terça-feira, 30 de julho de 2013

Das ações possíveis - Parte V


PARTE V
O desejo de unir-se ao todo, de reconciliação dos extremos (os opostos se atraem) é próprio do ambiente humano. Falarei deste humano, tão ambíguo, mais adiante. Por enquanto, cabe destacar mais alguns pontos do anel da convalescença, no que concerne ao harmônico e ao desarmônico da physis.

Hipocráticos que são, nossos médicos da filosofia utilizaram de um artifício de fuga para substituir mýthos (de tradição oral) e instaurar logos (discurso, palavra escrita): o pharmakón, a droga que é ora remédio, ora veneno. Pode ser antídoto ou toxina. Pode ter função de cura ou de moléstia degenerativa.

O pharmakón socrático-platônico que perdura na tradição é o grámatta (os caracteres escritos), visto, também, às vezes como dádiva, às vezes como mal, como o perfume que desagrega a ordem da physis, transformando o cosmo em cosmético. Quem coordena o grámatta é o interlocutor de um discurso (logos) morto, porque a escrita é somente representação da fala – mímesis -, daí não termos escritos propriamente socráticos, porque Sócrates só fala, não escreve. O caráter negativo da escrita, na Grécia arcaica pré-socrática, de tradição oral, é compreensível, já que ela representa apenas rememoração, e não memória. Confiar no escrito significava somente voltar-se a um assunto por razões externas, por sinais, e não pelo assunto em si mesmo. A fala era conhecimento e a escrita apenas repetiria, sem nada saber. Pharmakéus que é, Sócrates é aquele que detém o poder de manipular o mistério do phamakón-grámatta, na maiêutica, tentando neutralizar potências.

A droga que mascara o discurso filosófico platônico-aristotélico e o atual é justamente a que citei anteriormente, aquela que, julgando-se sintética, saudável, fomenta, no fundo, a determinação de uma força sobre a outra. Exemplo disso foram os pharmakói, das tragédias gregas. Nos ritos de purificação, eles eram sacrificados ou expulsos das cidades, porque se configuravam como o mal encarnado, materializado; eram vistos como uma espécie de “coincidentia oppositorum”, contendo potencialmente em si o bem e o mal, o justo e o injusto, o puro e o impuro, heterogêneos, indefiníveis. Circundados pela ausência de credibilidade, já que carregavam em si a desmedida, tinham de ser imunizados (mortos) ou isolados (exílio), a fim de que a ordem não fosse perturbada. Pharmakói não tem identidade, e isso assusta, ao menos no início, o grego do século V a.c.

Há uma leitura do pharmakói como o louco, o insano, o maníaco, o alienado, que não detém a si mesmo, e se tutela pelo outro. Contudo, não me parece uma leitura adequada, já que nem nas tragédias, nem na transição entre mýthos e logos podemos falar em subjetividades, em indivíduo (ao menos segundo essa noção moderna e liberal de sujeito consciente e responsável de si). Não aprofundarei o tema da individualidade porque escrevo um texto em separado sobre isso.

Voltemos ao viciado e maníaco (a mania, o delírio, é fonte do discurso filosófico em sua origem primeira, no ritual de mistérios) discurso platônico. O que Platão nos remete é a um escrito mimético, com resquícios de mýthos que, ao refletir sobre a verdade e a falsidade dos juízos, descobre que a cópia guarda alguma verdade em relação ao seu modelo; a cópia não é ele, o modelo, mas tem participação nele. Há uma verdade na cópia, diria Platão; inferior ao modelo, mas dependente e participante deste (eidos/eidolon). Se participa, de certo modo, também é o modelo. Digo isto em razão de a tragédia (anterior a Platão) ser encenação, imitação, representação que, longe de ser falsidade, sempre redobra (escondido) o que é, não sendo o que redobra (daí a novidade).  

O agir reflexivo é semelhante, se pensarmos que não é reprodução (fabricar novamente), nem reação (agir de igual modo novamente ou resposta-vingança), mas revolta trágica. Assim como a chôra tem seu lugar de receptáculo na tragédia, explicada pela máscara que cria a imagem transmitida pelo poeta, a verdade da revolta está no mimetismo da representação (não é por acaso que Camus, como dramaturgo, valoriza a figura do ator). O ator é aquele que, ao representar, coloca uma presença que não ela mesma, imageticamente, de modo que, na verdade, não se trata exatamente de um re-apresentar, mas de uma re-presença (ausências presentes).

A imitação, sob o ponto de vista dos gregos, já que é deles que estamos falando, é uma ação fabricadora, uma téchne, e ela perde seu valor diante da racionalidade do filósofo que a subtrai como verdade. Mas, como vimos, essa ação não é falsa, já que ela carrega, como num espelho, a presença do outro, e o poeta trágico é aquele que inaugura esse novo gênero literário que não é só escrito, mas falado em palco, recitado. O modo mítico de revitalização, de tornar o ausente presente se desdobra numa atemporalidade, não indica cronologia alguma e isso é tarefa de difícil compreensão para nós, modernos. Dois mitos ilustram muito bem essa imagem: Sísifo e Prometeu.

Sísifo é o trabalhador dos infernos. Mortal, de Corinto (um corintiano!), condenado por Zeus, ele é obrigado a rolar uma pedra até o cume de uma montanha. Toda vez que ele atinge o limite, o alto da montanha, a pedra rola para baixo novamente e ele tem de carregá-la até o topo, indefinidamente, sucessivamente, eternamente. Representa o operário que vive rotineiramente a inutilidade de todos os seus esforços.

Prometeu é o titã acorrentado, pelo Cronida, numa pedra entre o Tártaro e o Hades. Também a pedra representa (ainda hoje) uma fronteira, um limite, uma demarcação, um perímetro territorial, geográfico. Prometeu, ao doar o fogo aos mortais, ultrapassou um limite e por isso se encontra em zona fronteiriça, num abismo. Limites e castigos são temas trágicos por excelência, mas também atuais. Como se sabe, a ave devora o fígado do titã, que se regenera e vem a ser devorado novamente, num ritmo sem fim.

Nos dois mitos, a repetição infinita é um pharmakón (não deixa de ser grámatta na modernidade) venenoso para o pensamento, porque é transmitida pela racionalidade histórica como ausência de movimento. Ora, se vida é movimento, a repetição nos remeteria, então, ao morto, à ausência de vida – o que é paradoxal, já que repetir não é outra coisa senão movimento! O que nos aparece engessado é, na verdade, o lado criador do humano, a vertente da abertura (novo), e é justamente essa abertura que lutamos, repetidamente, para conquistar. Reabilitar o sentido do mito como manifestação do divino que há em nós é tarefa ainda a ser conquistada.

A convalescença do meu contexto, permeada pelo movimento de aproximação e afastamento (Eros e Neikos), não se utiliza de medicamentos ou drogas que camuflam o sentido da abertura. O recuperar-se é natural das potências. Permitam-me explicar o que entendo por abertura e, talvez, o movimento de Eros e Neikos se torne ainda mais claro (aberto).

O agir técnico que mencionei, voltado ao labor, formou um modo próprio de o homem observar o cosmos e a si mesmo. Aquilo que o homem crê, não porque sacraliza, mas porque calcula, racionaliza, deduz – esse olhar científico – é pharmakón-grámatta também. Pode ser uma grandeza, mas pode o levar também ao maior fracasso. Esse olhar-agir moderno considerou-se sempre, viciosamente, uma grandeza.

Voltemos ao mito, ou melhor, à “Teogonia” e “Os Trabalhos e os dias”, de Hesíodo. Nessas obras, Hesíodo nos ensina que, de acordo com o mýthos grego, a raça humana, dos mortais, não nascida ou criada por deuses, veio ao mundo como a raça viril e guerreira. Nasciam da terra e nela morriam (do pó ao pó). Em outras palavras, os humanos e mortais que constituíam tal raça primeira eram apenas os homens, o masculino. Mas e as mulheres nessa cosmologia? Ora, a mulher, o feminino, surge como raça (génos gynaikôn) posteriormente, como uma raça secundária, tendo sua origem no castigo e nos males do mundo: Pandora (o belo-mal: kalón-kakón).

O feminino é posterior ao masculino e, sendo fabricação dos deuses, tem algo deles: fabrica seres dentro de si mesma. A raça viril e guerreira tem de aprender a lidar com a diferença divina: os homens fabricam objetos numa téchne de exteriorização que perpassa por todo um trajeto de conhecimento, mas a mulher, essa novidade, cria sem o conhecimento do ser.

Ela é temida porque é tida como um ardil, como uma ilusão (Apaté), como algo forjado pelos deuses, fonte de dores e prazeres. É mal porque é dependência. A partir da fabricação de Pandora que disseminou o mal, as mulheres passaram a fabricar homens dentro de si que dependiam dela para a sobrevivência. No mito, assim viam os homens essa nova raça criadora e, secundária, ela teve grudada a si os valores determinados pela raça que a antecedeu. Dos deuses aos homens, elas foram moldadas pela gênese viril e, ao invés de compreenderem-se como fonte criadora e divina, seguiram a visão dos castigados. O feminino foi pharmakón porque deliciava os homens, mas também os assustava. Os homens receberam a diferença como mistério a ser desvelado e como punição (imposição de força). Em Hesíodo, a mulher não é a “Grande mãe” – eis a diferença; ela é autogeradora, é mãe de si e se torna mãe da tribo viril e guerreira, é dominadora ou quer sê-lo, e impõe aos viris o castigo do nascimento. Nos tempos prometeicos, o masculino era a unidade, baseada em philia e andreia. A raça feminina rompe a unidade primária, é Neikos em movimento, é novidade (apesar de imitar os deuses) e abertura... e é negada pelos homens (Continua...)