domingo, 23 de setembro de 2007

A gravata da culpa

Caminhava como ainda hoje caminho.

Os pés um tanto tortos, herdeiros de um aleijão que aos onze se fez presente; resquício manco de um divertimento cruel. Já eram quase oito e as minhas máquinas-de-levar-adiante puseram-se a trabalhar, e eu, escrava de mim mesma, segui-as como pude, num ritmo calmo e lento de quem jamais chegará ao fim do percurso. O vento esbarrava em mim, como se quisesse impedir meus passos. O sol, covarde, ocultou-se em nuvens escuras, fugindo de meus olhos inquisitórios. Apenas mais uma manhã que o tempo me levaria, mas que a memória brutal martelaria até que me sustassem todas as sensações. Por existirem, ainda, algumas poucas, meus tímpanos gritaram-me cores estridentes de um latido asfixiado.

Pobre animal.


Não lhe pouparam nem mesmo a voz. Que mordaça invisível era aquela que tentava cobrir o animal com o manto do consentimento? Eu, escrava minha, curiosa que sou, pendi minha trêmula cabeça para o lado esquerdo, a espera de ouvir novos sons, bordados de rouquidão, vindos do cão por detrás de mim. O cão, como eu, parecia não saber de suas escolhas, e corria para árvores, e corria para postes e corria sobre a terra e o cimento, para todos lados, como se quisesse que nada lhe escapasse às vistas, ao cheiro, ao toque. Às vezes, urinava, gritando: “isto é meu!”, de tão adestrado e humano que se tornara. Também, às vezes, tentava latir para o cão alheio cumprimentando e exibindo a liberdade que imaginava ter.

Tornei a olhar adiante, ouvindo ainda as tentativas frustradas e exibicionistas do rouco animal de quatro patas. Faltava-me oxigênio só de olhar para tal pescoço, se é que se pode dizer que aquilo era um pescoço. Ao redor do pelo branco, liso e macio daquele bicho, havia várias mãos de metal, entrelaçadas, contraindo-lhe a vida e a voz. Uma verdadeira coroa de pescoço para um rei destituído de trono. Elos que se buscavam, uns aos outros, ciclicamente, simbolizando o infinito aprisionamento de nós, cães. A corrente, que estava mais para forca, nada mais era que uma arma, um objeto ao qual os súditos devem reverenciar-se e obedecer. Inocentes os cães que pecam sem saber. Inocentes os homens que sabem por pecar. Culpados os cães e homens que sabem da inexistência do pecado e que, mesmo assim, se submetem a ele, porque o pecado é apenas a ausência de freios para atos que nos revestem de nossa intensa capacidade de ser o que somos.

São essas, as mesmas correntes que durante anos serviram de chicote nas mãos dos capatazes, para marcar ao longo do tempo e da vida, a história e as costas de vários de nós. São essas, as mesmas correntes que arrastam os fantasmas do nosso inconsciente, teimando em afirmar os nossos terríveis anseios e as nossas antigas paixões, assombrando o pouco ar que nos resta. São essas, as mesmas correntes que envolvem nossos portões, para forjarmos a nossa segura inquietude perante o mundo acidental, ou, como quiserem, violento, para enterrarmo-nos em nosso cárcere diário-sem-fim.

Também eu sou um animal de quatro patas, apesar de equilibrar-me sobre duas. E tais correntes também não diferem das minhas, das nossas, coleiras da vida. Asfixiados, latimos em vão para ouvidos inexistentes, na esperança de que as ondas da angústia confinada se propaguem pelo espaço que nunca foi nosso, na esperança de que essa falsa liberdade obtida torne-se a liberdade sonhada, ausente de gravatas, colarinhos, símbolos e coleiras. Pouco a pouco, nos faltam as vozes, e o hábito, velho adesivo, senta-se em nossa mesa e come o resto de alimento que ainda há em nossas almas, e então, somos reduzidos a cães como o de acima, felizes por sair da toca e por ter donos que nos propiciem segurança e comida, mas com a eterna certeza de que sempre haverá, em volta, uma coleira que nos quer sufocar.