PARTE IV
O pensamento também tem suas necessidades e limites, e a paciência é o
caminho que optei em seguir quando resolvi unificar as primeiras sílabas deste
texto. Tudo estava jogado, apartado e eu tornei próximo. O trajeto vagaroso a
que me propus vem sendo delineado constantemente, diariamente, no jubiloso
exercício da revolta reflexiva.
Colegas que ruminam comigo: trata-se de um exercício porque a
convalescença como cosmologia ou pensamento só nos é inteligível se tomada como
“sehnsucht”, orientado por um “suchen” e por um “streben” sem fins.
Dito de outro modo, mais abrasileirado: a revolta é o agir reflexivo
possível da convalescença porque ela se fundamenta em si mesma. Nada exterior a
ela resiste ao absurdo, de forma que ela tira suas razões de si – daí a
importância da etimologia da palavra latina. A revolta é um retorno a si, que
se examina e se conduz por si, assim como o anseio, a tendência infinita, o
desejo que nunca cessa, o desejo de desejar o (in)desejável, que só encontra em
si mesmo a plena saciedade; que é Trieb
(pulsão), que se sabe Trieb e que se orienta por uma busca interminável (que se
sabe sem Telos e sem um final
objetivo a ser alcançado) que nada mais é que um redescobrimento,
redesvelamento constante do novo (em nada se relaciona com a “pleonexia”). Soa paradoxal para os olhos
e ouvidos que não captaram a noção de limite que indiquei. Não se trata de
repetição circular do antigo, da grecidade, mas de um encontrar (encontro –
união - Eros) incessante do novo. Descobrir é de si mesmo, aprender pertence a
outro, e só descobre que procura.
O fluxo da revolta é o fluxo trágico de Eros e Neikos na
convalescença da physis. A natureza é
vida que pulsa e cria eternamente (sem princípio e fim), é movimento dinâmico,
e, como Trieb, é jogo móvel, instável
de forças que, ora estão em ordem, ora em desordem. Quando a physis é harmônica diz-se que isto é bom
e daí deriva a sensação do bem (bem-estar/prazer) e daquilo que designamos por
saúde, saudável.
Àquele que não é autor-ator-agente
criador revoltoso de si, encontrar um princípio
saudável equivale a encontrar uma âncora a partir da qual o ser se auto-engendra e assegura sua
permanência na mudança, sua identidade na diferença, sua unidade na multiplicidade.
Contudo, o revoltoso sabe da inutilidade de se tentar fixar no fluxo plural da
convalescença, mas é a isso, precisamente, que damos o nome de vida: fluxo
dinâmico, tenso e intenso, de caótica pluralidade de potências (polares ou não)
que se chocam e nunca tendem ao repouso (morrer não é repousar).
Ter saúde, nesse sentido, é equilibrar as potências opostas, é moderação.
Entretanto, não se trata de conciliar estas potências, amenizá-las ou sintetizá-las,
como costumeiramente os médicos da
filosofia tradicional fizeram, mas, ao contrário, parece-me que é preciso manter
a tensão, o choque entre os extremos, a dinâmica natural, fazendo apenas com que
não haja, temporariamente, hierarquia entre elas – esse é o conceito de saúde
que imagino ser adequado ao meu contexto.
[Exemplo de pares: o úmido e o
seco, o doce e o amargo, o quente e frio.]
Quando, porém, há a predominância de uma destas forças, nós (a physis, já que não nos concebo separados
dela) adoecemos – isso é visível quando pensamos num resfriado. A morte tem seu
lugar quando múltiplas forças sobrevêm, e o confronto deixa de ser “justo”,
equânime. Se há o domínio de uma força sobre a outra, há doença; se há o
domínio de várias forças sobre uma só, há morte, destruição.
Vivemos, portanto, no universo da violência eterna e generalizada em que
ter saúde significa amenizar a dinâmica da tensão cosmológica em que vivemos (e
não mantê-la, ou suportá-la), significa diminuição de potencialidade, ou seja,
redução da saúde. Hoje, ser saudável é não ter saúde. E a felicidade? Ora, ser
feliz, para mim, só é possível se soubermos que a felicidade é a pura expressão
de um estado harmônico de manutenção da tensão e resistência ao violento: é o
estado da conveniência na convalescença. A própria noção de justiça (dikê)
também se relaciona, como citei, com a concepção de que saúde é proporção, é “justa
medida”, ordem, lei, bem como a matemática, que surgiu como ciência que investiga
o número, signo do quantificável, do dimensionável e do harmonioso. A saúde
antiga era isonômica, mas moderna, que é monárquica, que visa à salvação, à
resolução, que não aceita a vida como imperfeito
jamais perfectível, como “Sehnen”*
infinito no finito é a grande epidemia que assola nossas determinações e
experiências.
Novamente, indico ao leitor, companheiro da calma, que não me deixo
tomar por reducionismos drásticos. É indubitável a relevância de se buscar a
unidade na multiplicidade, a ordem no caos – por e para isso temos as milhares
de instituições que sustentamos. Todavia, minha crítica é direcionada aos que
tomam a iniciativa da injunção e ao imediatismo dialético e racional da nossa
vontade de compreender, que não podem amortizar o fluxo vital da existência. A
saúde científica moderna nos sugere justamente como cura a imposição de uma
potência sobre a outra, de um domínio sobre outro, quebrando o movimento
natural e negando a “eukrasia”. Como
foi dito, a pedagogia trágica do meu contexto nos ensina que proporção e
equivalência (que não é igualdade) deveriam ser o limite, e não a ruptura ou
abreviação do combate.
No mais, poderiam me questionar se eu não estaria a pensar numa tensão
capitalista-positivista-evolucionista-progressista (e mais todos os “istos” e “ismos” possíveis) entre potências, em que a potencialidade mais forte
sempre vencerá a mais fraca. Não. Repito: na cosmologia curva da convalescença
não há superioridade e previsibilidade entre as potências, porque elas são equivalentes.
Neste contexto, o bem não é superior ao mal, nem a saúde à doença ou o quente
ao frio. Noite e dia são ambos fecundos e necessários em suas múltiplas
singularidades; tudo tem o seu lugar, sem ter uma causa prévia ou um efeito
imediato. Esses opostos se enfrentam sem uma “meta”, sem um objetivo a ser
alcançado, porque são puras Trieb’s;
essas pulsões se afrontam, só pelo fato de que querem viver, exceder, tomar,
serem a si mesmas; só porque são vontades, nada mais. São inimigas apenas
porque desejam ser. Percebem a importância da alteridade? Sem essa dinâmica da
violência, só haveria totalidade, unidade plena e infinita, ou seja, nada
existiria.
O clima (a temperatura) é o ambiente do conflito, o lugar do embate em
que saúde e doença se manifestam e o reflexo dessa manutenção de potências é a
criação (vida) e a degeneração (morte), união e separação dos quatro elementos
(ar, terra, fogo e água) – Eros e Neikos em manifestação.
Num outro sentido, a doença se relaciona sempre com o excesso ou com a carência
(abundância ou falta) de alguma potência, ou seja, com a desmedida entre as
forças. Trata-se de um momento, movimento, de um estado, portanto, em que ou temos
(physis) muito ou temos pouco; um estado
de pobreza e de riqueza. Um estado quantificável, matemático (logístico e
aritmético), que recepcionamos como mal e como sofrimento. Estar doente é
sofrer porque se está pobre ou rico de algum elemento; a medicina se insere
nesse meu contexto como a ciência redentora que visa a solucionar conflitos quase
econômicos, curar a hybris ou a
miséria naturais.
Ora, se afirmei que meu contexto é o da convalescença cósmica, significa
que eu aleguei que vivemos atualmente num estado em que a physis se recupera e se fortalece o tempo todo. A physis fraca volta-se a si mesma para
resgatar sua força pedida. Em outras palavras, vivemos NO instante da doença,
em que desejamos infinitamente (Sehnsucht
e Streben), porque carecemos de
algo constantemente e nunca estamos plenos, satisfeitos, completos. Somo pobres
e nos alimentamos por isso, porque temos fome ininterruptamente. Sem alimento,
sem forçarmos a nossa continuidade, ela se encerra – daí o amor à pobreza.
Existir é o movimento funcional de querer continuar a ser, sabendo da
inevitabilidade do fim indesejado. Trágico é não ter solução.
É a nossa insaciedade insana, demasiada penúria elementar, insuficiência
plúrima e total, que nos leva à doença moderna do existir - e também o excesso
nos infla, nos engorda, nos deixa fartos, infartos, nos enche (e não preenche)
e incha com seu vigor e ambição de totalidade. Meu contexto é de respeito tanto
ao exagero quando à deficiência, porque entendo que viver – hoje - é estar
doente (e não saudável, como poderia se pensar), abstinente, convulsionado. E
imagino que meus amigos do lento saibam que minhas palavras não lhes trarão
conforto, alívio ou iluminação.
Com os devidos méritos, creio que a medicina não salva. Ela não faz mais
que tentar conciliar o inconciliável. É uma área de investigação louvável, porque
é aquela que visa ao harmônico, ao equilíbrio; mas falamos de estados, de
momentos (de tempo, portanto), de instantes, de fluxos instáveis intermináveis
em que o equilíbrio (que se quer constante) não passa de mera aparência. Ela
não é o divino que purifica. Heráclito já nos ensinou, lembram? E é também por
esse motivo que me parece que as terapias (e isso inclui as que se auto-intitulam
psicológicas) não são mais que placebos mentais.
A ordem do mundo é a do corpo e vice-versa, e ela comporta todo o
caráter destrutivo da recepção e todo o caráter construtivo da doação – a isso
não há taumaturgia; é puro paradoxo. Cito Heráclito como contraexemplo: “Pois todas as coisas são semelhantes (“homoia”),
embora diferentes (“anomoia eonta”); compatíveis (“sumphora”), embora incompatíveis
(“diaphora”); em diálogo (“dialegomena”) sem dialogar (ou “dialegomena”); dotadas
de inteligência (“gnômen echonta”) sem a ter (“agnômona”). O modo de cada um é
oposto embora esteja em concordância; o costume e a natureza, pelo quais nós fazemos
tudo, não estando em concordância, concordam, todavia.” Os opostos de
Heráclito estão em guerra permanente, mas é fundamental identificar que a guerra
nada mais é que um mecanismo de destruição e restabelecimento dos equilíbrios
rompidos.
Se vivemos em permanente e maníaco conflito bélico-natural, no tempo da
enfermidade crônica do existir, cabe experenciá-lo em sua máxima potencialidade,
sem subterfúgios, sublimações ou “panem
et circenses”, sabendo respeitar o limite dessa relação (o absurdo híbrido)
no círculo da convalescença catártica, por meio da conduta revoltosa. Não é
tempo de higiene e de mistura simétrica das qualidades! Indigentes que somos
sempre, inseridos no fluxo do imperfeito
jamais perfectível, que é o da necessidade fugaz, cedemos a Neikos o seu lugar na “apokrinesthai”, e seu tempo de “Kairos”, apenas para constatar que
dispomos em nós mesmos dos meios necessários à manutenção do equilíbrio
comprometido. O cuidado de si é permanente e é este o exercício ético-estético
de revolta reflexiva que nos permite experimentar e reconhecer possibilidades e
limites tanto do micro quanto do macrocosmo - além de ter o sono tranquilo!
(Continua...)