, da autoridade do realizador]. No mais, o labor cotidiano nos impele a uma relação de dominação e hierarquias sociais, intra-humanas,  em que o efetivo e o possível estão aprisionados numa teia estável massificante do não ser. Nesta teia de relações nós não somos, nós apenas existimos para produzir atitudes e atividades consumíveis, repetidas, de curta de duração (resultado do labor é perecível), num ciclo artificial que não é o da vida, daquilo que penso ser vida, mas que é o da utilidade e necessidade, sob o âmbito social ou público. O mesmo se pode dizer do processo de fabricação, que não é propriamente o do labor - e que muitas vezes se identifica erroneamente como arte - mas o do constructo que se encerra no objeto produzido - processo  típico da sociedade atual de produção-produto, realização-finalidade, com a peculiaridade de ter relativa duração na teia dos edifícios e artifícios modernos porque visa ao fixar-se,  e que se sustenta não propriamente na sujeição do sujeito, como no labor, mas na agressão à natureza.

Mas e a ação efetiva e possível? Como ela pode se dar afastada do labor rotineiro e da fabricação final (que não é criação)? Ora, a ação possível só é realizável no espaço humano que é do conflito de potências; entretanto, ela não possui rotina, hábito ou pré-definição, de modo que, nessa perspectiva, ela é original. Ela é também contínua, porque não é final. Trata-se de uma novidade, de um modo de ser, de um comportamento de iniciativa do sujeito que se vislumbra inserido numa multiplicidade, em contato com outros possíveis agentes que, assim, interagem. Ação efetiva é, sim, sinônimo de interação. É importante frisar que à essa ação (efetiva) deve preceder incisivamente uma reflexão: uma reflexão não necessariamente sobre a direção ou finalidade da ação, mas sobre a própria vontade, desejo, paixão que a origina imprevisivelmente. A vontade é a responsável pelo impulso ao agir, e é por esse motivo que podemos dizer que toda crença ou hábito, de certa forma, é uma pré disposição ao agir. No entanto, esse impulso não é só fruto de uma vontade que impera, mas de uma conexão instantânea  entre pensamento e ato.

Não considero adequado, como fazem os ásperos ranzinzas, arbitrariamente separar impulso, ação e discurso, ou ação e reflexão, sob pena de se tornar a ação mera reação (re-ação, repetições de uma mesma atividade ou conduta vazia, e não originalidade ou novidade, ou ação que só se inicia pela indução, condicionada pelo ato inicial que a provocou e que se desdobra em resposta-vingança) ou reprodução (como vimos, fabricar ou produzir bens em nada coincide com o que chamo de ação efetiva; menos ainda o re-produzir, o redobro, caracterizando-se como repetição do resultado final obtido, produto).

A antecipação da reflexão ou simultaneidade do discurso é inerente ao agir efetivo porque a comunicação e o pensamento são "lugares" de alteridade e singularidade e, portanto, de interação. A palavra necessita da presença e é precisamente o diálogo que se molda como o campo do agir efetivo e possível, que não foge à persuasão retórica, mas, ao contrário a enfrenta. Não é a toa que a lexis grega era também uma práxis. Opto, nesse texto que se contextualiza meu, nem pela razão pura, nem pela razão prática, porque me são monológicas (não interagem); opto pela intelecção dialógica, que é a da linguagem falada ou escrita, porque é ela que revela quem eu sou e aquilo que me é verossímil (que não tem relação com a verdade), incitando minha particip-ação no mundo. Sem a intelecção discursivo-reflexiva a ação deixaria de ser ação, porque não haveria o papel do ator-agente e, nesse sentido, me parece verossímil a doxa da Arendt de que o ator só é possível se for autor. 

Autor, autoria, autoridade não são só formas de se conceber um discurso, mas modos de promover o próprio desassujeitamento daquele que conduz o canal comunicativo que é plural, e isso ocorre pela hermenêutica indissociável ao lexo do autor que é o ator-agente da ação efetiva. A autoridade dialógica é plural e aberta por natureza - daí a hermenêutica lhe permitir somente a multiplicidade do possível, do verossímil e do provável, ao contrário da autoridade tética que se baseia na lógica do verdadeiro-falso. É por essa razão que a tragédia não se configura somente como novo gênero literário na Grécia antiga, mas como visão de mundo que se coloca diante do possível. A felicidade trágica consiste na vivência e na experiência de diluição do assistente, e não na representação do ator mascarado, já que ele é simultaneamente espectador e ator pela katharsis. Seja sob o prisma da purificação, seja sob a ótica da punição ou do prazer, a tragédia como discurso e como visão de mundo (que se funda na hybris e na pedagogia do limite) é a manifestação de dissolução do sujeito no êxtase ou comunhão plena e alegre do público com o mundo (dor). Compreender que ora se é espectador, ora se é participante, ora se é co-autor e ora ator-autor é o primeiro passo para um agir efetivo e possível,  neste palco que está aí, antes e depois de nós (por isso há continuidade, pelo devir).

O que me toma e me afeta, e a afecção também é um sintoma para o despertar da ação, no entanto, mais que a necessidade reflexiva e mais que a compreensão dialógica da atuação, é a irreversibilidade da ação. O que foi feito está morto, encerrado, consumado e não se pode desfazer (sob pena também de se recair em reação ou reprodução) ... mas o que deixou de ser feito num tempo próprio, a inércia fatal, a inação contundente também se impõe como fim último, sem retorno, sem possibilidade para todo e qualquer além. 

Observem o belo paradoxo:

Ao inerte estagnado, ao menor alienado que se conduz pelo agir alheio (reprodução por covardia, massificação imposta ou ausência de vontade), ao empreendedor imóvel que não é ator, nem autor de si, resta-nos a hermética lástima do insuportável e habitual não ser. Para aqueles que interagem, é exatamente o irreparável, o inapreensível, o imutável que torna a ação efetiva um continuum no tempo, uma hermenêutica e uma possibilidade sem fins. Agir de modo a respeitar a vontade no continuum, o limite do irreversível, é ampliar as probabilidades, é criar, dotar de significado, doar-se em união, ser. É desejar-se como um tipo de vida que vai além, é superar-se. (Continua...)