domingo, 23 de setembro de 2007

Esse eu escrevi aos 18 anos, logo quando me mudei para Maringá.

Uma mansão.

Uma mansão perdida no tempo e no espaço e para todo o sempre.
Ficava na rua da saudade, na estação das luzes, a quilômetros e quilômetros distante do mundo dos crentes... esse mundinho fútil, pequeno e vazio em que todos vocês, canibais, vivem.
Ela morava sozinha naquela mansão. Era a dona de tudo aquilo. Toda a mansão lhe pertencia, lhe fazia parte. Era sua, por mais triste e distante que fosse.

Paredes brancas, limpas e altas. Dezoito quartos. Uma enorme sala de jantar e uma minúscula sala de estar... porque ela não gostava de estar. Um banheiro que cheirava eucalipto lembrava-a da casa de seus avós; e uma cozinha de mármore e antigas cadeiras que era pra ela se deliciar com tudo aquilo que não sabia fazer, mas que sonhava, um dia, em aprender.

Todos os dezoito quartos eram iguais. Possuíam uma cama, um tapete, uma porta, uma janela e uma cortina. Os tapetes, todos vermelhos, e as camas enormes, com colchas floridas, pareciam esperar incansavelmente o eterno hóspede. Ali permaneciam como se ele fosse chegar a qualquer momento. E então ele pisaria, deitaria e ali seria feliz.
Portas abertas, grandes cortinas amarelas abertas, janelas abertas, tudo pronto para o hóspede chegar e o relógio a tocar no corredor e a lembrar a criança de que o tempo passava, passava, e ele não chegava, ele não voltava. Senhor das horas que passam... Tempo...

Todos os dezoito quartos eram iguais, exceto por um, o quarto central. O quarto que dividia a casa e a criança em duas infinitas metades.
Esse quarto possuía um tapete branco; uma cama pequena, de solteiro; uma cortina azul-marinho que vivia fechada, assim como a janela de vidro. A porta permanentemente trancada, porque ali, nem o hóspede nem ninguém, poderia entrar. Compreendem? A mansão era do hóspede, mas aquele quarto, ao menos aquele quarto de simplicidade máxima e coragem mínima, aquele era verdadeiramente seu. E só ela possuía a chave... A chave da vida.

Em uma noite do dia 20 de setembro, calor infernal, borboletas na luz, do ano de 2004 a.H (antes do hóspede), ela sentou; respirou um ar de poeira, de história, de coisas antigas; comeu um chocolate (Há mais metafísica que comer chocolates?) e pegou na mão suja a chave da vida que estava escondida embaixo de um dos tapetes vermelhos no qual o hóspede não mais pisaria.
Resolveu que ninguém mais pisaria em sua vida, muito menos na chave. Só no tapete talvez, mas ela não era tapete, era chave!

Subiu as escadas, tremendo, ofegante, mordendo os lábios, como se aquilo fosse matar ou morrer. Cada degrau, cada passo, era um passo a mais em sua vida. A escada em espiral era íngreme e difícil. Trinta degraus para que ela alcançasse ela. Trinta degraus de evolução, prosperidade, realidade, verdade e finalmente, descobertas.

Colocou a chave dourada na fechadura, parou alguns segundos e pensou nos 28 anos de quarto fechado. Deveria estar imundo, sujo, inabitável; o tapete branco deveria estar preto, a cortina: caída, a madeira da cama: podre. Pensando nisso, ela lembrou-se de que havia um espelho no quarto. Como ela poderia ter esquecido aquele espelho? O espelho que mostrava toda a beleza de sua juventude? Como estaria o espelho? Trincado? Sujo?
Parou de pensar e resolveu agir.

Com lágrimas nos olhos, abriu devagarzinho a porta do quarto esquecido e escutou com calma aquele barulhinho que só portas antigas e únicas fazem. Pisou no chão gelado com o pé esquerdo porque sempre fora de esquerda. A direita era para os fracos.
Com a alma doendo, alcançou o tapete branco que ainda era branco como no último dia de sua vida. Respirou novamente, chorou novamente, e deitou na pequena cama sua que nada tinha de podre. Ali sonhou por uma hora todos os sonhos do mundo. Não conseguia desgrudar a cabeça daquele travesseiro de lembranças e saudades. E o relógio do seu passado continuava a tocar no corredor...

Levantou-se e, como se pisasse em nuvens, foi até o espelho: seu oráculo.
Que triste imagem era aquela? Que triste imagem era aquela! O que os anos fizeram com ela? O que eles lhe roubaram? A frieza do tempo levou a vida daquela criança que só queria ter um hóspede e um quarto seu. Quantos tic-tacs ela teve de ouvir pra que aquele momento chegasse? Pra que ela descobrisse que o quarto era dela e que hóspedes vêm, mas sempre vão embora? Eles sempre têm de voltar...
Olhando para o espelho, tocou o seu rosto como em uma despedida e depois tocou o espelho para tentar crer (seu mundo não era o dos crentes) que aquilo era verdade, que ela era a culpada por sua própria desgraça.

Foi em direção a janela, abriu a cortina do azul do esquecimento que não estava caída, e deixou que a luz mais dura entrasse e lhe penetrasse as veias. Queria ver o chão gelado brilhar, o espelho refletir, a cama desbotar. Queria ver o relógio quebrado.
A janela de vidro permanecia fechada e a luz não era o suficiente. Da janela a criança avistou praias, casas, pomares, campos, cachoeiras, avistou prédios, pessoas vivas e mortas, carros, outras crianças sozinhas e perdidas, aviões, mansões e quartos esquecidos... e avistou um caminho de terra.

Ela abriu a janela de vidro com as duas mãos, escutou com calma o barulhinho único que só janelas como aquela faziam. Respirou o ar mais gélido e puro que alguém possa sentir. Abriu a boca na esperança de engolir e se tornar ar. Fechou os olhos, esqueceu as lágrimas e pensou em tudo aquilo que havia perdido, em tudo aquilo que a vida havia lhe tirado. O quão a vida tinha lhe sido injusta e ingrata. Deixou o passado se dissolver em suas entranhas...
Olhou para o caminho de terra, pensou em ir embora. Olhou para a janela e viu os caminhos que as gotas de chuva ali deixaram. Manchas brancas que se aderiram tanto à janela que sem essa já não seria possível existir. As gotas secaram, mas deixaram sua marca. E o que a criança deixaria se partisse?

Um vento soprou, ardendo seus olhos, e fez com que ela despertasse.
Como se acordasse de um sonho ou um pesadelo, ela enxugou as lágrimas, fechou a janela de vidro manchada de vida, fechou as cortinas que caíram em suas mãos. Deixou a cama desarrumada. Deixou o espelho trincado e o tapete preto que ainda era preto como no último dia de sua vida.
Saiu do quarto com o pé esquerdo, suspirou e trancou a porta novamente, com a certeza de que aquela não era a chave da vida, mas da morte.
Engoliu a chave com a mesma vontade com que havia engolido o chocolate de metafísicas. Ela precisava guardar aquilo dentro de si porque, assim como a gota passou pela janela, ela tinha de passar pela vida, mesmo que a vida já estivesse impregnada de mansões mal-assombradas e hóspedes sem fim.
Quebrou o relógio e morreu.


Corpo de distância e saudade...

Acho que tenho fixação por janelas.