PARTE V
O desejo de unir-se ao todo, de reconciliação dos extremos (os opostos
se atraem) é próprio do ambiente humano. Falarei deste humano, tão ambíguo,
mais adiante. Por enquanto, cabe destacar mais alguns pontos do anel da convalescença,
no que concerne ao harmônico e ao desarmônico da physis.
Hipocráticos que são, nossos médicos da filosofia utilizaram de um artifício
de fuga para substituir mýthos (de tradição
oral) e instaurar logos (discurso,
palavra escrita): o pharmakón, a
droga que é ora remédio, ora veneno. Pode ser antídoto ou toxina. Pode ter
função de cura ou de moléstia degenerativa.
O pharmakón socrático-platônico
que perdura na tradição é o grámatta
(os caracteres escritos), visto, também, às vezes como dádiva, às vezes como
mal, como o perfume que desagrega a ordem da physis, transformando o cosmo em cosmético. Quem coordena o grámatta é o interlocutor de um discurso
(logos) morto, porque a escrita é somente
representação da fala – mímesis -, daí não termos escritos propriamente
socráticos, porque Sócrates só fala, não escreve. O caráter negativo da
escrita, na Grécia arcaica pré-socrática, de tradição oral, é compreensível, já
que ela representa apenas rememoração, e não memória. Confiar no escrito
significava somente voltar-se a um assunto por razões externas, por sinais, e
não pelo assunto em si mesmo. A fala era conhecimento e a escrita apenas
repetiria, sem nada saber. Pharmakéus
que é, Sócrates é aquele que detém o poder de manipular o mistério do phamakón-grámatta, na maiêutica, tentando
neutralizar potências.
A droga que mascara o discurso filosófico platônico-aristotélico e o
atual é justamente a que citei anteriormente, aquela que, julgando-se
sintética, saudável, fomenta, no fundo, a determinação de uma força sobre a
outra. Exemplo disso foram os pharmakói,
das tragédias gregas. Nos ritos de purificação, eles eram sacrificados ou
expulsos das cidades, porque se configuravam como o mal encarnado,
materializado; eram vistos como uma espécie de “coincidentia oppositorum”, contendo potencialmente em si o bem e o
mal, o justo e o injusto, o puro e o impuro, heterogêneos, indefiníveis.
Circundados pela ausência de credibilidade, já que carregavam em si a
desmedida, tinham de ser imunizados (mortos) ou isolados (exílio), a fim de que
a ordem não fosse perturbada. Pharmakói não
tem identidade, e isso assusta, ao menos no início, o grego do século V a.c.
Há uma leitura do pharmakói como
o louco, o insano, o maníaco, o alienado, que não detém a si mesmo, e se tutela
pelo outro. Contudo, não me parece uma leitura adequada, já que nem nas tragédias,
nem na transição entre mýthos e logos podemos falar em subjetividades,
em indivíduo (ao menos segundo essa noção moderna e liberal de sujeito
consciente e responsável de si). Não aprofundarei o tema da individualidade
porque escrevo um texto em separado sobre isso.
Voltemos ao viciado e maníaco (a mania, o delírio, é fonte do discurso
filosófico em sua origem primeira, no ritual de mistérios) discurso platônico.
O que Platão nos remete é a um escrito mimético, com resquícios de mýthos que, ao refletir sobre a verdade
e a falsidade dos juízos, descobre que a cópia guarda alguma verdade em relação
ao seu modelo; a cópia não é ele, o modelo, mas tem participação nele. Há uma
verdade na cópia, diria Platão; inferior ao modelo, mas dependente e
participante deste (eidos/eidolon). Se participa, de certo modo, também é o
modelo. Digo isto em razão de a tragédia (anterior a Platão) ser encenação,
imitação, representação que, longe de ser falsidade, sempre redobra (escondido)
o que é, não sendo o que redobra (daí a novidade).
O agir reflexivo é semelhante, se pensarmos que não é reprodução
(fabricar novamente), nem reação (agir de igual modo novamente ou
resposta-vingança), mas revolta trágica. Assim como a chôra tem seu lugar de receptáculo na tragédia, explicada pela
máscara que cria a imagem transmitida pelo poeta, a verdade da revolta está no
mimetismo da representação (não é por acaso que Camus, como dramaturgo,
valoriza a figura do ator). O ator é aquele que, ao representar, coloca uma
presença que não ela mesma, imageticamente, de modo que, na verdade, não se
trata exatamente de um re-apresentar, mas de uma re-presença (ausências
presentes).
A imitação, sob o ponto de vista dos gregos, já que é deles que estamos
falando, é uma ação fabricadora, uma téchne,
e ela perde seu valor diante da racionalidade do filósofo que a subtrai
como verdade. Mas, como vimos, essa ação não é falsa, já que ela carrega, como
num espelho, a presença do outro, e o poeta trágico é aquele que inaugura esse
novo gênero literário que não é só escrito, mas falado em palco, recitado. O
modo mítico de revitalização, de tornar o ausente presente se desdobra numa atemporalidade,
não indica cronologia alguma e isso é tarefa de difícil compreensão para nós,
modernos. Dois mitos ilustram muito bem essa imagem: Sísifo e Prometeu.
Sísifo é o trabalhador dos infernos. Mortal, de Corinto (um
corintiano!), condenado por Zeus, ele é obrigado a rolar uma pedra até o cume
de uma montanha. Toda vez que ele atinge o limite, o alto da montanha, a pedra
rola para baixo novamente e ele tem de carregá-la até o topo, indefinidamente, sucessivamente,
eternamente. Representa o operário que vive rotineiramente a inutilidade de
todos os seus esforços.
Prometeu é o titã acorrentado, pelo Cronida, numa pedra entre o Tártaro
e o Hades. Também a pedra representa (ainda hoje) uma fronteira, um limite, uma
demarcação, um perímetro territorial, geográfico. Prometeu, ao doar o fogo aos
mortais, ultrapassou um limite e por isso se encontra em zona fronteiriça, num
abismo. Limites e castigos são temas trágicos por excelência, mas também
atuais. Como se sabe, a ave devora o fígado do titã, que se regenera e vem a
ser devorado novamente, num ritmo sem fim.
Nos dois mitos, a repetição infinita é um pharmakón (não deixa de ser
grámatta na modernidade) venenoso para o pensamento, porque é transmitida pela
racionalidade histórica como ausência de movimento. Ora, se vida é movimento, a
repetição nos remeteria, então, ao morto, à ausência de vida – o que é
paradoxal, já que repetir não é outra coisa senão movimento! O que nos aparece
engessado é, na verdade, o lado criador do humano, a vertente da abertura
(novo), e é justamente essa abertura que lutamos, repetidamente, para
conquistar. Reabilitar o sentido do mito como manifestação do divino que há em
nós é tarefa ainda a ser conquistada.
A convalescença do meu contexto, permeada pelo movimento de aproximação
e afastamento (Eros e Neikos), não se utiliza de medicamentos ou drogas que camuflam
o sentido da abertura. O recuperar-se é natural das potências. Permitam-me explicar
o que entendo por abertura e, talvez, o movimento de Eros e Neikos se torne
ainda mais claro (aberto).
O agir técnico que mencionei, voltado ao labor, formou um modo próprio
de o homem observar o cosmos e a si mesmo. Aquilo que o homem crê, não porque
sacraliza, mas porque calcula, racionaliza, deduz – esse olhar científico – é pharmakón-grámatta também. Pode ser uma
grandeza, mas pode o levar também ao maior fracasso. Esse olhar-agir moderno
considerou-se sempre, viciosamente, uma grandeza.
Voltemos ao mito, ou melhor, à “Teogonia”
e “Os Trabalhos e os dias”, de Hesíodo. Nessas obras, Hesíodo nos ensina
que, de acordo com o mýthos grego, a
raça humana, dos mortais, não nascida ou criada por deuses, veio ao mundo como
a raça viril e guerreira. Nasciam da terra e nela morriam (do pó ao pó). Em
outras palavras, os humanos e mortais que constituíam tal raça primeira eram
apenas os homens, o masculino. Mas e as mulheres nessa cosmologia? Ora, a
mulher, o feminino, surge como raça (génos
gynaikôn) posteriormente, como uma raça secundária, tendo sua origem no
castigo e nos males do mundo: Pandora (o belo-mal: kalón-kakón).
O feminino é posterior ao masculino e, sendo fabricação dos deuses, tem
algo deles: fabrica seres dentro de si mesma. A raça viril e guerreira tem de
aprender a lidar com a diferença divina: os homens fabricam objetos numa téchne de exteriorização que perpassa
por todo um trajeto de conhecimento, mas a mulher, essa novidade, cria sem o
conhecimento do ser.
Ela é temida porque é tida como um ardil, como uma ilusão (Apaté), como algo forjado pelos deuses, fonte
de dores e prazeres. É mal porque é dependência. A partir da fabricação de
Pandora que disseminou o mal, as mulheres passaram a fabricar homens dentro de
si que dependiam dela para a sobrevivência. No mito, assim viam os homens essa
nova raça criadora e, secundária, ela teve grudada a si os valores determinados
pela raça que a antecedeu. Dos deuses aos homens, elas foram moldadas pela
gênese viril e, ao invés de compreenderem-se como fonte criadora e divina,
seguiram a visão dos castigados. O feminino foi pharmakón porque deliciava os homens, mas também os assustava. Os
homens receberam a diferença como mistério a ser desvelado e como punição
(imposição de força). Em Hesíodo, a mulher não é a “Grande mãe” – eis a
diferença; ela é autogeradora, é mãe de si e se torna mãe da tribo viril e
guerreira, é dominadora ou quer sê-lo, e impõe aos viris o castigo do
nascimento. Nos tempos prometeicos, o masculino era a unidade, baseada em philia e andreia. A raça feminina rompe a unidade primária, é Neikos em
movimento, é novidade (apesar de imitar os deuses) e abertura... e é negada
pelos homens (Continua...)