domingo, 23 de setembro de 2007

Brasil

Um parto complicadíssimo!

Nascera da invasão de um tal estrangeiro ibérico lá dos Açores na humilde, primitiva e, futuramente, latina, Vera Cruz. Era então o mais formidável de todos os bebês do mundo.
Não se sabia qual era exatamente o sexo, mas, de certo, teria uma alma feminina, de pátria-mãe, delicada e batalhadora como as mulheres aviriam de ser. Possuía dois imensos globos oculares azuis-esverdeados que mais pareciam uma mistura entre o oceano que a banhava e um reflexo cintilante de mata ainda virgem. Seus cabelos eram de um castanho perfeitamente comparável com o dessas terras boas para plantio, que a menina conhecia como a palma de sua mão.

Ainda pequena, pessoas, vindas de todos os cantos, lhe ensinavam as primeiras palavras, ignorando propositalmente as outras que a meninota já havia aprendido. Com o tempo, a língua de seu severo pai prevaleceu e o português tornou-se seu idioma oficial. Mas ela guardava a língua originária e todas aquelas pessoas estavam, definitivamente, em seu peito.

Tão cedo e já se deparara com a dor da perda! Sua mãe, Vera, a deixou nos primeiros anos de vida. Deprimido, Cabral, seu provável pai, exilou-se por uns tempos lá no estrangeiro e abandonou a pequenina indefesa, agora, à mercê de sua sorte.

Adormecida, num sono quase eterno, lá jazia a tal ilhazinha, lá pros lados do sul. Anos de esquecimento passaram-se e, repentinamente, seu pai resolve voltar juntamente com os tios, primos e todos os demais parentes. Com a desculpa de que queria reencontra-la, rapidamente reestabeleceu-se ao lado da filha.

Sabe-se que, na verdade, o pai ausente estava mesmo era com receio de que a menina crescesse e lhe exigisse pensão alimentícia. Então, ele o faria antes! Vera havia deixado uma gorda herança para a garotinha que escondeu tudo dentro da floresta, prometendo para a mãe que jamais contaria a localização do tal tesouro. O pai, ludibriando a própria filha, inventou uma súbita doença incurável, dizendo que estaria prestes a deixa-la novamente, só que desta vez, para sempre.

Sentiu, nos lábios, um gosto de sal que jamais esqueceria. Não era o sal de seu mar, eram as lágrimas que lhe cobriam a face, jorrando como gotas de chuva e escorrendo como a saudade antecipada do que nunca teve e sabe que nunca terá. Sem pensar, contou seu segredo para o pai. Nota-se que desde então a corrupção fez-se presente em sua vida. O homem, que deveria ser pai, deflorando a mata, descobriu a madeira, e depois descobriu o ouro, depois inovou com o açúcar e o café, abrindo estradas de ferro e explorando também o ferro.

E então vieram as revoluções urbanas, o desenvolvimento tecnológico, as hidrelétricas e toda a parafernália corrosiva. Lembrando que, seu insaciável pai, cansou-se por uns tempos de explora-la devido à má situação financeira que passou a enfrentar. A produçãozinha medíocre da menina não era suficiente para matar sua sede capitalista. Resolveu deixa-la em paz e ela se tornou independente, não porque conquistara sua liberdade, mas, porque seu pai assim o quis.

Mal começara a viver e só lhe restavam os braços. Uma paralisia crônica a atingiu nos membros inferiores. Não alcançara sequer a adolescência, pois não crescia. Os médicos não lhe davam esperanças e queriam mais era amputar suas perninhas necrosadas, atrofiadas pela imundície. Ela sabia que caminhava lado a lado com o grande mal do século e, que, não era esse, a solidão. Mas que, agora, lhe era totalmente impossível caminhar. Teria de se virar com a cadeira de rodas. Que espécie de médico é essa que a assassinava lentamente? Coquetéis de remédios e várias cirurgias para tentar retirar toda lama, todo lixo parasita que se instalara dentro dela; o que era impossível dado o tempo de putrefação: 500 anos.

A criança aleijada que há pouco ensaiava seus primeiros passinhos, agora se via impossibilitada de fazer o que mais gostava: pular carnaval. Os médicos, que ela mesma escolhe a cada quatro anos, lhe deram duas alternativas: livrar-se da paralisia através dos coquetéis ou a amputação. Ela optou pelos remédios. Um milhão de comprimidos a cada dez minutos. Sentia-se, além de fraca, anestesiada. Aquela melhora parecia-lhe extremamente distante. Os remédios não surtiam efeito algum. Cansaço e indignação a dominavam. A esperança tinha sido bruscamente substituída pela revolta, mas pela revolta silente. Havia vozes dentro si clamando por recuperação. Sua vontade era gritar. Pensava que o movimento interior poderia modificar a realidade exterior. Poderia curar sua paralisia através do grito, da força, da imposição da justiça, da anarquia...

Mas tudo isso também lhe parecia romanticamente impossível. As revoluções eram para seus tutores, eles sim são fortes e possuem guerrilhas armadas e toda uma máquina estatal de fazer inveja. A ela cabia apenas receber e obedecer às ordens de seus tutores diariamente. Até então nunca se comportara de modo a importunar seus novos pais que a adotaram por compaixão. Também se sabe que isto é uma inverdade, dado que a compaixão sequer existe. O fato que motivou a adoção é o mesmo que levou o pai biológico a procurar novamente a filha após te-la abandonado durante 30 anos. Comportada como sempre fora, não haveria de enfrentar aqueles que a acolheram, apesar das vozes ficarem cada vez mais estridentes com o passar do tempo, teimando em romper as fronteiras do inaudível. Ainda assim sua revolta era silente, pois como boa brasileira, apesar de gritar dentro de si, tinha o instinto de se calar e curvar-se ante o seu superior.

As vozes a guiaram, fizeram-na ingerir um de seus comprimidos mais poderosos: o voto. Engoliu a seco. Contratou novos médicos e, pela primeira vez, estava certa de que se curaria. Olhava para as pontas de seus pés, outrora, de bailarina, e sentia a esperança pairando. Como numa prece, pedia ao doutor que a livrasse de tudo aquilo que a corrompia, daquela angústia perpétua, daquela ignorância progressiva. O médico riu e a anestesiou.

Quando acordou, a criança havia perdido para todo o sempre suas pernas.Nunca mais poderia andar. Jamais iria crescer. Sentia-se culpada, afinal, fora ela que nomeara os médicos. Esses, tentavam alivia-la afirmando que existem próteses perfeitas e que amputar seria como cortar o mal pela raiz. A criança não respondeu e continuou mais calada do que nunca. A paralisia não só não passara como, também, aumentara. Tinha, agora, todo o corpo paralisado, mas somente o corpo.

Os médicos há muito que desistiram de seu trabalho. Para eles, a garota era um caso perdido. Estava em coma por muitos anos.
Mal sabiam os espertalhões que a tal menina ainda vivia dentro de si e mais do que nunca! Ela ouvira tudo. Eles, os médicos, estavam em conluio, arquitetando sua morte e envenenando-a todos os dias. E mais! Planejavam, agora, amputar-lhe os membros superiores... que, cá entre nós, atualmente, era tudo o que havia de superior na criança.

Acordada do coma, sentiu como se 170 milhões de olhos chorassem ao mesmo tempo, explodindo em lágrimas. Não conseguia livrar-se da culpa. Ela contratara tais médicos, ela mesma, no fundo, era responsável por sua morte. E, revestida de uma sabedoria tardia, demitiu os médicos e gritou até surgir a rouquidão.

Era tarde. Nada poderia fazer para ter suas pernas de volta, mas, andaria com as mãos se preciso fosse.
Assim, com a força dos braços e com os punhos cerrados, a criança luta para crescer, caminhar e livrar-se dos remédios amargos da vida.
Sonha em encontrar um médico que cure verdadeiramente seus males e que a faça esquecer de todas as vezes que teve suas partes amputadas por pura ambição e capricho. Jamais esquecerá de sua infância dolorida, bem se sabe, mas, espera que o que não a mate, a fortaleça.

Um dia impossível de ser esquecido foi o dia de seu batismo, o dia em que lhe foi atribuído seu nome. Hoje vive como aquele que vai a falência e resta-lhe o nome. Hoje, a antiga criança, é mãe adolescente, de primeira viagem, dessas que não sabem sequer como segurar um bebê, mas, que aprendem aos poucos, a cuidar de seus filhos. Filhos sem nomes.


07/2006