terça-feira, 25 de setembro de 2007

Pequenina





Às vezes sinto o cheiro do cloro da piscina, quando de domingo à tarde, eu ficava na beiradinha, esperando pelo almoço.
O sol nunca me atraiu;

Na praia, eu sempre fugia dele.

O calor me deixa irritada e minha pele, frágil, não agüenta a energia. Também nunca suportei a água. Não gostava de quando via meus dedos enrugados, não gostava de me sentir peixe, nem de sentir frio.
Eu gostava da piscina, não por ela aliviar meu calor, mas por tudo que ela me representava numa tarde quente de domingo.



Nada de missas.



Domingo era o dia da Mpb, do choppinho, da bóia de braço, dos saltimbancos, de andar de bicicleta na pracinha, tomar picolé na padaria, sentir cheiro de caipirinha, pensar no churrasco, brigar com o irmão e ver os avós.


E era em volta das piscinas da minha vida que tudo isso acontecia.

Em casa, no sítio, no clube de campo, na praia, era sempre ao redor da água que eu passava os melhores momentos.


Logo de manhã, eles liam os jornais e eu já me preparava com a toalha. Depois, mamãe ia para a cozinha preparar aperitivos e o almoço. Ele ia para a piscina, beber caipirinha e tomar sol. Às vezes me obrigava ao exercício - hoje, eu detesto polichinelo. O melhor exercício era com as bóias... como eu adorava minha bóia de estrelinha!! Hoje, eu até penso que ela era americana demais: uma estrela branca, cheia estrelinhas menores pintadas de vermelho e azul. Mas era tão bom montar nela!! Meu irmão tinha um bote, cheio de indiozinhos... mas ele era laranja, eu nunca gostei de laranja.



Eu gostava dessa bóia de estrelinha porque ela não apertava meu braço... eu ficava dentro dela e não sentia medo de afundar.


Hoje, eu não tenho nenhuma bóia ou estrela que me faça sentir segura em não afundar.


Enquanto eu rodopiava na piscina, na sala tocava Chico, Vinícius, Elis e todos os outros grandes músicos que aprendi a cortejar. Eu tinha a fita dos saltimbancos e quando ouvia: "au au au, ia ió, miau miau miau, có có ró có" já saía pulando pela casa! "Nós gatos já nascemos pobresss, porém, já nascemoss livress"... quantas saudades!!


Hoje, a fita deve estar perdida em algum fundo de gaveta, empilhada, esquecida... inútil.


Depois do almoço e da sesta deles, um mundo de brincadeiras me esperava. Eu gostava muito de brincar de profissões: vendia roupas, era farmacêutica, caixa de supermercado, garçonete. Garçonete era a minha preferida... se pudesse, ficaria servindo eles o tempo todo.


Hoje, não admito servir a mim mesma.


Geralmente, a gente ia para a pracinha, ali perto de casa mesmo. Andava com a minha bicicleta azul, com rodinhas brancas atrás; eu ainda tinha medo de cair.

O medo durou pouco e logo eu já andava sobre duas rodas. Hoje, tenho medo de cair.


No meio de todos esses sorrisos, havia as brigas com meu irmão, que deixavam tudo mais infante e colorido. Havia os "Comandos em ação", as cabaninhas, o trenó feito de colchão para escorregar pelas escadas e, é claro, os sorvetes. O besta era tão tímido que, na praia, eu, menorzinha de tudo, é que tinha de pedir os picolés para o sorveteiro ou ligar para o disk-lanches.


Eu gostava muito da sacada e da rede. Ficar olhando a lua e as estrelas pela luneta, na sacada, à noite, e depois deitar na rede, não tem preço. Quando transformaram a sacada em escritório, eu tive vontade de chorar... mas era só uma sacada. Quando eu cresci e não cabia mais na bóia, eu tive vontade de chorar, mas era só uma bóia. Quando tudo acabou, eu tive vontade de chorar... mas não pude, não tinha mais idade para chorar. E, hoje, também não me permitem chorar.

Depois de tudo isso, às vezes tinha o sítio ou a casa da vovó nésia.


Eu confesso que eu gostava mais da casa materna.


Na casa do vovô Aires, tinha bala de todos os tipos, tinha música clássica (apesar da vovó assistir ao programa do Sílvio Santos) e um quintal enorrrmeee, cheio de árvores, frutas e mistérios.
E tinha a URBA também. Eu e ele vivíamos pulando o muro e inventando facetas como Indiana Jones. Também tinha o Mercedez, que eu adoravaaa fingir que dirigia e a mecânica do Tio, que eu achava meio sombria.

Mas a casa da vovó nésia era diferente.

Eu consigo me lembrar, depois de dez anos ou mais, do cheiro do sofá, do tecido da cortina, do ladrilho gelado, da mesa de pedra no centro da sala, da roupa do vovô quando eu abraçava ele, da cadeira de estofado colorido da cozinha, do gosto do arroz dela, da água do filtro, do cheiro de arruda quando ela me benzia, do brinco que ela usava, da pele flácida nos braços e no pescoço, do regadorzinho vermelho, do cheiro de remédio no quarto do vovô, da edícula que vivia trancada e de quando eu fantasiava existir monstros ali. Eu poderia descrever a casa, eles, a comida e os momentos com todos os detalhes possíveis. Hoje, tudo isso ainda mora em mim, vive. E eu não pretendo esquecer.


Quando eu chegava, tinha um portãozinho baixo, azul-claro, e a gente logo ia entrando. Já de cara, encontrava a escada - que eu adorava escorregar pelo corrimão. Antes de subir, do lado esquerdo, tinha uma mini piscininha, um laguinho que sempre ficava vazio e eu nunca entendi o porquê. Mas sempre havia uma piscina ao redor!


A porta tinha umas grades entrelaçadas, era branca e era de vidro também. Tinha uma parte de vidro que abria entre as grades. O piso era de madeira e fazia barulho se alguém usasse salto alto.

Os sofás eram marrons, algo parecido com couro e as almofadas eram um pouco ásperas, com desenhos meio alaranjados e amarelados. Tinha cheiro de coisa antiga.


O telefone fazia um barulho engraçado e era cinza, daqueles de ter que girar. A mesinha do centro, era branca e de pedra, geladaaa... eu sempre fazia a lição de casa ali. Tinha uma T.v. e, em cima dela, alguns porta-retratos: meu priminho Vinícius e meu primo Fábio, com meu irmão no colo, se não me falha a memória. Eu gostava da T.v., mas não por ela. Meu avô, sempre quando eu ia visitá-lo, deixava uma balinha ou um chiclé escondidos atrás do porta-retrato, em cima da T.v. Ele me chamava de "Chica" e pedia para eu procurar um presentinho... e eu sempre encontrava. Como eu adoro bala chita de abacaxi!!


O banheiro era todo branco e tinha almofadinha na privada! Eu adorava aquilo. Sempre media a qualidade dos restaurantes pelo banheiro... e quando tinha almofadinha... era diferente!


O gostoso da cozinha era o arroz. Quantas e quantas vezes eu chegava e ia direto para a geladeira comer arroz gelado da vovó nésia? Tinha também uma dispensa... que eu não gostava muito, era apertada. E logo em seguida tinha o escritório do vovô.


Ele vivia consertando e construindo coisas. Tinha livros e papéis e gavetas e armários. Mas o mais legal de tudo era o palhacinho que ele construiu para mim e para o meu irmão. Era uma caixinha de madeira, com cara de palhaço e, bastava você apertar um botão, que o nariz do palhaço se acendia. Ali também era o local da vovó brincar de saci no escuro. Eu morria de medo quando ela colocava o fósforo dentro da boca, entre os dentes e imitava o saci.


Depois tinha a área de serviço e o quintal. Na área havia uma mesa de madeira, velha e meio úmida. Nessa mesa ela me sentava e, com um galhinho de arruda, me benzia. Eu não entendia bulhufas do que ela dizia baixinho e nem sabia por que ela fechava os olhos. No fundo, eu achava engraçado, mas gostava do cheirinho. Lembro da textura, das rachaduras da mesa... eu me sentia bem.

Logo depois da benzedeira, tinha o quintal, cheio de frutas e coisas para se fazer e brincar. Meu avô tinha uma espécie de oficinazinha ali, uma pequena marcenaria. E eu tinha uma lousinha, um regador vermelho e um velotrol. Também tinha um corredor por ali, meio estranho, que ia dar na garagem... era onde ficavam os botijões de gás. Era legal para brincar de esconde-esconde.

Hoje, a casa não existe mais, nem as pessoas que nela viviam.


Hoje, eu nem moro mais por lá.

Mas só eu sei como é maravilhoso não esquecer isso.

Só eu sei qual o gosto do arroz, o cheiro do sofá, a maciez da cortina. E isso, ninguém pode me tirar.

Não me permitem chorar, não me permitem cair, afundar. Não me permitem ser eu mesma.
Mas enquanto eu tiver memória, olfato, audição, visão e tato para viver, enquanto eu puder guardar tudo o que vivi dentro de mim, eu me permitirei.

Hoje, só hoje, eu quero ser Milena.