domingo, 23 de setembro de 2007

Antes, eu era uma rua.
Aqueles que caminhavam, me pertenciam.
Alguns me visitavam todos os dias, mas eu não entendia o porquê da partida deles.
Até o dia em notei que eu só servia de passagem e que meus ombros, doloridos, eram a base de seus pés.
Tudo o que faziam era pisar-me todos os dias.
Eu tinha alma de sarjeta.

Foi quando a minha vida transformou-se em enchente. Em água que cai do céu e corre para o mar. E eu?
Eu me tornei mar.
Sou eu, agora, o traiçoeiro. São as minhas ondas que vêm e vão.
Ninguém mais pode pisar em mim, nem mesmo os profetas.

"Navegar é preciso, viver não é preciso”.

Uns escolhem a primeira opção. Escolhem, mesmo sabendo que esse mar é bravo, perigoso... que ele nunca traz de volta aquilo que leva. Que ele e sua correnteza tentam sempre afundá-los, que ele quer os ver afogados nele. Portanto, não reclamem!
Eu escolhi a segunda opção.
Porque o meu mar é morto.
Porque a vida de marinheiro é tão solitária...
E nem pescar já é possível, no meu mar.
Quando eu navego pelo imenso oceano de mim mesma, encontro um ou outro pescador... mas eles têm sempre a barriga vazia.

Triste por ter um mar negro, eu chorei, chorei e chorei; mas as minhas lágrimas não são azuis nem cristalinas.
O único sal que sinto é o das minhas lágrimas.
O meu mar não tem peixe, não tem vida, não tem cor.
É um eterno afogar de mágoas, águas passadas.
É a calmaria da espera da chegada dela.

Eu escolhi a segunda opção justamente por não suportar ver-te afundar; porque eu quero que "o bom filho à casa retorne".
Quero a segunda opção porque eu já naveguei; e quero-a, mais ainda, porque eu sou um oceano de mentira.
Quero porque meu mar é morto, porque meu mar é negro, porque meu mar é torto.

Eu nasci só para mim.

09/2005