domingo, 23 de setembro de 2007

Morte


Sobre a paralisia de uma cadeira azul, imóveis queixo e dor, dispenso o cigarro e apago minhas dúvidas.
Nesta noite de sábado nu, com os pés descalços para a frieza de um chão ausente que um dia há de ter-me, penso na impiedosa sombra da perda: descobri que a morte é uma ave de rapina.
Ela sobrevoa nossas vidas, com visão aguçada e fome voraz. Escolhe a presa suculenta e, quando menos esperamos, ela crava suas garras afiadas em nossos peitos jovens e nos faz sufocar. A morte é a águia do mito de Prometeu, que pouco a pouco, arranca aos pedaços nossos restos de vida e nos condena à prisão da inexistência. Essa é a pena, essa é a punição do tempo; substantivo que insistimos em adequar às nossas classificações mesquinhas e humanas, quando não nos resta sequer um retorno. Não, não há saída. A eternidade é uma pequena rua vazia e sem saída.
É só então que um corredor de memórias invade a cabeça dolorida e cansada e a gente pensa na tarde poente que é a infância.
Do transbordar dos efeitos do tempo, nasce, diante de mim, aquela que é meu motivo.
E penso nas noites que passei ao seu lado, velando seu sono e pedindo, humildemente, um abraço para me sentir segura.
Sempre tive medo do amor.
É com um carinho de criança chorosa que me lembro da cama quente e dos beijinhos em liquidação que eu distribuía quando ela voltava exausta da rotina de ensinar a viver; das conversas adultas e tão amigas, que me mostraram o verdadeiro valor e significado da realidade cruel que ela insistia em amenizar. É que viver dói.
Das cestas de café da manhã, dos inúmeros presentes que ganhei em meio a tanta dificuldade. E meu sorriso era meu único agradecimento. Lembro das encenações, das brigas com meu irmão, que a deixava momentaneamente brava. Do assassinato da minha bola, que no final, achei cômico. Das viagens maravilhosas, das praias, dos sorvetes que comprava, de cada lugar que visitamos, da Europa aos meus pés. Ela sempre me permitiu.
É com um rosto já molhado que me lembro do dia em que ofereci minha nota de um dólar para ajudar nas despesas da casa, do jogo de cartas pela madrugada, da permissão para namorar, das opiniões sobre minhas roupas, dos nossos gostos opostos, do medo de mariposas, da risada de bruxa, dos guardas noturnos que assombravam minhas noites, das estradas que percorremos, dos desabafos e das festinhas de aniversário.
Mas os anos passam.
E é então que o tempo me enforca e leva de mim todos esses sublimes instantes de sorrir. O tempo, aliado das aves, é maior dos traidores. Ele apaga das vistas tudo o que se pode chamar de amor, nos rouba o existir, nos induz ao hábito e ao esquecimento.
Tempo é perda.
Um dia, uma ave de rapina, disfarçada de tempo, a levará de mim e me deixará sozinha, com as entranhas expostas ao tempo e à dor; sozinha comigo.
Um dia, eu terei de me enfrentar, terei de lutar contra mim mesma até que a ave também venha me buscar para me levar à rua da eternidade.
Eu só queria que a minha ave chegasse primeiro e me poupasse de ter pensamentos como este.