domingo, 23 de setembro de 2007

Rua sem saída

RUA SEM SAÍDA

Abria seus olhos lentamente, com o piscar cansado e com a sensação de ter a alma espancada.
Acordou de um sono pesado e mortal que a atingira por toda uma vida. Levantando-se rapidamente, como se o chão gelado cortasse uma de suas vértebras, ainda ofegante, olhou para os lados a procura de uma resposta aparentemente inexistente. Diante de seus olhos:
a claridade invadia uma sala sem teto.

Não sabia o que fazia ali, tampouco como havia chegado ou porque dormia. Sabia que aquele local lhe era familiar, talvez, uma lembrança distante, de algo distraidamente observado e inesquecivelmente absorvido por seus olhos de menina. Era como um “dejá vù”; sentiu-se estranhamente dissimulando, vivendo uma vida que já fora sua.

Em sua direção, havia uma placa. A menina encontrava-se longe demais para enxergar o que a placa transmitia.
Já em pé, procurou pisar lentamente, não queria atrair a atenção para si. Mas logo percebeu que estava sozinha. Não havia ninguém ali, apenas ela.

Atrás da placa, uma parede. Atrás de si, outra parede e, de ambos os lados: paredes. No alto dos muros, lanças refletiam e apontavam para o infinito. Ao aproximar-se da placa, tropeçou em um carrinho de brinquedo. De fato, alguma criança o esquecera, mas como? Como uma criança poderia ter estado ali? Era definitivamente impossível. Um cubículo, uma caixa sem tampa, um recipiente... sim, sim.. era assim que ela se sentia: um rato de laboratório, uma cobaia. As paredes pareciam comprimi-la. “Um esmagamento tirânico-cerebral?” – pensou.

Aproveitando a queda, olhou para cima e conseguiu ler o que continha a placa: RUA SEM SAÍDA
Súbita, uma gargalhada ecoou pelo cárcere mental, lembrando a garota de que nada poderia ser mais óbvio. Era claro que ela estava presa e não havia como escapar. O chão era de um cimento transparente indestrutível que, ironicamente, refletia o céu sobre seus pés e as paredes pareciam aço. “Cercada pelo céu?” – pensou.
Não poderia escalar porque era pequena demais para muros tão elevados; corria o risco de cortar-se com as lanças privativas do desejo.

Olhava para o alto e sentia-se cada vez menor diante da imensa materialidade cotidiana. Mas, porque diabos a acompanhavam a placa e o carrinho? Sentiu o suor escorrer-lhe a face e enxugou-o com sua camisa azul. Era sua cor predileta e era a cor do carrinho de brinquedo. Sentou-se e resolveu pensar numa maneira rápida e eficiente de escapar daquela prisão de alma.

“Rua sem saída”, “carro”, o que tudo aquilo significava? Teria importância o sentido das coisas ao seu redor? Teriam, de fato, sentido?

A partir de então, jurou para si que iria desvendar o sentido. Alguns vivem em busca de felicidade, outros procuram o amor. Tolice! A garota, mesmo não enxergando, decidira procurar e descobrir um sentido para sua existência. Sim, as coisas ao redor tinham suas significações particulares. E qual era a sua significação? Porque ela se encontrava em tal situação? O que fizera para merecer tal fardo? Seria um castigo? Uma provação? Um acaso? Um mero acidente?

Sabia que a placa significava toda conduta moral imposta, toda cultura padronizada de épocas infindas, toda lama sacerdotal insistente em pregar cruzes, todo lixo intelectual torturante e viscoso, todo vômito blasfemador das bocas podres dos crédulos. E lá estava a placa, à sua frente; nada poderia fazer para mudar aquela realidade, tinha de enfrenta-la. Mas, sabendo que tudo aquilo era apenas a idéia de uma placa, procurou desfazer em seu cérebro tal imagem e significado.

A placa sufocante tentara asfixiar os objetivos da pequena, mas perdeu-se em sua própria tentativa de conversão. A garota elevava seus pensamentos e a placa fatalmente deixaria de existir, não mais faria parte daquela realidade obscura. Com placa ou sem placa, seu aprisionamento era o mesmo. Com um semi-sorriso no canto dos lábios, pôs-se a fitar a placa, imaginando sua destruição. Não tinha forças físicas para transformar a significação da placa, mas tinha forças mentais suficientes para explodir a biosfera.

Forçando um esquecimento, tentou apagar de sua mente a imagem da placa do destino. Ela sabia que tudo não passava de símbolo, representação. EUREKA! Era isso! A garota estava aprisionada em suas próprias convicções e a única maneira de se libertar era repensar os valores e condutas até então tidas como úteis e ideais.

De repente, lembrou-se do carrinho. O carrinho era a representação de sua vida. Pequena demais para tais ruas, inofensiva, cíclica, finita, imperceptível. Aquele carrinho de brinquedo era ela: frágil, utilizável apenas para diversão alheia e infantil, sem motor, sem força, disponível a qualquer um que a empurrasse.

Afogando-se em lágrimas, começou a gritar. Era preciso gritar para que alguém ouvisse. Alguém poderia existir além das muralhas de sua escravidão. Mas suas palavras foram ditas ao vento: “NÃO! CANSEI DE BRINCAR DE VIVER!”


Certo. Sabia da prisão, do significado do carrinho (sua vida) e da placa (seu destino). Mas, destruir a placa era a atitude correta? Deveria acabar com seu destino ou modifica-lo? Cansada de toda a ladainha cerebral, encostou-se num cantinho do cárcere e olhou para o céu. Uma criança jamais sairia dali. Talvez sua mentalidade fosse infante demais.

Vestiu-se de silêncio para captar sons vindos de fora, mas houve reciprocidade. Atenta a qualquer sinal, avistou um ponto verde do outro lado da sala, era uma borracha, um apagador.

Não. Seria muito fácil apagar a legenda da placa. Novamente foi tomada por um riso sarcástico. Como poderia apagar o que leu se já tinha apagado a própria placa? Foi mais rápida que sua mente. Ela mesma projetara a borracha e nem sequer precisou de tal arma.

Refletiu a tarde toda e, quando o dia insistiu em cair, ela começou a enlouquecer. A noite não tardava, a fome a corroia, precisava escapar da prisão de suas convicções, do confinamento perpétuo do espírito.

Apenas um fantasma seria capaz de vencer aquelas barreiras, mas ela estava viva e, mais ainda, esta era uma das crendices que ela também tinha de escapar, de derrubar, de enterrar. “Fantasmas não existem” – pensou. “E eu? Existo? Isto é real?” - repetia para si com a mão na garganta. “Sim. Eu existo para mim”.

Tomada por pensamentos sublimes, lembrou-se de um trecho de sua escritora predileta: “Mas, se o que está embaixo cresce, dolorosamente ou não, é a afirmação de que há esperança e de que há possibilidade de melhoria. De que é possível mudar, de que somos mutáveis. E se assim é, não precisamos que ninguém nos mude ou tente nos salvar. Nós mesmos temos capacidade de superação”.

Superar a si, crescer, elevar-se! Alcançar a liberdade.... liberdade... asas...e... lágrimas novamente! Voar!!! Era isso que ela precisava!

Jogou longe a borracha, partiu o carrinho ao meio e decidiu fazer o seu próprio destino, uma nova vida. Chega de memórias, ela clamava pelo desconhecido! Fantasmas e crianças mentais, eram predadores disfarçados. Nada poderia detê-la. A garota nascera para voar.

A vontade seria sua asa e lhe ensinaria o primeiro salto para além do confinamento. Longe do cárcere mental, longe da prisão de alma, longe das convicções parasitas, ela poderia ser ela.
Guiada pela vontade de superação, a garota tornou-se o que sempre fora: NUVEM.
Logo, suas lágrimas transformaram-se em gotas de chuva e ela se dissipou no predileto azul do infinito.

04/2005